terça-feira, 29 de abril de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte IV)

«Mas reduzir as classes não era um ataque ao sistema. Pelo contrário, procurava, amiúde de forma bastante consciente, que o sistema de classes fosse menos vulnerável ao ataque aliviando as suas consequências menos defensáveis. Elevou o nível mais baixo da cave do edifício social, e pode ser que o tenha feito de uma forma mais higiénica do que antes. Mas continuou a ser uma cave, e os pisos altos não foram afectados, pelo que os benefícios recebidos pelos mais desfavorecidos não emanaram de um enriquecimento do estatuto da cidadania. Onde foram oficialmente dados pelo Estado, isso foi feito com medidas que, como tenho dito, ofereciam alternativas aos direitos de cidadania, em vez de os aumentar. Mas a maior parte da tarefa ficou nas mãos da caridade privada, e a ideia geral, embora não universal, das organizações caritativas era que aqueles que recebiam a sua ajuda não possuíam qualquer direito a reclamá-la.
Ainda assim é verdade que a cidadania, mesmo nas suas formas iniciais, era um princípio de igualdade, e que durante esse período se desenvolveu como instituição. Partindo do pressuposto que todos os homens eram livres e, em teoria, capazes de usufruir de direitos, enriqueceu-se o corpo dos direitos de que podiam desfrutar. Mas estes direitos não conflituaram com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, pelo contrário, necessários à manutenção dessa forma particular de desigualdade. A explicação reside no facto do núcleo da cidadania nesta fase estar composto por direitos civis e os direitos civis serem indispensáveis para a economia competitiva de mercado, por darem a cada pessoa, como parte do seu estatuto individual, a capacidade de empenhar-se como unidade independente na luta económica o que tornava possível negar-lhe protecção social com base no facto de estar equipada com os meios necessários para se proteger a si própria. […]
[…] [E]sse estatuto era claramente uma ajuda, não uma ameaça, para o capitalismo e a economia de livre mercado, porque estava dominado pelos direitos civis, que conferiam a capacidade legal par lutar pelas coisas que queriam possuir, mas que não garantiam a posse de qualquer delas. Um direito de propriedade não é um direito a possuir uma propriedade, mas um direito a adquiri-la quando for possível, e a protegê-la quando se possuir. […] De igual modo, o direito à liberdade de expressão carece de substância quando, por falta de educação, nada se pode dizer que valha a pena ou quando não se tem os meios necessários para se fazer ouvir. É claro que estas desigualdades não se devem a um defeito dos direitos civis, mas a uma falta de direitos sociais, e, em meados do século XIX, estes ainda não estavam desenvolvidos. […]
Também teve um efeito integrador ou, pelo menos, foi um elemento importante do processo de integração. […] [A]s sociedades pré-feudais estavam vinculadas por sentimentos e a pertença a elas baseava-se numa ficção, referia-se ao parentesco ou à ilusão de uma descendência comum. A cidadania requer um vínculo de união distinto, um sentimento de pertença a uma comunidade baseada na lealdade para com uma civilização que se percebe como património comum. É uma lealdade de homens livres, dotados de direitos e protegidos por um direito comum. O seu desenvolvimento foi estimulado por uma luta para ganhar esses direitos desfrutá-los uma vez obtidos, como se verifica claramente no século XVIII, que assistiu não só ao nascimento dos direitos civis modernos, mas também à consciência nacional moderna. As classes altas conceberam os instrumentos da democracia moderna que conhecemos, e logo os se transmitiram, passo a passo, às mais baixas: ao jornalismo político para as elites intelectuais seguiu-se o jornalismo para todos aqueles que sabiam ler, as reuniões, as campanhas de propaganda e o associativismo para a defesa de causas públicas. Nem as medidas repressivas nem os impostos puderam deter essa corrente, e com ela chegou um nacionalismo patriótico que expressava a unidade subjacente a essas explosões. A profundidade e a extensão do nacionalismo são difíceis de avaliar, mas não há dúvida quanto ao vigor da sua manifestação externa. […]
Essa consciência nacional em desenvolvimento, esse despertar da opinião pública, e esses primeiros sentimentos de pertença a uma comunidade e a um património comum não produziram efeitos materiais na estrutura de classes e na desigualdade social pela razão simples e evidente de que, até aos finais do século XX, a massa dos operários não possui poder político efectivo. Naquela época o sufrágio havia sido consideravelmente ampliado, mas os que acabavam de receber o direito ao voto ainda não haviam aprendido a usá-lo. Os direitos políticos de cidadania, ao contrário dos civis, representavam uma ameaça potencial para o sistema capitalista, embora fosse provável que aqueles que os estendiam cautelosamente até abaixo na escala social não compreendessem o tamanho do perigo. Não teria sido lógico esperar a previsão das inúmeras mudanças que derivariam do emprego pacífico do poder político sem necessidade de uma revolução violenta e sanguinária. A sociedade planificada e o Estado de bem-estar ainda não se aproximavam no horizonte nem estavam na mente dos políticos. A solidez dos fundamentos da economia de mercado e o sistema contra-factual parecia capaz de resistir a qualquer ataque. De facto, de acordo com certos indícios poderia esperar-se que as classes trabalhadoras, uma vez educadas, aceitassem os princípios básicos do sistema e estivessem satisfeitas por confiar a sua protecção e o seu progresso aos direitos civis de cidadania, que não pareciam perigosos para o capitalismo competitivo. Esta forma de ver as coisas foi estimulada pelo facto de que um dos principais feitos do poder político nos finais do século XIX ter sido o reconhecimento do direito à negociação colectiva, o que significava que o progresso social alcançava-se através da ampliação dos direitos civis, e não da criação de direitos sociais, quer dizer, através da utilização do contrato no mercado aberto, e não da fixação de um salário mínimo e da segurança social.
[…] Para os operários, estes direitos civis converteram-se num meio de elevar o seu estatuto económico e social, quer dizer, de estabelecer a aspiração de que eles, enquanto cidadãos, desfrutavam de certos direitos sociais. Mas os direitos sociais estabeleceram-se através do exercício do direito político, porque aqueles implicavam um direito absoluto a um certo nível de civilidade que dependia apenas do cumprimento dos deveres gerais de cidadania. O seu conteúdo não depende do valor económico do reclamante individual; portanto, há uma diferença significativa entre uma negociação colectiva genuína, através da qual as forças no mercado livre procuram o equilíbrio, e o emprego de direitos civis colectivos para apresentar reclamações básicas relativas à justiça social. Assim, a aceitação da negociação colectiva não foi um mera ampliação natural dos direitos civis, porque representou a transferência de um importante processo a partir da esfera política da cidadania para a sua esfera civil. Mas “transferência” é, talvez, um termo equívoco porque quando isto ocorria os trabalhadores não possuíam nem haviam aprendido a utilizar o direito político do sufrágio. Desde então obtiveram-no e usam-no de forma plena. Assim, o sindicalismo criou um sistema secundário de cidadania industrial paralelo e complementar ao sistema de cidadania política.»

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