segunda-feira, 28 de abril de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte II)

«1. Estados, Nações e Culturas nas Democracias Liberais
Alguns teóricos mantêm que os governos modernos podem e devem evitar apoiar qualquer cultura societária ou identidade etnocultural concreta. De facto, alguns mantêm que é precisamente isto que distingue as “nações cívicas” liberais das “nações étnicas” anti-liberais. As nações étnicas consideram um dos seus objectivos mais importantes a reprodução de uma cultura e de uma identidade etnonacional concreta. As nações cívicas, pelo contrário, são neutras relativamente às identidades etnoculturais dos seus cidadãos e definem a pertença nacional meramente em termos de adesão a certos princípios de democracia e justiça. Segundo esta perspectiva, as nações cívicas tratam a cultura da mesma forma que a religião, quer dizer, como algo que as pessoas são livres de cultivar na sua vida privada, mas que não é assunto de Estado. Da mesma forma que o liberalismo exclui a proclamação de uma religião oficial, também não pode haver uma cultura oficial que goze de um estatuto privilegiado com relação a outras lealdades culturais possíveis.
Michael Walzer, por exemplo, afirma que o liberalismo implica “um claro divórcio entre o Estado e a etnicidade”. O estado liberal ergue-se sobre os diversos grupos étnicos e nacionais do país “negando-se a apoiar os seus estilos de vida ou a assumir um interesse activo na sua reprodução social”. No seu lugar, o Estado “é neutro relativamente à língua, à história, à literatura e ao calendário” desses grupos. O exemplo mais claro de nação cívica é os Estados Unidos, cuja neutralidade etnocultural se reflecte no facto de não existir uma língua oficial constitucionalmente reconhecida
[1]. Mas isto é enganador. O certo é que o governo americano promove de forma activa uma língua e uma cultura comuns. Assim, é um requisito legal que as crianças aprendam inglês e história americana nas escolas; constitui um requisito para os imigrantes (até à idade de cinquenta anos) aprender inglês e história americana a fim de adquirir a cidadania estado-unidense o domínio do inglês é um requisito de facto para todos os candidatos a um emprego na administração pública; os trâmites judiciais e outras actividades governamentais desenvolvem-se exclusivamente em inglês; por fim, a legislação produzida, bem como os formulários burocráticos, estão habitualmente disponíveis apenas em inglês. Todos os âmbitos do governo americano (federal, estatal e municipal) têm insistido na existência de um interesse governamental legítimo em apoiar uma língua comum. O Supremo Tribunal tem apoiado repetidamente essa declaração apoiando leis que tornam obrigatório o ensino e o uso do inglês nas escolas e na função pública. De facto, como Gerald Johnson salientou, “uma das pequenas ironias da história é que nenhum os impérios poliglotas do velho mundo se atreveu a impor tão cruelmente uma única língua à sua população como o fez a república liberal com a sua ‘dedicação ao tema de que todos os homens foram criados iguais’”[2].
Em resumo, os Estados Unidos têm promovido deliberadamente a integração naquilo que denomino de “cultura societária” baseada na língua inglesa. Chamei-as de “culturas societárias” para sublinhar que não só implicam recordações ou valores partilhados, como também instituições e práticas sociais comuns. Ronald Dworkin afirmou que os membros de uma cultura possuem “um vocabulário misto de tradição e convenção”
[3], mas isto não nos oferece uma imagem abstracta ou etérea das culturas. No caso de uma cultura societária, esse vocabulário comum é o vocabulário do quotidiano da vida social integrado em praticas que incluem a maior parte das áreas da actividade humana. No mundo moderno, a integração de uma cultura na vida social significa que esta deve integrar-se nas instituições, quer dizer, nas escolas, nos meios de comunicação, no direito, na economia, no governo, etc.
Uma cultura societária é, por conseguinte, uma cultura territorialmente concentrada com base numa língua comum usada numa ampla gama de instituições sociais, tanto na vida pública como na privada. A participação nesse tipo de cultura proporciona o acesso a formas de vida significativas através de toda uma série de actividades humanas, incluindo a vida social, educativa, religiosa e económica e o tempo de lazer, tanto na esfera privada como na pública. O governo americano tem apoiado deliberadamente a integração numa cultura societária deste tipo, quer dizer, tem estimulado os cidadãos para conceber as suas oportunidades vitais como se estivessem vinculadas à participação em instituições societárias comuns que operam em inglês. Como discuto mais adiante, isto fez parte de um projecto de “construção nacional” com o qual todas as democracias ocidentais se comprometeram. Contrariamente ao que Walzer afirmou, o governo americano não foi “neutro” relativamente à língua e à cultura. Também não poderia. A ideia de que o governo americano podia ter sido neutro com relação os grupos etnoculturais é obviamente falsa. A política governamental teve necessariamente que determinar que os americanos se integrassem numa cultura societária inglesa, alemã ou espanhola.
Um dos factores determinantes da sobrevivência de uma cultura é se a sua língua é uma língua governamental, quer dizer, se a sua língua se usa nas escolas públicas, nos tribunais, nos órgãos legislativos, nas agências de política social, nos serviços sanitários, etc. Quando o governo decide a língua do sistema público de educação está a proporcionar o que talvez seja a principal forma de apoio que precisam as culturas societárias, já que garante a transmissão para as gerações futuras tanto da língua como das tradições e convenções que lhe estão associadas. Pelo contrário, é difícil que as línguas sobrevivam nas sociedades modernas industrializadas a menos que tenham um uso público. Dada a extensão da educação homologada, a existência de alfabetização para o trabalho e a interacção generalizada com as agências governamentais, qualquer língua que não seja pública se tornará tão marginal que provavelmente só sobreviverá no seio de uma pequena elite ou de forma ritualizada, não como uma língua viva e no desenvolvimento que subjaza a uma cultura florescente. As decisões governamentais sobre a língua nas escolas e nos serviços públicos são de facto decisões sobre as culturas societárias que poderão existir num país. Nos Estados Unidos tomou-se deliberadamente a decisão de apoiar apenas uma cultura societária anglófona.
As decisões relativas à imigração e à naturalização também afectam a viabilidade das culturas societárias. A imigração pode fortalecer uma cultura na medida em que se regulem os fluxos e se incentive (ou exija) que os imigrantes aprendam a língua e a história nacionais. Mas se os imigrantes no seu estado multinacional se integram na cultura maioritária, as minorias nacionais ver-se-ão progressivamente superadas em número e incapacitadas para a vida pública. Além de que os estados incentivam frequentemente os imigrantes (ou os migrantes de outras partes do país) a fixarem-se em territórios tradicionalmente ocupados por minorias nacionais, reduzindo-as a uma minoria até no âmbito do seu próprio território histórico. Por exemplo, consideremos o caso americano. Quando o sudoeste foi incorporado no Estados Unidos na Guerra com o México em 1848 havia nessa zona muito poucos anglófonos. O número de mexicanos (“chicanos”) e de tribos índias que residiam no território durante séculos era muito superior. Se os chicanos tivessem podido controlar a imigração na região, provavelmente teriam adoptado uma política que incentivasse ou obrigasse os imigrantes a integrarem-se na sua cultura societária, preservando assim o seu estatuto dominante na região (por exemplo, teriam podido ir buscar imigrantes ao México e não à Europa). Se tivesse sido esse o caso, o sudoeste actual seria como o Quebec ou a Catalunha, uma região dominada por uma minoria nacional linguisticamente distinta. É claro que o governo federal americano tinha o desejo contrário. O seu objectivo era estabelecer o domínio da cultura societária anglófona por todo o território. Consequentemente, favoreceu a imigração massiva para a região e exigiu aos colonos e imigrantes a aprendizagem do inglês. Podemos discutir os méritos desta decisão, mas o importante é que tinha de tomar-se uma decisão deliberada, num sentido ou noutro, sobre a(s) cultura(s) societária(s) que devia(m) dominar a região. Tinha que tomar-se uma decisão sobre quem seria aceite como imigrante, sobre quantos imigrantes seriam admitidos na zona e sobre a língua que deveriam aprender, isto é, decisões que tinham uma profunda repercussão para a viabilidade das diversas culturas societárias.
Poderiam multiplicar-se os exemplos de decisões político-administrativas que implícita ou explicitamente apoiam determinados grupos etnoculturais. Por exemplo, as decisões sobre as celebrações públicas e sobre o currículo escolar reflectem habitualmente e ajudam a perpetuar uma determinada cultura nacional. De igual modo, os limites das subunidades políticas podem desenhar-se de tal maneira que fortaleçam as minorias nacionais criando unidades regionais em que constituam uma maioria; também podem desenhar-se de forma que debilitem as minorias, garantindo que os grupos dominantes formem uma maioria em todas as subunidades. Uma vez mais, podemos debater os méritos das diversas decisões sobre as fronteiras, mas não existe uma forma “neutra” que evite ter que decidir se se permite que um grupo etnocultural constitua uma maioria no seio de uma jurisdição particular
[4].
Isto mostra-nos que a analogia entre religião e cultura é errada. Um estado pode não ter uma igreja oficial, mas o Estado não pode evitar estabelecer, pelo menos parcialmente, uma cultura quando decide sobre a língua que se há-de usar na administração, a língua e a história que as crianças devem aprender na escola, quem serão admitidos como imigrantes e que língua e história deverão aprender para se converterem em cidadãos, se as subunidades se desenharão com o fim de criar distritos controlados por minorias nacionais, etc. Estas decisões políticas determinam directamente a viabilidade das culturas societárias. Por conseguinte, a ideia de que os estados liberais ou as “nações cívicas” são neutras relativamente às identidades etnoculturais é um mito. O que distingue as nações cívicas das étnicas? A diferença fundamental diz respeito aos termos de admissão à nação. As nações “étnicas”, como a Alemanha, definem a pertença em termos de descendência comum, de forma que as pessoas de um grupo étnico ou racial distinto (por exemplo, os trabalhadores turcos na Alemanha) não podem adquirir cidadania, independentemente do tempo de residência no país. As nações “cívicas”, como os Estados Unidos, estão em princípio abertas a qualquer indivíduo que viva no território desde que aprenda a língua e a história da sociedade. Estes estados definem a pertença em termos de participação numa cultura societária comum, aberta a todos, mais do que por razões étnicas. Por conseguinte, o nacionalismo étnico é exclusivo, enquanto que o nacionalismo cívico é inclusivo. Esta é uma diferença crucial, mas ambos supõem a politização dos grupos etnoculturais. Ambos constroem a pertença nacional enquanto participação na cultura societária comum e ambos executam as políticas públicas para manter e perpetuar essa cultura societária. A execução da política pública para promover a cultura ou culturas societárias particulares é um traço inevitável de todo o estado moderno.»


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[1] Michael Walzer, “Comment”, in Gutmann, Amy (ed.) Multiculturalism and the Politics of Recognition, Princeton, Princeton University Press, 1992, pp. 100-1. Cfr também M. Walzer, What it Means to be an American, New York, Marsilio, 1992, p. 9; William Pfaff, The Wrath of nations: Civilization and the Furies of Nationalism, New York, Simon and Shuster, 1993, p. 162; Michel Ignatieff, Blood and Belonging: Journeys into the New Nationalism, New York, Farras, Straus&Giroux, 1993.
[2] Gerald Johnson, Our English Heritage, Westport, Greenwood Press, 1973, p. 119.
[3] Ronald Dworkin, A Matter of Principle, London, Harvard University Press, 1985, p. 231.
[4] Para uma discussão detalhada deste ponto, veja-se o meu Multicultural Citizenship: a Liberal Theory of Minority Rights, Oxford, OUP, 1995, cap. 5.

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