terça-feira, 8 de abril de 2008

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte V)

«Esse paradoxo tem sido frequentemente apontado. Uma coisa é dizer que sei o que é bom para X, enquanto ele próprio não o sabe; e até ignorar os seus desejos por causa disso - e para o bem dele -; e outra coisa bastante diferente é dizer que ele de facto o escolheu, na verdade de forma não consciente, não como parece ser na vida diária, mas no seu papel de eu racional que o seu eu empírico talvez não conheça - o eu "real" que discerne o bem e não pode deixar de o escolher, uma vez revelado. Essa personificação monstruosa, que consiste em igualar o que X escolheria se fosse algo que não é, ou pelo menos que ainda não é, com o que X realmente procura e escolhe, está no âmago de todas as teorias políticas da auto-realização. Uma coisa é afirmar que posso ser coagido para o meu bem, o qual sou demasiado cego para ver: isso pode beneficiar-me ocasionalmente, até talvez aumentar o alcance da minha liberdade. Outra coisa é afirmar que, se é para o meu bem, não estou a ser coagido, pois teria determinado essa escolha, sabendo disso ou não, e sou livre (ou "verdadeiramente" livre) mesmo quando o meu pobre corpo terreno e a minha mente tola a rejeitam amargamente e lutam de forma desesperada contra aqueles que procuram, embora de forma benévola, impô-Ia.
Essa transformação mágica, ou prestidigitação (que fazia William James zombar com tanta razão dos hegelianos), pode ser sem dúvida realizada com igual facilidade com o conceito "negativo" de liberdade, em que o eu que não deve sofrer interferência já não é o indivíduo com os seus desejos e necessidades reais como são normalmente concebidos, mas o homem "real" interior, identificado com a busca de algum objectivo ideal não sonhado pelo seu eu empírico. E, como no caso do eu "positivamente" livre, essa entidade pode ser expandida para alguma entidade supra-pessoal - um Estado, uma classe, uma nação ou a marcha da própria história, vista como um sujeito de atributos mais "real" do que o eu empírico. Mas a concepção "positiva" de liberdade como auto-domínio, com a sua sugestão de um homem dividido contra si mesmo, de facto tem se prestado com mais facilidade, como uma questão de história, doutrina e prática, a essa dupla divisão da personalidade: o controlador dominante, transcendente, e o feixe empírico de desejos e paixões a serem disciplinados e controlados. Esse facto histórico é que tem sido influente. Isso demonstra (se é necessária a demonstração de uma verdade tão óbvia) que as concepções de liberdade derivam de visões do que constitui um eu, uma pessoa, um homem. Uma manipulação perfeita da definição do homem e da liberdade é capaz de fazer com que ela signifique qualquer coisa que o manipulador deseje. A história recente tem deixado muito claro que a questão não é meramente académica. […]»

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