terça-feira, 15 de abril de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte II)

«Para fazer o século XVII cobrir o período formativo dos direitos civis temos que recuar até incluir o Habeas Corpus; o Acto da Tolerância e a abolição da censura na imprensa; e devemos avançar até incluir a Emancipação Católica, a revogação dos Actos Combinatórios, e o fim bem sucedido da luta pela liberdade de imprensa associada aos nomes de Cobbert e Richard Carlile. Pode então ser descrito de forma mais rigorosa, mas menos breve, como o período entre a Revolução e o primeiro Acto da Reforma. No final desse período, quando os direitos políticos fizeram a sua primeira tentativa infantil para andar em 1832, os direitos civis tornaram-se património do homem e exibiam, no essencial, a aparência que possuem hoje. “O trabalho específico do início da época Hanoveriana”, escreve Trevelyan, “foi o estabelecimento do primado da lei; e essa lei, com todas as suas grandes falhas, foi pelo menos uma lei de liberdade. Foi sobre essa fundação sólida que foram construídas todas as reformas subsequentes”[1]. O grande feito do século XVII, interrompido pela Revolução Francesa e completado a seguir, foi em larga medida um trabalho dos tribunais, tanto na prática diária como na série dos casos célebres particularmente naqueles que envolviam a luta contra o parlamento em defesa da liberdade individual. Suponho que o actor mais celebrado deste drama foi John Wilkes, e, embora possamos deplorar o facto de não possuir as qualidades mais nobres e santas que deveríamos encontrar nos nossos heróis nacionais, não nos podemos queixar se a causa da liberdade é por vezes ganha por libertinos.
No campo económico, o direito civil básico é o direito ao trabalho, quer dizer, o direito a seguir uma ocupação que decorra de uma escolha individual, sujeita apenas às exigências legítimas de um treino técnico preliminar. Este direito vinha a ser negado tanto pelo estatuto como pelo costume; por outro lado, o Estatuto dos Artífices, que atribuía certas ocupações a certas classes sociais, e, por outro, definia regulamentos que reservavam o emprego numa cidade aos seus próprios membros e transformava a aprendizagem num instrumento de exclusão e não de recrutamento. O reconhecimento deste direito envolve a aceitação formal de uma mudança fundamental de atitude. O velho pressuposto que os monopólios locais e de grupo serviam os interesses do público, porque “o comércio e os transportes não podiam ser mantidos ou aumentados sem ordem nem governo”
[2], foi substituído pelo novo pressuposto que tais restrições eram uma ofensa à liberdade dos indivíduos e uma ameaça à prosperidade da nação. Como no caso dos outros direitos civis, os tribunais desempenharam um papel decisivo na promoção e no registo do avanço do novo princípio. A Lei Comum era suficientemente elástica para os juízes a aplicarem de forma que, quase imperceptivelmente, acabou por contribuir para as mudanças graduais nas circunstâncias e na opinião e instalar eventualmente a heresia do passado como ortodoxia do presente (…).
No início do século XIX, este princípio da liberdade económica individual foi aceite como axiomático. O leitor estará provavelmente familiarizado com a passagem citada por Webbs do relatório da Comissão de Selecção de 1811, onde se afirma que

nenhuma interferência da legislatura na liberdade de comércio, ou na liberdade perfeita de cada indivíduo dispor do seu tempo e do seu trabalho nas formas e nos termos que julgar mais consentâneos com os seus interesses, pode ocorrer sem que isso viole princípios gerais de primeira importância para a prosperidade e felicidade da comunidade.
[3]

A revogação do Estatuto dos Artifices seguiu-se imediatamente, constituindo o reconhecimento tardio da revolução que já havia acontecido.
A história dos direitos civis no seu período formativo é um acrescento gradual de novos direitos ao estatuto que já existia e foi defendido como pertença de todos os membros adultos da comunidade - ou talvez devamos dizer de todos os membros masculinos, uma vez que o estatuto da mulher, ou pelo menos da mulher casada, era em certos aspectos importantes peculiar. O carácter democrático ou universal do estatuto emergiu naturalmente do facto de ser essencialmente o estatuto da liberdade, e no século XIX, em Inglaterra, todos os homens eram livres. O estatuto de servo, ou de servidão hereditária, persistiu como um manifesto anacronismo dos tempos da Rainha Elisabeth, mas desapareceu logo a seguir.
Esta mudança do trabalho servil para o trabalho livre tem sido descrita pelo Professor Tawney como “uma marca elevada do desenvolvimento económico e político da sociedade” e como “o triunfo final da lei comum” nas regiões em que estava excluída há séculos. Dessa forma, o camponês inglês “é um membro da sociedade em que há, pelo menos nominalmente, uma lei para todos os homens”
[4]. A liberdade que os seus antepassados conquistaram migrando para as cidades livres tornou-se num direito seu. Nas cidades os termos liberdade e cidadania eram intercambiáveis. Onde a liberdade se tornou universal, a cidadania cresceu de uma forma local para uma forma nacional.
A história dos direitos políticos é diferente tanto no tempo como no carácter. O período formativo começou, como disse, no início do século XIX, quando os direitos civis ligados ao estatuto da liberdade já haviam adquirido substância suficiente que justifique falarmos de um estatuto geral de cidadania. E, quando começou, consistia, não na criação de novos direitos que vinham enriquecer o estatuto gozado por todos, mas na criação de novos direitos para novos segmentos da população. No século XVIII, os direitos políticos eram insuficientes, não no conteúdo, mas na sua distribuição – quer dizer, insuficientes segundo os padrões de uma cidadania democrática. O Acto de 1832 pouco fez, de um ponto de vista meramente quantitativo, para remediar esta insuficiência. Depois de ser aprovado, os eleitores eram ainda pouco mais do que um quinto da população masculina adulta. A franquia era ainda pertença de um grupo monopolista, mas que deu o primeiro passo para se tornar num monopólio de um tipo aceitável à luz das ideias capitalistas do século XIX – uma monopólio que podia, com algum grau de plausibilidade, ser descrito como aberto e não fechado. Num monopólio fechado ninguém pode entrar pelos seus próprios esforços; a admissão é uma prerrogativa dos membros actuais do grupo. A descrição corresponde em grande medida ao privilégio de uma divisão administrativa anterior a 1832, e não é tão ampla como quando aplicada ao titulo baseado na posse livre da terra. As propriedades não estão sempre acessíveis, mesmo quando há dinheiro para as adquirir, especialmente num tempo em que as famílias olham para as suas terras como o fundamento social, bem como económico, da sua existência. Por isso, o Acto de 1832, ao abolir as divisões administrativas e ao estender o privilégio aos arrendatários ou aos ocupantes das propriedades com substância económica suficiente, abriu o monopólio através do reconhecimento das pretensões políticas daqueles que eram objectivamente bem sucedidos na luta económica.
É claro que, se mantivermos que no século XIX a cidadania na forma de direitos civis era universal, a franquia política era um dos direitos de cidadania. Era o privilégio de uma classe económica limitada, cujos limites foram estendidos por sucessivos Actos Reformadores. Pode, no entanto, defender-se que a cidadania neste período não era politicamente insignificante. Não conferia um direito, mas reconhecia a capacidade. Nenhum cidadão mentalmente capaz e obediente estava impedido pelo seu estatuto pessoal de comprar ou de votar. Era livre para possuir, para guardar, para comprar propriedade ou alugar uma casa, e para usufruir de quaisquer direitos políticos ligados às suas conquistas económicas. Os seus direitos civis davam-lhe esse privilégio, e as sucessivas reformas eleitorais foram-lhe garantindo isso.
Eram, como veremos, apropriados ao modo como a sociedade capitalista do século XIX devia tratar os direitos políticos como um produto secundário dos direitos civis. Era igualmente apropriado que o século XIX abandonasse esta posição e ligasse os direitos políticos directa e independentemente à cidadania. Esta diferença vital do princípio foi efectivada aquando do Acto de 1918, o qual, ao adoptar o sufrágio universal, mudou a base dos direitos políticos da substância económica para o estatuto pessoal. Digo deliberadamente “universal” para enfatizar o enorme significado desta reforma relativamente a uma outra não menos importante introduzida ao mesmo tempo – nomeadamente, o direito das mulheres. Mas o Acto de 1918 não estabeleceu completamente a igualdade política em toda a extensão dos direitos de cidadania. Reminiscências da desigualdade baseada nas diferenças económicas persistirão até que, [em 1948], será finalmente abolido o voto plural (que já antes havia sido reduzido ao voto dual).
Quando atribui os períodos formativos a cada um destes três elementos da cidadania a séculos separados – os direitos civis ao século XVII, os políticos ao século XIX e os sociais ao século XX – disse que havia uma considerável sobreposição entre os últimos dois. Proponho reduzir o que tenho a dizer agora sobre os direitos sociais a esta sobreposição, para que possa completar a minha análise histórica até ao final do século XIX, e extrair daí as minhas conclusões, antes de virar a minha atenção para a segunda metade do meu tema, o estudo das nossas experiências actuais e dos seus antecedentes imediatos.
A fonte original dos direitos sociais era a pertença a uma comunidade local e a associações funcionais. Esta fonte foi complementada e progressivamente substituída pela Lei dos Pobres e por um sistema de regulação dos salários segundo uma concepção nacional com aplicação local. O sistema de regulação dos salários decaiu rapidamente no século XVIII, não só por causa das mudanças industriais o tornaram administrativamente impossível, mas também porque era incompatível com a nova concepção de direitos civis na esfera económica, com ênfase no direito a trabalhar no lugar e no tipo de emprego individualmente escolhido e baseado num contrato celebrado pelas partes. A regulação salarial infringia o princípio individualista subjacente ao contrato livre de trabalho.
A Lei dos Pobres era de algum forma ambígua (…). Porque a Lei dos Pobres era a última reminiscência de um sistema que tentava ajustar os rendimentos reais às necessidades sociais e ao estatuto do cidadão e não apenas ao valor comercial do seu trabalho. […] [Mas] através do Acto de 1834 a [nova] Lei dos Pobres renunciou a todas as pretensões de espalhar pelo território um sistema de salários, ou de interferir com as forças do livre mercado. Ofereceu alívio apenas àqueles que, por causa da idade ou por estarem doentes, estavam incapacitados para continuar a luta, ou aos fracos que dela desistiram, admitindo a derrota, e chorando por misericórdia. […] Os direitos sociais mínimos que restaram foram separados do estatuto de cidadania. A Lei dos Pobres tratava as pretensões dos pobres, não como um parte integral dos seus direitos de cidadania, mas como direitos alternativos – como pretensões que podiam ser satisfeitas se os reclamantes deixassem de ser cidadãos na verdadeira acepção do termo. Os mendigos perderam na prática os direitos civis de liberdade pessoal, por internamento em instituições sociais, e perderam por lei quaisquer direitos políticos que pudessem possuir. Esta situação de incapacitação persistiu até 1918, e o significado da sua remoção final talvez não tenha sido ainda devidamente apreciado. O estigma que se associou à erradicação da pobreza expressa os sentimentos profundos das pessoas que compreendem que aqueles que aceitam esta erradicação devem atravessar a estrada que separa a comunidade dos cidadãos da companhia excluída dos destituídos.
A Lei dos Pobres não é um exemplo isolado deste divórcio dos direitos sociais do estatuto de cidadania. Os primeiros Actos Fabris mostram a mesma tendência. Embora conduzam de facto à melhoria das condições de trabalho e à redução das horas de trabalho para benefício de todos os empregados das indústrias a que se aplicam, restringiram meticulosamente a cedência desta protecção ao adulto do sexo masculino – o cidadão por excelência. E fizeram-no por respeito ao seu estatuto de cidadão, com base no facto de que reforçava medidas protectoras da redução do direito civil de celebrar livremente um contrato de trabalho. A protecção estava confinada às mulheres e às crianças, e os defensores dos direitos das mulheres rapidamente se deram conta do insulto. As mulheres estavam protegidas porque não eram cidadãos. Se desejassem usufruir de uma cidadania total e responsável, deviam abster-se dessa protecção. Mas no final do século XIX, estes argumentos tornaram-se obsoletos, e o código fabril transformou-se num dos pilares do edifício dos direitos sociais. […]
A educação dos filhos tem uma relação directa com a cidadania e, quando o estado garante que todos os cidadãos devem ser educados, já tem definitivamente em mente todos a natureza e requisitos da cidadania. O direito à educação é um direito social genuíno, porque o objectivo da educação durante a infância é moldar o futuro cidadão. No fundamental, deve ser encarado, não como o direito da criança à escola, mas como o direito do cidadão adulto a ter sido educado. E não há aqui qualquer conflito entre os direitos civis tal como eram interpretados na idade do individualismo. Os direitos civis existem para serem exercidos por pessoas razoáveis e inteligentes, que aprenderam a ler e a escrever. A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil.
No final do século XIX, a escolaridade básica era não só gratuita, mas obrigatória. […] No decorrer do século XIX foi crescendo o reconhecimento que a democracia política precisava de um eleitorado educado, e que a indústria especializada precisava de trabalhadores e técnicos qualificados. O dever de se aperfeiçoar e de se civilizar é um dever social e não um dever meramente pessoal, porque a saúde social da sociedade depende do grau de civilidade dos seus membros. E quando uma comunidade reforça este dever é porque começou a perceber que a sua cultura é uma unidade orgânica e a sua civilização uma herança nacional. Segue-se que o aumento da escolaridade básica durante o século XIX foi o primeiro grande passo para o restabelecimento dos direitos sociais dos cidadãos do século XX. […]»

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[1] Caso da Cidade de Londres, 1610, Ver E. F. Hecksher, Mercantilism, vol. 1 (London: Allen & Unwin, 1935), pp. 269-325, onde a história toda é contada com detalhe.
[2] Sidney e Beatrice Webb, History of Trade Unionism (London: Longmans, 1920), p. 60.
[3] R. H. Tawney, Agrarian Problem in the Sixteenth Century (London, Longmans, 1912), pp. 43.4.
[4] Veja-se a caracterização admirável dada por R. H. Tawney in Equality (New York: Harcourt Barce, 1931), pp. 121-2.

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