domingo, 27 de abril de 2008

T. S. Marshall, "Cidadania e Classe Social" (Parte III)

«3. A influência prematura da cidadania na classe social

Até aqui o meu objectivo foi esboçar as grandes linhas do desenvolvimento da cidadania na Inglaterra até ao final do século XIX. Com este propósito, dividi a cidadania em três elementos: civil, político e social. Procurei demonstrar que os direitos civis que apareceram em primeiro lugar foram estabelecidos quase na sua forma moderna antes da aprovação em 1832 do primeiro Acto Reformador. Os direitos políticos vieram logo a seguir, e a sua extensão foi um dos aspectos mais notórios do século XIX, embora o princípio da cidadania política universal só tivesse sido reconhecido em 1918. Os direitos sociais, por outro lado, diminuíram quase até desaparecerem no século XVIII e nos princípios do século XIX, mas, com o desenvolvimento da educação elementar pública, começou o seu ressurgimento, e só no início do século XX se tornaram comparáveis aos outros elementos da cidadania.
Até agora nada disse da classe social; por isso devo explicar de seguida que a classe social ocupa um lugar secundário na minha argumentação. […] O tempo disponível não me permitiria fazer justiça a este assunto. Interessei-me sobretudo pela cidadania, particularmente pela sua influência na desigualdade social. Analisarei a natureza da classe social apenas quando isso for relevante para os meus objectivos. Se me demorei na narração dos factos do final do século XIX isso deve-se à minha convicção de que o impacto da cidadania na desigualdade social depois dessa data foi fundamentalmente diferente do que havia sido até então, como provavelmente todos reconhecerão. E é precisamente a exacta natureza da diferença o que merece ser investigado. Assim, antes de prosseguir, procurarei retirar algumas conclusões gerais sobre o impacto da cidadania na desigualdade social durante o primeiro destes dois períodos.
A cidadania é aquele estatuto que se concede aos membros de pleno direito de uma comunidade. Os seus beneficiários são iguais no que respeita a direitos e obrigações. Embora não exista um princípio universal que determine quais são os direitos e obrigações, nas sociedades em que a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam a imagem de uma cidadania ideal em função da qual o êxito pode ser medido e para a qual se dirigem as aspirações. As conquistas que se produzem na direcção assim traçada proporcionam uma medida mais acabada da igualdade, um enriquecimento do conteúdo desse estatuto e um aumento do número daqueles que dele desfrutam. Pelo contrário, a classe social é um sistema de desigualdade que, tal como a cidadania, pode basear-se num corpo de ideais, crenças e valores. Parece, pois, razoável que o impacto da cidadania na classe social possa manifestar-se sob a forma de um conflito entre princípios opostos. E se estou certo em afirmar que a cidadania se desenvolveu como instituição em Inglaterra mais ou menos a partir da segunda metade do século XVII, é evidente que a sua evolução coincide com o auge do capitalismo, que não é um sistema de igualdade, mas de desigualdade. Impõe-se por isso uma explicação mais detalhada. Como é possível que estes princípios opostos possam crescer e progredir num mesmo território? O que permitiu que se reconciliassem e chegassem a ser, pelo menos durante algum tempo, aliados em vez de antagonistas? A pergunta é pertinente, porque sabemos que durante o século XX a cidadania e o sistema de classes do capitalismo estiveram em guerra.
Neste ponto torna-se necessário um escrutínio mais próximo da classe social. Embora não pretenda examinar as suas muitas e variadas formas, há uma clara distinção entre dois tipos de classe que é particularmente relevante para a minha argumentação. O primeiro baseia-se numa hierarquia de estatuto, e a diferença entre ambos expressa-se nos direitos legais e em certos costumes estabelecidos que possuem um carácter vinculativo de lei. Na sua forma extrema, um sistema deste tipo divide a sociedade numa série de comunidades humanas hereditárias: patrícios, plebeus, servos, escravos, etc. A classe é, agora e sempre, uma instituição por direito próprio, e a estrutura no seu conjunto tem o carácter de um projecto, uma vez que está dotada de sentido e finalidade, e se aceita como uma ordem natural. A civilização expressa, em cada nível, esse sentido e essa ordem, e as diferenças ente os níveis sociais não são diferenças quanto ao nível de vida, porque não existe um padrão comum para as medir. Também não existem direitos – pelo menos com algum significado – que todos partilhem
[1]. O impacto da cidadania num sistema semelhante acabaria por ser profundamente perturbador e inclusivamente destrutivo. Os direitos de que se investiu o estatuto geral de cidadania extraíram-se do sistema do estatuto hierárquico de classe social, privando-o daquilo que nele era substantivo. A igualdade que o conceito de cidadania implica, embora limitada no seu conteúdo, socavou a desigualdade do sistema de classes que era, em princípio, total. A justiça nacional e o direito comum para todos tinha que debilitar e, possivelmente, destruir a justiça de classe, e a liberdade pessoal, como direito universal inato, tinha que acabar com a servidão. Não é necessária muita subtileza para compreender que a cidadania e o feudalismo medieval são incompatíveis.
O segundo tipo de classe social não é tanto uma instituição por direito próprio, mas um produto secundário de outras instituições, embora possamos continuar a chamar “estatuto social” como forma de ampliar o termo para além do seu estrito sentido técnico. As diferenças de classe nem se estabelecem nem se definem mediante as leis ou os costumes sociais (no sentido medieval da expressão), mas resultam da interacção de vários factores relacionados com as instituições de propriedade, de educação e de estrutura da economia nacional. As culturas de classe reduzem-se ao mínimo; por isso podemos calcular, embora admitindo que de forma pouco satisfatória, os distintos níveis de bem-estar económico relativamente a um modelo comum de vida. As classes operárias, em vez de herdarem uma cultura distintiva, por mais simples que fosse, alimentam-se da imitação barata e grosseira de uma civilização que se tornou nacional.
Mas ainda assim a classe funciona. A desigualdade social considera-se necessária e estrutura a distribuição do poder. Todavia, não existe um modelo absoluto de desigualdade que atribua a priori um valor apropriado a cada nível social. Deste modo, a desigualdade, embora necessária, pode chegar a ser excessiva. Como salientou Patrick Colquhoun numa passagem bastante citada: “sem uma grande dose de pobreza não haveria ricos, porque os ricos são os descendentes do trabalho, ainda que o trabalho só possa proceder de um estado de pobreza […] Portanto, a pobreza é um ingrediente necessário e indispensável da sociedade, sem a qual as nações e as comunidades não teriam alcançado um estado de civilização”
[2]. Mas Colquhoun, embora aceite a pobreza, deplora a “indigência” ou, deveríamos dizer, a miséria. Por “pobreza” entende a situação daquele que, por falta de recursos económicos, tem de trabalhar duramente para viver. Por “indigência” entende a situação de um família que carece do mínimo necessário para viver decentemente. O sistema de desigualdade que permitia a existência da primeira como força impulsionadora produzia inevitavelmente uma certa dose da segunda. Colquhoun, como outros humanistas, lamentavam-na; por isso procuravam os meios para aliviar o sofrimento que provocava, mas nunca questionaram a justiça do sistema de desigualdade no seu conjunto. Em defesa dessa injustiça poderíamos alegar que, embora a pobreza pudesse ser necessária, não era necessário que uma família particular permanecesse pobre, ou pelo menos tão pobre quanto o era. Quanto mais se considera a riqueza como uma prova contundente do mérito, mais se tende a julgar a pobreza como prova do fracasso, mas a penalização para o fracasso pode parecer maior do que o delito. Nestas circunstâncias, é natural que os aspectos mais desagradáveis da desigualdade se tratem, irresponsavelmente, como uma doença, como um fumo negro expelido sem qualquer controlo pelas chaminés das nossas fábricas. Com o tempo, quando nasce a consciência social, a redução das classes, como a do fumo, converte-se numa meta que deve perseguir-se, sempre que tal seja compatível com a eficácia contínua da máquina social.»
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[1] Veja-se a admirável caracterização de R. H. Tawney em Equality, pp. 121-2.
[2] A Treatise on Indigence (1806), pp. 7-8.

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