terça-feira, 8 de abril de 2008

Michael Tooley, "Estatuto Moral e Clonagem Humana" (Parte V)

«Incapacidade para tratar as pessoas como fins em si mesmas
Uma quarta objecção dirige-se não à clonagem de pessoas em geral, mas a certos casos, como o dos pais que clonam uma criança que está a sofrer de uma condição que ameaça a sua vida, para produzir uma outra que seja capaz de assegurar a vida da criança ameaçada. A ideia central desta objecção implica a incapacidade de ver os indivíduos como fins em si mesmo. Por isso, Philip Kitcher, ao referir-se a estes casos, diz que ‘persiste uma preocupação real’, e depois pergunta se tais cenários ‘podem ser reconciliados com o imperativo kantiano de tratar a humanidade, na tua própria pessoa ou em qualquer outra, nunca somente como mero meio, mas sempre também como fim.’”
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O que há a dizer relativamente a esta objecção? Pode ser importante ser explícito sobre os sacrifícios que a criança que está a ser produzida terá que fazer pelo seu irmão ou irmã. Quando apresentei este tipo de caso em “Clonar para salvar vidas”, defendi que o que estava em causa era um transplante de medula óssea. Kitcher defende, na sua formlução, que será um transplante de rim. Penso que é possível assumir posições diferentes relativamente aos dois casos, dado que, na doação de rim, ao contrário da doação de medula óssea, o dador está a fazer um sacrifício que, no futuro, poderá ter consequências desagradáveis para a pessoa.
Para evitar este facto complexo, concentremo-nos então no caso da medula óssea. Será que haveria nesse caso uma violação do imperativo kantiano? Até pode haver, mas só se os pais abandonassem ou não se preocupassem com a criança depois desta ter doado medula para salvar a vida do outro filho. Mas, seguramente, esta seria uma ocorrência pouco provável. Afinal, a história da espécie humana é sobretudo a história de filhos não planeados, frequentemente nascidos em situações pouco favoráveis para os pais, e, no entanto, essas crianças têm sido profundamente amadas por eles.
Em resumo, embora este seja um tipo de caso em que, por hipótese, os pais decidem ter um filho com o objectivo que nada tem que ver com o bem estar dessa criança, isso não é razão para supor que depois tratariam a sua criança como mero meio, e não como um fim em si mesma. Pelo contrário, há de facto e seguramente boas razões para pensar, que tal criança seria criada com o mesmo amor que a primeira.

Interferir com a autonomia pessoal
A objecção final que vou considerar também foi apresentada por Philip Kitcher, e é a seguinte: “Se a clonagem de seres humanos é realizada com a esperança de gerar um tipo partiocular de pessoa, então a clonagem é moralmente repugnante. A repugnãncia surge não porque a clonagem envolve soldadura biológica, mas porque interfere com a autonomia humana.”
[2]
Esta objecção não se aplica a todos os casos que apresentei em “Considerações para defender a clonagem de pessoas”, nem àquelas em que a clonagem de uma pessoa estaria justificada. Todavia, aplica-se a muitos casos. Primeiro, note-se que nos casos em que o objectivo é produzir ‘um tipo particular de pessoa’, o que se pretende é apenas uma pessoa que possua certas potencialidades. Os pais podem, por exemplo, querer um filho que seja capaz de apreciar desafios intelectuais. A posse de capacidades relevantes não obriga que a criança gaste a totalidade da sua vida empenhada em desafios intelectuais, pelo que é difícil ver em que medida a clonagem com este fim possa interferir com a autonomia humana.
Segundo, consdidere-se os casos em que o objectivo não é produzir uma pessoa que venha a ser capaz de realizar bastantes coisas, mas um indivíduo predisposto para certas direcções. Talvez fosse este tipo de casos que Kitcher tinha em mente quando falou em interferir com a autonomia humana. Mas será de facto moralmente problemático tentar criar pessoas predispostas para certas direcções e não outras? Para responder a esta questão, é necessário considerar casos concretos, como aqueles que referi anteriormente. Por exemplo, é moralmente errado tentar produzir, através da clonagem, indivíduos que venham a ser, por cusa da sua caracterização genética, predispostos para não sofrer de condições que pudessem causar dor considerável, como artrite ou outras doenças ameaçadoras da vida como o cancro, a pressão sanguínea elevada e ataques cardíacos? Ou tentar produzir indivíduos que terão um temperamento alegre, ou que não estejam predispostos à depressão, à ansiedade, à esquizofrenia ou à doença de Alzheimer?
Parece pouco próvável que Kitcher, ou outros, queiram dizer que a tentativa de produzir indivíduos que estejam constitutivamente predispostos das formas que referi anteriormente, seja um caso de interferência na autonomia humana. Mas quais serão então os traços que a tentativa de criar uma pessoa com esses traços seria um exemplo de interferência com a autonomia humana? Não será que Kitcher, quando está a falar sobre a criação de um tipo particular de pessoa, esteja afinal a pensar não só nas propriedades que essa pessoa terá, mas, de forma mais restrita, em coisas como traços de personalidade, ou traços de carácter, ou na posse de certos interesses? Mas podemos perguntar uma vez mais se há alguma coisa de moralmente problemático na tentativa de criar pessoas com essas propriedades. Alguns traços de personalidade são desejáveis, e os pais habitualmente encorajam os seus filhos a desenvolvê-los. Alguns traços de carácter são virtudes, outros são vícios, e tanto os pais como a sociedade procuram encorajar a aquisição dos primeiros. Finalmente, muitos interesses, tal como a música, a arte, a matemática, a ciência, os jogos, a actividade física, podem acrescentar bastante à vida de uma pessoa, e mais uma vez, os pais habitualmente expõe os seus filhos a actividades relevantes, e ajudam-nos a alcançar níveis de proficiência que lhes permita apreciar essas actividades.
O resultado é que, se a clonagem que procura produzir pessoas que mais provavelmente possuirão diversos traços de personalidade, ou de carácter, ou que mais provavelmente terão certos interesses, será errado porque se trata de casos de interferência na autonomia pessoal, então as práticas educativas de quase todos os pais seriam condenadas precisamente pelas mesmas razãos. Mas esta tese é, segura e claramente, contra-intuitiva.
Para além disso, contudo, o apelo às nossas intuições pode não ser aqui suficiente. O mesmo acontece com bastantes teorias morais abrangentes. Suponha-se, por exemplo, que estamos novamente por detrás do véu de ignorância de Rawls, e que estamos a decidir entre sociedades que diferem acerca do modo certo de educar os filhos. Seria racional escolher uma sociedade em que os pais não tentam encorajar os filhos a desenvolver traços de personalidade que contribuiriam para a felicidade destes? Ou uma sociedade em que os pais não procurem inculcar nos filhos uma disposição para agir de uma forma que seja moralmente correcta? Ou uma em que os pais não procurem desenvolver diversos interesses nos seus filhos? Defende que é difícil ver em que medida uma tal escolha seria racional, dado que estaríamos a optar, parece, por uma sociedade em que algúem teria provavelmente uma vida que, em média, seria menos merecedora de ser vivida.
Contrariamente ao que Kitcher defendeu, concluo que não é verdade que a maior parte dos cenários de clonagem são moralmente repugnates, e que, em particular, nada há, em geral, de moralmente problemático em procurar educar uma criança com atributos específicos.

Conclusão
Distingui, neste ensaio, entre dois casos bem diferentes que envolvem a clonagem de seres humanos – um que procura produzir organismos humanos sem mente para que sirvam de banco de órgãos para as pessoas clonadas, e outro que procura criar pessoas. Considerado o primeiro, as objecções que se podem apresentar são objecções que se podem colocar ao aborto, e, por razões que referi antes de forma breve, essas objecções não são sólidas.
Um conjunto de objecções bem diferente surge no caso da clonagem cujo objectivo é criar pessoas. Tendo em conta o segundo tipo de clonagem, defendi que é importante disitinguir se tal clonagem é, em princípio, moralmente aceitável, e se é aceitável hoje. Relativamente à ultima questão, defendi que o uso actual da clonagem para produzir pessoas seria moralmente problemático. Ao contrário, enfrentar a questão de saber se tal cloangem é em princípio moralmente aceitável, defendi, primeiro, que não é intrinsecamente má; segundo, que há um conjunto de razões que tornam a clonagem de pessoas justificável; e, terceiro, que as objecções dirigidas à clonagem não podem ser sustentadas.
Em síntese, a minha conclusão geral é que a clonagem de seres humanos, tanto para produzir bancos de órgãos sem mente, como para produzir pessoas, é moralmente aceitável e, em princípio, potencialmente benéfica para a sociedade.»

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[1] Ibid., p. 61.
[2] Ibid., p. 61.

Michael Tooley, “Moral Status and Cloning Humans”, in Olen, Jeffrey & Barry, Vincent (2002). Applying Ethics. A text with readings. Belmont: Wadsworth, pp287-98 (traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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