segunda-feira, 14 de abril de 2008

Ronald Dworkin, "Brincar de Deus: Genes, Clones e Sorte" (Parte II)

«Justiça. É fácil imaginar a engenharia genética a tornar-se um pré-requisito dos ricos, portanto, exacerbando a injustiça, que já é imensa, tanto das sociedades prósperas como das empobrecidas. Todavia, essas técnicas têm usos que vão para além da vaidade, e esses podem vir a justificar a pesquisa e as experiências, mesmo que julguemos ser a vaidade um motivo inadequado e proibido. Percebemos, anteriormente, as importantes conquistas médicas que já foram alcançadas por intermédio da engenharia selectiva, e pode-se esperar com confiança que mais pesquisas na engenharia genética ampliarão as descobertas anterióres. A clonagem pode acabar por oferecer benefícios médicos impressionantes. Os pais de uma criança muito doente podem querer outro filho, ao qual amariam tanto quanto a qualquer outro, mas cujo sangue ou medula poderia salvar a vida do filho doente do qual foi clonado. Clonar determinadas células estaminais humanas para produzir um órgão para transplante, em vez de um organismo inteiro, pode resultar em benefícios ainda maiores. Uma célula que passou por um processo de reengenharia e foi clonada, extraída de um paciente canceroso, pode tomar-se na cura daquele cancro aquando do transplante dos clones. Também devemos considerar as vantagens além das estritamente médicas. Os casais sem filhos, por exemplo, ou mulheres ou homens solteiros poderiam desejar procriar por meio de clonagem, que podem considerar melhor que as outras opções disponíveis. Ou não ter opção nenhuma.
Talvez possamos legislar para que a engenharia elimine todos os motivos que não sejam aprovados. Se isso for possível, será que a justiça o exige, mesmo que presumamos que não há outras objecções? Creio que não. Não devemos, como já disse, procurar aumentar a igualdade nivelando por baixo e, como no caso da medicina genética mais ortodoxa, técnicas disponíveis durante algum tempo somente para os muito ricos geram quase sempre descobertas de valor muito mais geral para todos. O remédio para a injustiça é a redistribuição, e não a recusa dos benefícios para alguns sem ganhos correspondentes para outros.

Estética. Já temos clones - nascimentos múltiplos geneticamente idênticos (que aumentaram em conseqüência do tratamento de infertilidade) produzem clones -, e o histórico das crianças geneticamente idênticas demonstra que genes idênticos não produzem fenótipos idênticos. Talvez tenhamos subestimado a natureza no passado, mas a nutrição também continua a ser importante, e a reacção às perspectivas da engenharia, por sua vez, também subestimou a sua importância. Contudo, as pessoas receiam que, se trocar a "lotaria" genética pela reprodução tratada pela engenharia, a desejada diversidade de tipos humanos venha a ser substituída pela uniformidade ditada pela moda. Até certo ponto, é claro, é nítido o desejo de maior uniformidade: não há valor, estético ou não, no facto de algumas pessoas estarem condenadas a uma vida desfigurada e curta. Mas acredita-se mais que, dentro de certos limites, as pessoas tenham aparência e comportamento distintos de maneira que possam ser consequência de diversos alelos. Essa ideia parece provir de um valor derivado: que é melhor para todos viver num mundo de diferenças. Contudo também pode ser vista como menção a um valor independente: muita gente acha que a diversidade é um valor em si, de modo que permaneceria valiosa, mesmo que, por algum motivo, as pessoas viessem a preferir a uniformidade.
O que não está claro, porém, é até que ponto a engenharia, mesmo que estivesse disponível a preços baixos, realmente ameaçaria a desejada diversidade. Talvez todos os pais, se pudessem escolher, desejariam que os filhos tivessem o nível de inteligência e de outras habilidades que hoje consideramos normal, ou mesmo que acreditemos superior. No entanto, não podemos considerá-Io indesejável: afinal, a finalidade da educação, tanto comum quanto reparadora, é aumentar a inteligência e os níveis de capacidade de maneira abrangente. É lícito concluir que, se os pais pudessem optar, quase sempre prefeririam obter clones de um deles - ou clonar uma terceira pessoa - à reprodução tradicional que gere um filho com os seus genes? Ou escolheriam a clonagem por motivos alheios à exclusão de alelos prejudiciais, ou porque estão incapacitados para a reprodução sexual? Isso parece improvável. Temos motivos para recear (como muita gente receia) que os pais criem um zigoto reprodutivo para que seja macho, e não fêmea, por exemplo? É verdade que em certas comunidades no norte da Índia, por exemplo, preferem-se os filhos às filhas. Mas tal preferência parece tão sensível às circunstâncias econômicas, bem como a preconceitos culturais que mudam, que não oferece motivo para pensar que o mundo será, de repente, inundado por uma geração dominada por homens. O aborto selectivo pelo sexo já existe há algum tempo, resultante da amniocentese e de leis liberais relativas ao aborto, e parece que não se estabeleceu como tendência geral. Em todo caso, não se justificaria a interrupção das experiências com base em tão fraca especulação.
O temor, porém, vai além do medo da assimetria sexual: é o medo de que um fenótipo - digamos, louro, convencionalmente bonito, não agressivo, alto, com dotes musicais e engenhosidade - venha a dominar uma cultura na qual o fenótipo seja especialmente valorizado. Devemos fazer uma pausa para enumerar as hipóteses científicas contidas nesse temor: ele presume não só que é possível um planeamento genético total, mas que as diversas propriedades do fenótipo preferido podem ser reunidas na mesma pessoa, por meio desse projeto, como se cada uma dessas propriedades fosse produto de um só alelo, cuja posse tornasse tal propriedade pelo menos bastante provável, e isso pudesse ser especificado e tivesse tal consequência, independentemente da especificação ou da expressão fenotípica dos outros alelos. Todas essas hipóteses parecem improváveis, e a sua combinação ainda mais. Parece bem mais provável que mesmo os pais com acesso à mais avançada engenharia tivessem menos combinações a escolher e mais riscos a correr com relação às consequências da educação e da vivência, e que fariam essas escolhas de maneira diferente em reacção às próprias diferenças entre eles do que agora festejamos. O impacto posterior das opções pessoais divergentes de seus próprios filhos, talvez na procura da individualidade, ampliaria essas diferenças.
Para além disso, as assunções motivacionais básicas que sustentam o medo parecem tão duvidosas quanto as assunções científicas. A maioria das pessoas deleita-se com os mistérios da reprodução - esse valor está, afinal, no cerne de todas as objecções que estamos analisando - e muitas, talvez a maioria, renunciariam à engenharia que fosse além de tentar eliminar defeitos e deficiências óbvias, por considerá-Ia de mau gosto. Se tudo isso estiver certo, a objecção estética é exagerada ou, pelo menos, prematura. Precisaríamos de muito mais informações, de um tipo que só se produziria por meio de pesquisas e experiências, para poder ao menos julgar as hipóteses sobre as quais se fundamentam as oposições, e pareceria irracional, portanto, confiar nessas objecções para impedir a pesquisa.»

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