sábado, 26 de abril de 2008

Iris Marion Young, “Imparcialidade e o Cívico Público. Algumas implicações das críticas feministas para a teoria moral e política” (Parte II)

«1. A oposição entre razão e afectividade

A ética moderna define a imparcialidade como a marca característica da razão moral. Enquanto característica da razão, a imparcialidade significa algo diferente da atitude pragmática de ser justo, considerando as necessidades e desejos dos outros assim como os próprios. A imparcialidade refere-se ao ponto de vista da razão que fica fora de qualquer interesse ou desejo. Não ser parcial significa ser capaz de ver o todo, como todas as perspectivas e interesses particulares de uma dada situação se relacionam entre si de um modo que, por causa da sua parcialidade, cada perspectiva não pode ver por si mesma. Quem realiza um raciocínio moral imparcial situa-se deste modo fora e acima da situação sobre a qual se está a raciocinar, sem colocar nada em jogo, ou então supõe-se que adopta uma atitude relativamente a uma situação como se estivesse fora e acima dela. Para a filosofia contemporânea questionar o ideal de imparcialidade leva a questionar a própria possibilidade da teoria moral. Contudo, defenderei que o ideal de uma razão normativa situada num ponto que transcende todas as perspectivas tem tanto de ilusório como de opressivo.
Na teoria moral moderna tanto a tradição utilitarista como a deontológica acentuam a imparcialidade na definição de razão moral
[1]. Restringirei aqui a minha discussão à razão deontológica por dois motivos. Ao contrário da deontologia, o utilitarismo não supõe que exista uma razão especificamente normativa. O utilitarismo define a razão na ética do mesmo modo que em qualquer outra actividade: a determinação do modo mais eficiente de alcançar um fim; no caso da ética, a felicidade da maioria. O que a mim me interessa são os esforços modernos para definir uma razão especificamente normativa. Em segundo lugar, interessa-me examinar como o compromisso com a imparcialidade tem como resultado uma oposição entre razão e desejo, e que esta oposição é mais evidente na razão deontológica.
O ideal de uma razão normativa imparcial continua a ser afirmado pelos filósofos como “o ponto de vista moral”. Como um observador ideal que se situaria numa nave espacial noutro planeta
[2] os filósofos morais e políticos começaram a raciocinar a partir de um ponto de vista que pretendem imparcial. Este ponto de vista é geralmente um constructo contrafáctico, uma situação de raciocínio que erradica as pessoas vivas do seu verdadeiro contexto de tomada de decisões morais transportando-as para uma situação em que poderiam existir. Tal como argumenta Michael Sandel, o ideal de imparcialidade requer a construção de um eu abstraído do contexto de qualquer pessoa real: o eu deontológico não está comprometido com qualquer fim particular, nem tem história particular nem pertence a qualquer comunidade, nem tem corpo[3].
Por que requer a racionalidade normativa a construção de um eu fictício numa situação fictícia de raciocínio? Porque esta razão, do mesmo modo que a razão científica da qual se pretende distinguir a deontológica, está impelida pelo que Theodor Adorno denomina “a lógica da identidade”
[4]. Segundo esta lógica da identidade, a razão não significa simplesmente possuir razões, ou possuir uma explicação, ou reflectir inteligentemente e considerar uma situação. Para a lógica da identidade da razão é ratio, a redução de princípios dos objectos do pensamento a uma medida comum, as leis universais.
A lógica da identidade consiste numa urgência inexorável de pensar as coisas juntas, numa unidade, de formular uma representação do todo, uma totalidade. Este desejo é pelo menos tão velho como Parménides, e a lógica da identidade começa com a antiga noção filosófica dos universais. Através de uma noção de uma essência, o pensamento constitui uma unidade com os particulares concretos. Sem dúvida que na medida em que a diferença qualitativa define a essência, o programa puro de identificar o pensamento fica incompleto. Os particulares concretos constituem uma unidade sob a forma universal, mas as próprias formas não podem ser reduzidas à unidade.
O ego cartesiano fundador da filosofia moderna realiza o projecto totalizante. Este cogito expressa em si mesmo a ideia de identidade pura como a auto-presença reflexiva da consciência relativamente a si própria. Ao ter sido fundado neste ponto de subjectividade transcendental, o pensamento, mais audaz que nunca, tenta compreender todas as entidades numa unidade consigo mesmo e num sistema unificado com os demais.
Mas todas as conceptualizações transportam as impressões e o fluxo da experiência de uma ordem que unifica e compara. O que Adorno considera perigoso não é a força unificadora dos conceitos per se. A lógica da identidade vai mais além dessa tentativa de ordenar e descrever os particulares da experiência. Constrói sistemas totais que procuram submergir a alteridade das coisas na unidade do pensamento. O problema que representa a lógica da identidade é que através dela o pensamento procura tê-la controlado, eliminar qualquer incerteza e imprevisibilidade, idealizar o facto corpóreo da imersão sensual num mundo que ultrapassa o sujeito, eliminar a alteridade. A razão deontológica expressa esta lógica da identidade eliminando a alteridade pelo menos de duas formas: a irredutível especificidade das situações e a diferença entre os sujeitos morais.
A exigência de imparcialidade por parte da razão normativa implica uma exigência de universalidade. Quem raciocina imparcialmente trata todas as situações de acordo com as mesmas regras, e quanto mais regras se podem reduzir à unidade de uma regra ou princípio, mais garantidas estarão a imparcialidade e universalidade. Na moralidade kantiana, para comprovar a correcção de um juízo não é necessário que aquele que raciocina imparcialmente deva olhar de fora do pensamento, mas apenas que terá que procurar a consistência e universalidade de uma máxima. Se a razão conhece as regras morais que se aplicam universalmente à acção e à escolha, então não haverá qualquer razão para que na construção dos juízos morais entrem os próprios sentimentos, interesses e inclinações. Esta razão deontológica não pode eliminar a especificidade e variabilidade das situações concretas a que as regras se devem aplicar; não obstante, ao insistir na imparcialidade e na universalidade da razão moral, deixa de ser racionalmente capaz de entender e avaliar os contextos morais particulares na sua particularidade
[5].
O ideal de uma razão moral imparcial também procura eliminar a alteridade na forma do sujeito moral diferenciado. A razão imparcial deve julgar a partir de um ponto de vista que fique fora das perspectivas particulares das pessoas implicadas que se encontram em interacção, capaz de totalizar estas perspectivas num todo ou vontade geral. Este é o ponto de vista de um Deus transcendente e solitário
[6]. O sujeito imparcial não precisa reconhecer outros sujeitos cuja perspectiva deveria ser considerada e com quem podia desenvolver alguma discussão[7]. Deste modo, a pretensão de imparcialidade pode ter como resultado o autoritarismo. Ao dizer de alguém que é imparcial, recorre-se a autoridade para decidir sobre um tema, em vez daqueles cujos interesses e desejos são manifestos. A partir do ponto de vista imparcial, não é necessário consultar alguém, já que o ponto de vista imparcial já assume qualquer perspectiva possível[8].
No discurso moral moderno ser imparcial significa especialmente ser desapaixonado: que os sentimentos não afectem em nada os próprios juízos. A ideia de imparcialidade procura, pois, eliminar a alteridade num sentido diferente, no sentido da experiência sensual, emocional e do desejo que ligam ao concreto das coisas, que apreendo na sua relação particular comigo. Por que requererá a ideia de imparcialidade a separação entre razão moral e desejo, afectividade e relação corporalmente sensorial com as coisas, as pessoas e as situações? Porque a imparcialidade pode alcançar a sua unidade expulsando da razão o desejo, a afectividade e o corpo.
É típico da lógica da identidade gerar a dicotomia em vez da unidade. O movimento de subsumir os particulares numa categoria universal cria uma distinção entre o dentro e o fora. Dado que cada entidade ou situação particular guarda semelhanças ao mesmo tempo que diferenças relativamente a outras identidades e situações particulares, e dado que não são completamente idênticas nem absolutamente distintas, o prémio por as recolher dentro de uma categoria ou princípio implica necessariamente que sejam expulsas algumas das propriedades destas entidades ou situações. Dado que o envolvimento totalizante deixa ser um remanescente, o projecto de reduzir os particulares a uma unidade deve fracassar. Não satisfeita com a admissão da derrota no que à diferença diz respeito, a lógica da identidade mostra a diferença entre oposições normativas dicotómicas: essência-acidente, bom-mau, normal-desviante. Sem dúvida que as dicotomias não são simétricas, mas situam-se dentro de uma hierarquia: o primeiro termo designa a unidade positiva do interior, o segundo termo, que tem menos valor, designa o exterior que sobra
[9].
Para a razão deontológica o movimento de expulsão que a dicotomia gera produz-se deste modo. Como já havia discutido, chega-se ao constructo de um ponto de vista imparcial realizando uma abstracção da particularidade concreta da pessoa em situação. O que exige a abstracção da particularidade do ser corpóreo, das suas necessidades e inclinações e dos sentimentos que se vinculam à particularidade experimentada das coisas e dos eventos. A razão normativa define-se como imparcial, e a razão define a unidade do sujeito moral, tanto no sentido de conhecer os princípios universais da moralidade como no sentido do que têm em comum todos os sujeitos. Por esta razão opõem-se ao desejo e à afectividade na medida em que isto é o que diferencia e particulariza as pessoas. Na secção seguinte discutirei um movimento similar de expulsão das pessoas do cívico público com vista a manter a unidade deste.
Seguem-se muitos problemas de expulsão do desejo e do sentimento da razão moral. Como todos os sentimentos, inclinações, necessidades, desejos, são igualmente irracionais, todos eles são igualmente inferiores
[10]. Em contraste com isto, a filosofia moral pós-moderna procurava critérios que permitissem distinguir interesses bons de maus, entre sentimentos nobres e baixos. O importante na ética de Aristóteles, por exemplo, era precisamente distinguir entre bons e maus desejos, e cultivar os bons. Além disso, as instituições morais contemporâneas continuam a distinguir entre bons e maus sentimentos, desejos racionais e irracionais. Como defende Lawrence Blumm, a oposição que estabelece a razão deontológica entre dever moral e sentimento não reconhece o papel dos sentimentos de simpatia, compaixão e interesse no momento de dar razões e motivações para a acção moral[11]. A nossa experiência da vida moral ensina-nos, para além disso, que sem o impulso da privação ou da cólera, por exemplo, não se realizariam muitas escolhas morais.
Deste modo, como consequência da operação entre a razão e o desejo, as decisões morais que se fundamentam em considerações de simpatia, preocupação e valorização de necessidades diferenciadas são definidas como não racionais, não “objectivas”, meramente sentimentais. Então, na medida em que as mulheres exemplificam ou são identificadas com esses estilos de tomada de decisão moral, são excluídas da racionalidade moral
[12]. A racionalidade moral de qualquer grupo cujas experiências ou cujos estereótipos os associe ao desejo, a necessidade e a afectividade são para além do mais suspeitos.
Ao expulsar pura e simplesmente o desejo, a afectividade e a necessidade, a razão deontológica em última instância reprime-os e coloca a moralidade em oposição à felicidade. A função do dever é dominar a natureza interna, não conformá-la às melhores direcções. Como todos os desejos são igualmente suspeitos, não há qualquer forma de distinguir quais são os desejos bons e quais são os maus, quais ampliariam as capacidades e as relações das pessoas com as demais e quais atrofiariam a pessoa e fomentariam a violência. Ao ser excluído do entendimento, qualquer desejo, sentimento ou necessidade torna-se inconsciente, sem que por isso deixe de motivar a acção e a conduta. Por isso, a tarefa da razão é controlar e censurar o desejo.»

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[1] O utilitarismo de Bentham, por exemplo, supõe algo parecido com “um observador ideal” que vê e calcula a felicidade de cada indivíduo e pondera-a colocando-a em relação uma com as outras, calculando a soma geral da sua utilidade. O exemplo do calcular imparcial é como o do guardião do panóptico que Foucault considera expressar a razão normativa moderna. O observador moral eleva-se e é capaz de ver todas as pessoas individuais nas suas interacções mútuas, ao mesmo tempo que fica fora da observação destes. Veja-se Foucault, Vigiar e Punir
[2] Bruce Ackerman, Social Justice in the Liberal State, New Haven, Yale University Press, 1980.
[3] Michael J. Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge, CUP, 1982; Cfr. Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”, in Benhabib, Seyla (1992), Situating the Self: Gender, Community, and Postmodernism in Contemporary Ethics, New York, Routledge, pp. 148-77; veja-se também Th. Adorno, Negative Dialectics, New York, Continuum, 1973, pp. 238-9.
[4] Th. Adorno, “Introduction”, in Adorno, Negative Dialectics.
[5] Roberto Unger identifica o problema de aplicar os universais aos particulares na teoria normativa moderna. Veja-se Knowledge and Politics, New York, The Free Press, 1974, pp. 133-44.
[6] Thomas A. Spragens, Jr, The Irony of Liberal Reason, Chicago, University of Chicago Press, 1981, p. 109.
[7] A posição original de Rawls dirigia-se à superação deste monologismo da deontologia kantiana. Dado que por definição na posição original cada qual raciocinam a partir de uma perspectiva abstracta, não obstante, de todas as particularidades da história, o lugar e a situação, a posição original é monológica no mesmo sentido que a razão kantiana. Defendi isto no meu ensaio “Toward a Critical Theory of Justice”, Social Theory and Practice, 7, 3, Outono 1981, pp. 279-301; veja-se também Sandel, Liberalism, pp. 59-64, e Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”, in Benhabib, Seyla (1992), Situating the Self: Gender, Community, and Postmodernism in Contemporary Ethics, New York, Routledge, pp. 148-77.
[8] Adorno, Negative Dialectics, pp. 242 e 295.
[9] Para esta descrição baseio-me numa leitura de J. Derrida, Of Grammatology, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1974, para além de Negative Dailectics, de Adorno. Diversos escritores chamaram a atenção para as semelhanças entre Derrida e Adorno a este respeito. Veja-se F. Dallmayr, Twilight of Subjectivity: Contributions to a Post-Structuralist Theory of Politics, Amherst, University of Massachussets Press, 1981, pp. 107-14 e 127-36; e M. Ryan, Marxism and Domination, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1982, pp. 73-81.
[10] Thomas A. Spragens, Jr, The Irony of Liberal Reason, pp. 250-56.
[11] Lawrence A. Blum, Friendship, Altruism and Morality, London, Routledge and Kegan Paul, 1980.
[12] Esta é uma das objecções à afirmação de que exista uma “voz diferente” que tenha sido suprimida; veja-se Benhabib, “The Generalized and the Concrete Other”; Veja-se também Lawrence Blum, “Kant’s and Hegel’s Moral Rationalism: A Feminist Perspective”, Canadian Journal of Philospohy, 12, Junho 1982, pp. 287-302.

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