sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Haig Khatchadourian, "A Moralidade do Terrorismo" (Parte V)

"A Moralidade do Terrorismo e a Teoria da Guerra Justa
Embora a bibliografia sobre o terrorismo esteja constantemente a crescer, pouco tem sido escrito sobre a moralidade do terrorismo; talvez porque os escritores tenham dado como garantido que o terrorismo é um flagelo, sempre moralmente repreensível e errado: observe-se por um instante a associação que habitualmente se faz entre terrorismo e assassínio. […]
Este não é um começo auspicioso para a avaliação moral do terrorismo. Do facto dos actos terroristas, incluindo a morte de vítimas imediatas, serem proibidos na maior parte, senão em todos os sistemas legais, não se segue que tais actos sejam moralmente errados. Ao chamar “assassinato” às mortes terroristas está-se a fugir às complexas questões éticas envolvidas…
Saber (…) se alguns actos terroristas (…) são moralmente justificáveis é uma questão importante que será discutida relativamente à teoria da guerra justa. […]
As condições tradicionais da guerra justa são de dois tipos: as condições que justificam a guerra (jus ad belum) e as condições da condução justa na guerra (jus in bello). Uma das suas condições fundamentais é que:

A destruição da vida e da propriedade, mesmo da vida e da propriedade do inimigo, é inerentemente má. Segue-se que as forças militares não devem provocar mais destruição do que aquela que é estritamente necessária para alcançar os seus objectivos. (Veja-se que o princípio não diz que tudo o que é necessário é permissível, mas que tudo o que é permissível deve ser necessário). Este é o princípio da necessidade: a destruição cruelmente destrutiva é proibida. O princípio da necessidade especifica, mais precisamente, que uma operação militar é proibida se houver alguma operação alternativa que cause menos destruição, mas que possua a mesma probabilidade de produzir um resultado militar bem sucedido.
[1]

Uma outra condição fundamental é o princípio da discriminação ou da imunidade dos não-combatentes, que proíbe o dano deliberado – sobretudo a morte – de pessoas inocentes. Em A teoria da Guerra Justa, William O’Brien define esta condição como o princípio que proíbe ataques directos intencionais a não-combatentes ou a alvos não-militares”
[2], e Douglas Lackey, em A Ética da Guerra e da Paz, caracteriza-o como “a ideia de que (…) a vida e a propriedade civil não devem estar sujeitas à força militar: a força militar deve dirigir-se apenas a objectivos militares”[3]. Uma terceira condição fundamental é o princípio da proporcionalidade “aplicado a fins militares discretos”[4]. Esta condição é definida por William O’Brien como a “obrigação de adequar a proporcionalidade dos meios aos fins políticos e militares”[5]. Ou, como defende Lackey, é a ideia de que a “quantidade de destruição permitida na perseguição de um objectivo militar deve ser proporcional à importância do objectivo. Este é o princípio militar da proporcionalidade (que se deve distinguir do princípio político da proporcionalidade na jus ad bellum).”[6]
A minha alegação é que estes três princípios, devidamente modificados e adaptados, são aplicáveis por analogia a todos os tipos de terrorismo e que estes os violam a todos de forma flagrante. Com efeito, todos os tipos de terrorismo, excepto o terrorismo moralista/religioso, violam uma outra condição da teoria da guerra justa. Refiro-me à primeira e mais importante condição da jus ad bellum e a uma das mais importantes condições da guerra justa em geral: a condição da causa justa. […]"


[1] Douglas P. Lackey, The Ethics of War and Peace (Englewoods Cliffs, NJ, 1989), 59. Itálico no original.
[2] William O’Brien, “Just-War theory”, in Burton M. Leiser, Liberty, Justice, and Morals, 2nd ed. (New York), 39. Esta secção é em larga medida a reprodução das secções III-IV de H. Khatchadourian, “Terrorism and Morality”, Journal of Applied Philosophy, 5, nº 2 (1958), 134-143.
[3] Lackey, Ethics, 59.
[4] Ibid., 37.
[5] Ibid., 30.
[6] Ibid., 59. Itálico no original.

Ética e Política no Ciberespaço

O ciberespaço é o espaço comunicacional virtual criado pelas tecnologias digitais. Não está limitado às operações das redes computacionais, já que implica todo o tipo de actividades sociais em que se utilizam tecnologias digitais da informação e da comunicação (TIC), desde sistemas de computacionais até cartões de memória. Com a introdução de elementos digitais num número cada vez maior de objectos (desde os microondas até aos ténis), estes adquirem funções inteligentes e capacidades comunicacionais dando origem a um campo virtual vital permanente.
Mas a maioria dos debates actuais no âmbito das TIC não é apenas técnico. É também e em diferentes níveis, um debate ético e político. Será o ciberespaço terra de ninguém? Será possível uma governança do ciberespaço? O espectro de respostas é bastante amplo. Existe a posição anarquista radical que considera o ciberespaço um território completamente novo relativamente ao qual as regras morais convencionais são completamente desajustadas. Como se afirma na Declaração de Independência do Ciberespaço (1996) “não temos governo eleito, nem é provável que venhamos a ter, pelo que a autoridade máxima é a que é ditada pela própria liberdade individual. Declaramos que o espaço social global que estamos a criar é naturalmente independente das tiranias que nos querem impor… o ciberespaço não está confinado às fronteiras nacionais… é um acto de natureza que se multiplica através das nossas acções colectivas”. Ora, como se pode ver, a consequência desta visão libertária é que nenhum governo é um bom governo. Mas, por mais atraente que esta perspectiva seja, quanto maior for a utilização do ciberespaço, maior será a necessidade de uma regulamentação pública e comum. O mesmo se verifica em relação ao facto de ser cada vez mais urgente proteger o ciberespaço de actividades criminosas. Mais ainda, a tecnologia do ciberespaço cria de facto uma realidade virtual, mas isso não é suficiente para a autonomizar da política do mundo real.
Em oposição à posição anárquica radical, está a posição de governos que propõe um conjunto de actividades restritas para o ciberespaço, com vista a controlar não apenas a difusão da indústria da pornografia e de grupos neo-nazis, mas também para proteger os utilizadores de piratas e de todos os que desenvolvam actividades politicamente subversivas. Existem cidadãos do ciberespaço que acreditam sinceramente no auto-policiamento e discutem entre si toda uma variedade de formas de auto-vigilância que vão desde a criação de software de controlo parental, até aos ciberanjos e códigos de cortesia e de conduta.
Na medida em que o ciberespaço é percebido pelos seus utilizadores como a última fronteira electrónica e na medida em que este coloniza a nossa realidade não-virtual, torna-se necessário ser governado por normas e regras. Uma questão recorrente é saber se o ciberespaço pode dar origem a novas formas [democráticas] de governo electrónico, menos territoriais, menos hierarquizadas e menos participativas, que exijam um novo tipo de regras para a acção política.
Seja qual for a posição que se assuma relativamente à governança futura do ciberespaço, não é possível negar que, em qualquer caso, há efectivamente escolhas morais a fazer e há escolhas morais que estão efectivamente a ser feitas, uma vez que a proliferação das tecnologias do ciberespaço não as isenta de dimensão moral. As questões morais são, por isso, diversas e relacionam-se com escolhas sobre o próprio desenvolvimento das tecnologias, sobre aplicações possíveis, sobre a responsabilidade de certas aplicações e sobre a introdução e uso das aplicações. Também envolvem questões sobre a distribuição desigual dos custos e benefícios das aplicações pelos actores sociais, sobre o controlo das tecnologias e da sua administração, e sobre a incerteza do impacto futuro da tecnologia.
No presente, as práticas e as instituições que aspiram ao governo universal do ciberespaço são perfeitamente desadequadas para a necessária humanização das futuras sociedades da comunicação e da informação. A natureza da governança global que é necessária exige a intervenção de movimentos cívicos, que, apesar de inspirarem iniciativas globais, é um processo lento relativamente à velocidade vertiginosa da expansão do ciberespaço e à complexificação das relações sociais nesse espaço. Os cidadãos encontram-se, por isso, numa verdadeira encruzilhada, mas será que estão em condições de decidir bem? Esta questão exige tempo e reflexão, só que o tempo é escasso e os riscos são reais. A questão específica que nos deve preocupar é saber se os padrões dos direitos humanos universais podem ou não fornecer uma orientação moral significativa e consistente para construir rapidamente a governança do ciberespaço. Porquê? Respondem os cépticos pessimistas: porque não queremos uma nova caixa de Pandora.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Laurie Calhoun, "A Mensagem Tácita do Terrorismo" (Parte VII)

"Descobrimos então que os terroristas estão interessados em dois tipos de mensagens. Primeiro e isto é habitualmente a única pretensão à verdade reconhecida por todos os outros, o terrorista alega que existem injustiças sociais. Em muitos casos pode haver alguma verdade nas alegações específicas feitas pelos grupos terroristas, e isso seria suficiente para os virar contra todos aqueles que beneficiam do regime que está no poder. Mas a própria conduta dos terroristas coloca-nos perante um segundo tipo de verdade. Talvez exista algo profundamente errado não só em algumas das políticas específicas da nossa sociedade, mas também na forma como concebemos o uso institucionalizado da força mortífera, a actividade da guerra, como um meio aceitável de resolução de conflitos.
As conotações associadas ao “terrorismo” são fortemente pejorativas e, embora os terroristas operem claramente a partir daquilo que consideram ser moral, são frequentemente sujeitos a uma condenação muito mais poderosa do que os assassinos não-políticos. Mas os assassinos que rejeitam a própria ideia de moralidade parecem ser piores inimigos da sociedade do que os terroristas políticos, que são motivados primariamente por considerações morais. Então porque será que as pessoas temem e odeiam tão intensamente os terroristas? Talvez por reconhecerem de alguma forma que os terroristas têm de facto operado segundo formas que essa sociedade implicitamente desculpa e até encoraja. Talvez as pessoas sejam meras sombras de si próprias e das actividades dos terroristas.
Se é verdade que os terroristas se vêem a si próprios como defensores da justiça, então a menos que a atitude relativamente à guerra assumida pela maior parte dos governos do mundo mude radicalmente, deve esperar-se que o terrorismo continue a existir. A proliferação dos conflitos é proporcional à dos grupos e algum subconjunto das partes do conflito acabará eventualmente por recorrer à força mortífera, com base naquilo que eles, em conjunto com a maioria da população, consideram a respeitabilidade da “guerra justa”. As soluções militares já não são usadas por nações estáveis mesmo “em último recurso”. Tragicamente, a disponibilidade imediata de armas mortíferas e a presunção disseminada de que o uso dessas armas é com frequência moralmente aceitável, se não obrigatório, resultou num mundo em que os seus líderes pensam frequentemente em primeiro lugar, mas não em último, em soluções militares para os conflitos. Esta disponibilidade para recorrer a meios mortíferos contribuiu indiscutivelmente para a escalada de violência no mundo contemporâneo em graus diversos, sendo os mais assustadores para as pessoas os que envolvem acções imprevisíveis de grupos facciosos, “os terroristas”. Mas os líderes das nações estabelecidas iludem-se ao pensar que podem sufocar o terrorismo através de ameaças e da proliferação de armas. O terrorismo “inova-se” ao transformar em alvos militares o que habitualmente se consideravam alvos não-militares. Não há razão para acreditar que a capacidade de inovação dos terroristas será frustrada através da construção de um sistema de mísseis anti-balísticos ou da implementação de outras iniciativas baseadas em estratégias e práticas militares convencionais.”


Laurie Calhoun, "The Terrorist's Tacit Message" in White, James E. (2006). Contemporary Moral Problems: War and Terrorism. Belmont: Thompson Wadsworth, pp. 47-53 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Será a eutanásia moral?

Pedi aos meus alunos que lessem o caso seguinte:

“A 24 de Fevereiro, o filho do casal H. T. Houle morreu, no Centro Médico do Maine, na sequência de uma operação cirúrgica de emergência ordenada pelo tribunal. A criança nascera a 9 de Fevereiro, horrivelmente deformada. Tinha malformações em todo o lado esquerdo; não tinha olho esquerdo, faltava-lhe praticamente a orelha esquerda, tinha a mão esquerda deformada; algumas das suas vértebras não estavam fundidas. Além disso, sofria de uma fístula traqueo-esofágica e não podia ser alimentada pela boca. O ar escapava-se-lhe para o estômago, em vez de seguir para os pulmões. Como referiu o Dr. André Hellegers…, “Não é preciso grande imaginação para pensar que haveria mais deformações internas…”
Com o passar dos dias, o estado da criança piorou. Surgiu uma pneumonia. Os seus reflexos tornaram-se mais fracos e, devido à circulação deficiente, surgiram suspeitas de lesões cerebrais graves. A fístula traqueo-esofágica, a ameaça imediata á sua sobrevivência, pode ser corrigida com relativa facilidade mediante cirurgia. Mas, tendo em atenção as complicações e deformidades associadas, os pais recusaram-se a dar autorização para a intervenção cirúrgica do “Bebé Houle”. Vários médicos do Centro Médico do Maine tinham uma opinião diferente e apresentaram o caso em tribunal. O Juiz do Tribunal Superior do Maine, David G. Roberts, ordenou que se realizasse a cirurgia. Foi este o teor da sua decisão: “No momento do nascimento com vida, existe um ser humano que tem o direito à mais ampla protecção legal. O mais fundamental de todos os direitos de que goza qualquer ser humano é o direito à própria vida.”


Depois pedi-lhes que respondessem à questão: Será a decisão do Juiz do Tribunal Superior moralmente justificável? Porquê?
Disse-lhes que a resposta devia ser dada através de ensaio e que devia respeitar escrupulosamente, entre outros aspectos, a bibliografia indicada (sob pena de penalização significativa).
Os objectivos desta tarefa são:
a) Identificar e esclarecer o problema de ética aplicada que o caso levanta;
b) Identificar e esclarecer os problemas conceptuais relacionados com os conceitos centrais do problema de ética aplicada que o caso levanta;
b) Identificar, apresentar e discutir as TESES e ARGUMENTOS centrais das posições que respondem ao problema de ética aplicada identificado e esclarecido;
c) Tomar posição de forma consistente, autónoma e crítica.
Oportunamente apresentarei os ensaios mais consistentes.

Laurie Calhoun, "A Mensagem Tácita do Terrorismo" (Parte VI)

"A maioria das nações avançadas que têm exércitos permanentes produz e exporta os tipos de armas mortíferas usadas pelas facções nas acções terroristas. Se restringirmos o uso do termo “terrorista” àqueles grupos que utilizam uma violência mortífera “para além do razoável” para qualquer sistema legal estabelecido, segue-se que os terroristas obtêm as suas armas de instituições e indústrias militares mais formais (e legais). Tem-se verificado que é impossível controlar o tráfico de armas convencionais através do qual pilhas de armas são transferidas de regime para regime com o patrocínio de alguns governos para grupos pequenos com os quais se identificam politicamente. E mesmo quando escândalos como o Irão-Contra são descobertos, a responsabilização dos agentes culpados é quase sempre nominal. A indulgência relativamente aos militares e aos líderes políticos que se envolvem ou patrocinam o patriotismo através do comércio ilegal de armas, resulta da presunção básica da maior parte das pessoas, isto é, que eles e os seus companheiros são bons, enquanto que aqueles que com eles discordam são maus.
Nalguns casos, os terroristas desenvolvem armas inovadoras através do uso de materiais que em princípio não possuem qualquer aplicação militar, por exemplo, o ácido sulfúrico ou nitrato de amónio. Dada a possibilidade de os grupos terroristas recorrerem a formas de destruição inovadoras, parece que o apoio dos líderes nacionais à ideia de que matar seres humanos pode consistir num mandato da justiça é mais decisivamente instrumental para a perpetuação do terrorismo do que a exportação de armas mortíferas. As campanhas de bombardeamento ilustram graficamente a aprovação dos governos ao uso da força mortífera. É de facto fácil compreender o que deve ser o chavão comum entre os membros de grupos dissidentes que adoptam meios violentos: “Se eles podem fazê-lo, por que não nós?”
Os grupos políticos possuem uma agenda própria e alguns deles usam estrategicamente a violência para tentar alcançar os seus objectivos. Os terroristas não se situam, de um ponto de vista intelectual e moral, “para além do razoável”, uma vez que os seus actos são melhor entendidos através do apelo à mesma teoria da guerra justa que é invocada pelas nações na justificação das suas campanhas militares. Os terroristas interpretam as suas guerras como justas, ao mesmo tempo que culpabilizam todos aqueles que beneficiam das políticas dos governos de que discordam. Os grupos habitualmente reconhecidos como “terroristas” discordam dos governos não quanto à possibilidade de uma guerra justa ou quanto a possibilidade de se exagerar a importância da moralidade no caso da morte de pessoas inocentes. Os grupos terroristas e as instituições militares das nações concordam com o mesmo esquema da “guerra justa”, mas discordam acerca dos factos."

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Haig Khatchadourian, "A Moralidade do Terrorismo" (Parte IV)

"Definindo “Terrorismo”
Uma caracterização ou definição formal completamente adequada de “terrorismo” deve ser, tanto quanto possível, neutra e enfrentar a questão da moralidade do terrorismo em geral, para além de reflectir os cinco aspectos ou dimensões do terrorismo que distingui anteriormente – apesar das conotações invariavelmente negativas do termo, particularmente no mundo ocidental. […]
A questão de saber se os não-combatentes podem ser incluídos entre as vítimas imediatas do terrorismo, parece não estar resolvida na bibliografia actual. A ausência de clareza e permanência – e, seguramente, a ambivalência e a incerteza nos usos actuais do termo – reflectem as diferentes posições dos seus utilizadores sobre a moralidade do terrorismo e, especialmente, sobre a moralidade do uso ilegítimo da força em geral. Estas incertezas estão intimamente conectadas com as incertezas relativas à distinção entre terrorismo e “combate pela liberdade”, como a rebelião, a guerra civil, a sublevação, a guerra de guerrilha com o objectivo, por exemplo, de libertação nacional. Aqueles que consideram o mal provocado a inocentes uma característica essencial do terrorismo, têm tendência para considerar que o “combate pela liberdade” envolve, inter alia, o ferimento, a morte ou a coação de culpados. Isso tornaria possível considerar o “assassinato político” numa espécie de “combate pela liberdade”. Leiser afirma que a guerra de guerrilha caracteriza-se por acções de pequena escala, não convencionais e limitadas, desenvolvidas por forças irregulares “contra as forças militares regulares, as suas linhas de abastecimento e de comunicação”
[1]. Esta descrição seria perfeita se fosse possível determinar se os soldados que são o alvo destas acções integram as forças militares de livre vontade.
A discussão anterior indica que a avaliação das actuais noções de terrorismo mostra que, para além de serem abertas e vagas, também são, como diz W. B. Gallie, “essencialmente contestadas”
[2]. Contudo, o termo “terrorismo”, tal como a maioria das expressões vagas e controversas, conserva, nos diferentes usos, um “significado nuclear”. Esse significado nuclear inclui a ideia de que os actos terroristas são actos de coerção ou de uso actual da força[3], dirigido a ganhos monetários (terrorismo predatório), à vingança (terrorismo retaliatório), a fins políticos (terrorismo político), ou a fins claramente morais/religiosos (terrorismo moralista/religioso)[4].
O que é em absoluto essencial para uma definição adequada de terrorismo, já que ajuda a distingui-lo de todos os outros usos da força ou coerção, mas que a maioria das definições que encontrei não possui, é o que chamarei de “carácter bifocal” do terrorismo. Refiro-me à distinção entre (a) as “vítimas imediatas”, os indivíduos que são os alvos imediatos do terrorismo, e (b) “os vitimizados”, aqueles que embora sejam alvos indirectos, são os alvos reais dos actos terroristas. As vítimas são normalmente governos individuais ou países ou certos grupos de governos ou países, ou instituições ou grupos específicos no interior de um dado país. Os verdadeiros alvos podem ser certos sistemas ou regimes sociais, económicos ou políticos de que os terroristas não gostam ou que esperam mudar ou destruir por intermédio das suas actividades terroristas. […]”


[1] Ibid., 381, Itálico no original.
[2] W. B. Gallie, “Essentially Contested Concepts”, Proceedings of the Aristotelian Society, n.s., 56 (March 1956), 180 e ss. Mas Gallie mantém que um conceito deve ter certas características para além da avaliação (enumera-as nas pp. 171-172) para ser “essencialmente contestado neste sentido.
[3] Aqueles que usam o “terrorismo” como um termo condenatório deviam substituir “violência” por “força”.
[4] Tomei as categorias “predatório” e “moralista” emprestadas de Edel, “Notes on Terrorism”, 453,. Algumas mas não todas as formas de terrorismo moralista são terrorismo político e vice-versa. O “narcoterrrorismo” é uma subforma especial de terrorismo predatório, e não uma forma adicional, separada de terrorismo. Para esta distinção fundamental do terrorismo como um tipo de uso da força ou da violência para certos fins, estou em dívida com o ensaio de Edel.

Problema do Livre-arbítrio

Antes de entrar em contacto com a Filosofia acreditamos tipicamente que a maioria das pessoas, a maioria do tempo, escolhe as suas acções livremente e é, por isso, moralmente responsável por elas. Por exemplo, pensamos habitualmente que os assassinos condenados não são apenas responsáveis pelos seus crimes, mas que o são também do ponto de vista moral, quer dizer, merecem ter sido condenados. Ou quando olhamos para as nossas acções e para a nossa personalidade com orgulho ou com vergonha, é por considerarmos que somos moralmente responsáveis por elas. Na realidade, vemo-nos como pessoas exactamente por considerarmos que somos responsáveis. Mas para sermos responsáveis pelas nossas acções e pela nossa personalidade, é necessário que elas resultem de escolhas nossas e que sejam livres. É injusto responsabilizar as pessoas por algo que fizeram sem o escolherem livremente. Portanto, a verdade de sermos moralmente responsáveis depende da verdade de sermos livres, quer dizer, de realizarmos escolhas livres. No problema do livre-arbítrio, os filósofos perguntam se existe liberdade nas nossas escolhas para saberem se podemos ser responsabilizados pelos nossos comportamentos e se podemos justificadamente expressar remorso ou culpa ou castigo.
Que tipo de problema é o problema do livre arbítrio?
É um problema de Filosofia da Mente, mas também é um problema de Ética. É ainda um problema de Filosofia da Ciência, pois envolve questões relacionadas com a verdade do determinismo. Mas as perguntas sobre a liberdade de acção fazem surgir questões sobre o que é possível fazermos e questões sobre a possibilidade e a necessidade da acção, o que nos transporta imediatamente para a Metafísica. Além disso, como há versões do problema do livre-arbítrio que resultam da reflexão sobre a compatibilidade da liberdade humana com o facto de Deus saber a priori o que vamos fazer, as questões levantadas pelo livre-arbítrio podem levar-nos para a Epistemologia e para a Filosofia da Religião. Finalmente, como é presumível que seja errado punir alguém que não seja responsável pelos seus actos, o livre-arbítrio é uma questão central na Filosofia do Direito, e, portanto, na Filosofia Política. Para que os meus apelos constantes à autonomia sejam aceitáveis, deve ser possível que as pessoas sejam responsáveis pelas suas decisões e, dessa forma, pelas suas vidas.
Ainda assim, importa sublinhar que o problema do livre-arbítrio não é um problema de Filosofia Política. Apenas tem ramificações na Filosofia Política. Mas tal não quer dizer que a liberdade não ocupe um lugar central nesta área da filosofia. Simplesmente o que interessa em Filosofia Política não são as questões descritivas acerca da liberdade, mas as questões normativas acerca da liberdade, quer dizer, não se trata de saber que liberdade temos, mas de saber que liberdade devemos ter. Quando a liberdade é encarada como um problema de Filosofia Política, são abordados problemas como os seguintes:
- A que liberdades têm as pessoas direito?
- Terão as pessoas liberdades particulares que não podem ser postas em causa pelas outras pessoas ou pelo Estado (por exemplo, liberdade de expressão, liberdade de culto, liberdade sexual, …)? Ou será que o Estado tem o poder de determinar, por exemplo, o que as pessoas podem dizer, ou em que Deus acreditar, ou ainda qual a orientação sexual?
O problema do livre arbítrio é um problema acerca do tipo de entidade que o ser humano é e, em função disso, é um problema acerca de saber se tem ou não tem a capacidade de escolher entre cursos/possibilidades de acção alternativos (A ou B ou C ou …). Podemos supor, para exemplificar, um mundo possível em que o sujeito A vive num regime democrático cujo estado interfere minimamente na sua vida e que, quando o faz, é apenas para garantir as suas liberdades particulares (por exemplo, de expressão, de culto, etc), mas ainda assim não tem livre-arbítrio, isto é, não tem liberdade de escolha já que é deficiente mental. O problema do livre-arbítrio é, por isso, um problema metafísico central que entronca com a Filosofia da Mente e com a Ética, o que o torna num dos problemas mais intrigantes e complexos da Filosofia.
O problema do livre-arbítrio, embora seja bastante complexo, pode formular-se de uma forma bastante simples, a saber: se tudo o que fazemos é causado por coisas anteriores que não fizemos, como é que podemos ser moralmente responsáveis pelas nossas acções? Ou ainda: se não somos livres como podemos ser responsáveis?

Amy Gutmann & Dennis Thompson, "Democracia deliberativa"

"A democracia deliberativa afirma a necessidade de justificar as decisões tomadas pelos cidadãos e pelos seus representantes. Espera-se que ambos justifiquem as leis que querem impor uns aos outros. Numa democracia, os líderes devem dar razões que justifiquem as suas decisões e responder às razões que, por sua vez, são apresentadas pelos cidadãos. Mas a deliberação não é necessária para todos os assuntos, nem é necessária em todas as situações. A democracia deliberativa deixa lugar para outros processos de tomada de decisão - incluindo negociações entre grupos e operações secretas ordenadas pelo poder executivo -, desde que tenham eles próprios usado estas formas de justificação num momento qualquer do processo deliberativo. A sua primeira e mais importante característica é, então, o requisito de fornecer razões.
As razões que a democracia exige aos cidadãos e aos seus representantes devem remeter para os princípios que os indivíduos tentam encontrar através de um processo de cooperação justo, que não podem razoavelmente rejeitar. As razões não são meramente processuais (por exemplo, um país entrar em guerra porque “essa é a vontade da maioria”) nem meramente substantivas (por exemplo, porque a “guerra promove o interesse nacional ou a paz mundial”). São razões que devem ser aceites por pessoas livres e iguais que procuram formas de cooperação justas.
A base moral do processo de fornecer razões é comum a diversas concepções de democracia. As pessoas devem ser tratadas não como meros objectos das leis ou como sujeitos passivos da governação, mas como agentes autónomos que participam directamente ou através dos seus representantes no governo da sua própria sociedade. Na democracia deliberativa, uma forma importante de participação dos agentes consiste em apresentar ou dar razões, ou em exigir que os governantes o façam, com o objectivo de justificar as leis que regulam a convivência mútua. Essas razões servem tanto para produzir uma decisão justificada como para expressar o valor do respeito mútuo. Não é suficiente que os cidadãos afirmem o seu poder através de negociações baseadas no interesse de grupos particulares ou através de eleições. Por exemplo, não faz sentido sugerir que a decisão de entrar em guerra deva ser determinada por um jogo de interesses ou que deva estar sujeita a referendo. As afirmações de poder e as expressões da vontade, embora sejam obviamente elementos centrais da política democrática, devem ser racionalmente justificadas. Quando um governo apresenta uma razão fundamental para justificar a guerra e depois descobre-se que é falsa ou, o que é pior, enganadora, deve-se não apenas questionar as razões que justificaram a guerra, mas também o respeito que o governo tem pelos cidadãos.
Uma segunda característica da democracia deliberativa é que as razões dadas neste processo devem ser acessíveis a todos os cidadãos interessados. Para justificar uma imposição sobre a sua vontade, os seus concidadãos devem apresentar razões que sejam compreensíveis para si. Se o objectivo é impor a sua vontade aos outros, então isso é o mínimo que lhes deve ser exigido. Este tipo de reciprocidade significa que as razões devem ser públicas em dois sentidos. Primeiro, significa que a própria deliberação não deve ocorrer apenas na intimidade da consciência de alguém, mas que deve ser pública. Neste sentido, a democracia deliberativa contrasta com a concepção de democracia de Rousseau, na qual os indivíduos reflectem sobre o que será correcto para a sociedade como um todo, e depois juntam-se em assembleia para votar em conformidade com a vontade geral.
O outro sentido em que as razões devem ser públicas, diz respeito ao consentimento. Uma justificação deliberativa não se inicia sequer se aqueles a quem se dirige não estiverem em condições de entender o seu conteúdo essencial. Por exemplo, não é aceitável apelar apenas para a autoridade da revelação, seja ela de natureza divina ou secular. A maior parte dos argumentos para entrar em guerra com o Iraque apelavam às evidências e a crenças acessíveis a qualquer pessoa. Embora o Presidente Bush tivesse dito que pensava ter Deus do seu lado, não assentava o seu argumento em qualquer tipo de instrução especial originária do seu aliado divino (que podia ou não ter entrado na coligação da vontade).
Na verdade, algumas das evidências apresentadas pelos dos dois lados do debate eram técnicas (por exemplo, relatórios dos inspectores da ONU). Mas esta é uma ocorrência comum nos governos modernos. Os cidadãos têm frequentemente que confiar em peritos. Isso não significa que as razões ou a sua fundamentação, sejam inacessíveis. Os cidadãos têm razões para confiar nos peritos se estes descreverem a base das suas conclusões de uma forma tal que os cidadãos as possam entender, e se estes possuírem outras razões independentes para acreditar que os peritos são confiáveis (como, por exemplo, outras avaliações correctas que os peritos tenham feito no passado, ou uma estrutura de tomada de decisão que contém verificações realizadas por peritos que possuem razões para exercer o escrutínio crítico sobre quaisquer outros).
Em rigor, a administração Bush fundamentou amplamente a sua decisão de entrar em guerra em informações fornecidas pelos serviços secretos. Na altura, os cidadãos não estavam em condições de aferir do valor dessas informações, nem de aferir da sua importância para a justificação da administração. Em princípio, usar este tipo de informação não viola necessariamente a condição da acessibilidade se forem apresentadas boas razões para manter a confidencialidade e se posteriormente forem criadas oportunidades para reavaliar a sua evidência, o que acabou por acontecer neste caso, pois as razões foram efectivamente questionadas e depois verificou-se que eram bastante duvidosas. A democracia deliberativa teria sido melhor servida se as razões pudessem ter sido avaliadas antes da tomada de decisão.
A terceira característica da democracia deliberativa refere-se ao facto de ser um processo que visa produzir uma decisão que seja vinculativa por um certo período de tempo. Deste modo, o processo deliberativo não é como um talkshow ou como um seminário académico. Os participantes não discutem só por discutir; nem sequer por amor à verdade (embora a solidez dos seus argumentos seja uma virtude deliberativa, já que é uma condição necessária da justificação da decisão). Eles envolvem-se numa discussão para influenciar a decisão que o governo tomará ou o processo que afectará o modo como as suas decisões serão tomadas no futuro. A determinada altura, o processo deliberativo cessa temporariamente e os líderes decidem. O presidente manda as tropas para a guerra, a legislatura aprova a lei e os cidadãos votam para eleger os seus representantes. O processo de deliberação acerca da decisão de entrar em guerra com o Iraque durou algum tempo, mais do que é habitual nestas circunstâncias. Algumas pessoas achavam que devida continuar por mais algum tempo (por exemplo, para permitir que os inspectores da ONU pudessem terminar os seus trabalhos). Só que num dado momento o presidente teria que decidir se entrava ou não em guerra e uma vez tomada essa decisão, cessaria o processo deliberativo.
Ao mesmo tempo um processo de deliberação similar mas sobre uma questão significativamente diferente continuou: seria a decisão inicial justificável? Aqueles que a questionaram, não o faziam por acreditar que podiam voltar atrás, mas para lançar dúvidas sobre a competência ou a avaliação da administração Bush. Também procuravam influenciar decisões futuras – pressionando a ONU e outras nações para se envolverem no esforço de reconstrução do Iraque ou apenas tentando reduzir as possibilidades de reeleição de Bush.
O facto da discussão continuar ilustra a quarta característica da democracia deliberativa – trata-se de um processo dinâmico. Embora a deliberação vise uma decisão justificável, não pressupõe que ela seja efectivamente justificável, no sentido em que uma justificação actual possua um alcance futuro indefinido. Mantém-se aberta a possibilidade de um diálogo contínuo, através do qual os cidadãos podem criticar decisões anteriores e seguir em frente em razão dessas críticas. Embora uma decisão possa valer durante algum tempo, é sempre provisória no sentido em que pode sempre ser reavaliada. Esta é uma característica da democracia deliberativa que é ignorada até pela maioria dos seus defensores. (…)
Os democratas deliberativos preocupam-se tanto com o que acontece depois de uma decisão, como com o que acontece antes. Manter o processo de tomada de decisão em aberto – reconhecendo o seu carácter provisório – é importante por duas razões. Primeiro, na política como na vida prática, os processos de tomada de decisão e os processos de compreensão de que dependem são imperfeitos. Não podemos afirmar que as decisões que tomamos hoje se revelem correctas amanhã, e mesmo aquelas decisões que no presente pareçam bastante consistentes, podem parecer menos justificáveis à luz de novas evidências. Mesmo no caso daquelas decisões que são irreversíveis, como a decisão de atacar o Iraque, novas reavaliações podem conduzir a escolhas diversas das que foram tomadas inicialmente. Segundo, a maior parte das decisões na política não são consensuais. Aqueles cidadãos e os seus respectivos representantes que discordam da decisão inicial poderão vir a aceitá-la se considerarem que no futuro terão a oportunidade de alterar.
Uma implicação importante da natureza dinâmica da democracia deliberativa é que exige que a discussão constante respeite aquilo que designamos por princípio da economia do desacordo moral. Ao fornecer razões para as suas decisões, os cidadãos e os seus representantes devem procuram encontrar justificações que minimizem as suas diferenças relativamente aos seus opositores. Os democratas deliberativos não esperam que seja sempre possível chegar a acordo. O modo como os cidadãos lidam com o desacordo, que é endémico à vida política, deve ser uma questão central de qualquer democracia. Praticar a economia do desacordo moral promove o valor do respeito mútuo (que é o núcleo da democracia deliberativa). Ao economizar nos seus desacordos, os cidadãos e os seus representantes podem continuar a trabalhar em conjunto para aproximar posições, se não em relação às políticas que estão na origem do desacordo, pelo menos em relação às políticas em que há elevadas probabilidades de consenso. A cooperação para a reconstrução do Iraque não requer que as partes concordem com a decisão inicial de entrar em guerra. Questionar o patriotismo daqueles que criticam a guerra com o Iraque, ou opor-se aos custos de manutenção das tropas, não promove a economia do desacordo moral.
Combinando estas quatro características, podemos definir democracia deliberativa como uma forma de governo através do qual cidadãos livres e iguais (e respectivos representantes) justificam decisões através de um processo em que trocam razões que sejam mutuamente aceitáveis e geralmente acessíveis, com o objectivo de chegar a conclusões que sejam vinculativas no presente para todos os cidadãos, mas que estejam abertas a reavaliação futura. Esta definição deixa obviamente em aberto algumas questões. Podemos melhorá-la e defender os seus pressupostos avaliando em que medida a democracia deliberativa é democrática; para que serve; porque é melhor que as alternativas disponíveis; que tipos de democracia deliberativa são justificáveis; e como podemos responder aos críticos.”

Gutmann, Amy & Thompson, Dennis (2004). Why deliberative democracy? New Jersey: Princeton University Press, pp. 3-7 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

John Rawls, "Democracia deliberativa"

Início hoje a publicação de textos que considero úteis para a discussão da democracia no percurso "A Filosofia na cidade" do Programa de Filosofia do 11º Ano. Dada a actualidade do conceito de democracia deliberativa e do facto de constituir o núcleo do que já pode ser considerado uma nova vertente na teoria democrática contemporânea, apresentarei textos potenciadores de uma discussão crítica que reconhece a centralidade do conceito de deliberação pública para explicar e compreender a dinâmica dos conflitos e a formação de acordos políticos em sociedades democráticas complexas e plurais. Começo com um pequeno texto de John Rawls.


“A democracia tem uma longa história, desde o seu início na Grécia clássica até o presente, e há muitas ideias diferentes de democracia. Aqui, estou interessado apenas numa democracia constitucional bem ordenada (…) compreendida também como uma democracia deliberativa. A ideia definitiva a favor da democracia deliberativa é a ideia da própria deliberação. Quando deliberam, os cidadãos trocam pontos de vista e debatem as razões que os sustentam no que diz respeito a questões políticas públicas. Eles supõem que as suas opiniões políticas podem ser revistas por meio da discussão com outros cidadãos, e não são, portanto, simplesmente o resultado fixo dos seus interesses privados ou não-políticos. Nesse ponto a razão pública é crucial, pois caracteriza o raciocínio dos cidadãos quanto a elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica. Embora eu não possa aqui discutir plenamente a natureza da democracia deliberativa, assinalo alguns pontos-chave para indicar o lugar e o papel mais amplos da razão pública.
Há três elementos essenciais na democracia deliberativa. Um é uma ideia de razão pública, embora nem todas as ideias de tal tipo sejam as mesmas. Um segundo elemento é uma estrutura de instituições democráticas constitucionais que especifique o cenário dos corpos legislativos deliberativos. O terceiro é o conhecimento e o desejo dos cidadãos em geral de seguir a razão pública e concretizar o seu ideal na conduta política. As implicações imediatas desses elementos essenciais são o financiamento público de eleições e o provimento de ocasiões públicas para a discussão ordenada e séria de questões fundamentais e de questões de política pública. A deliberação pública deve ser possível, reconhecida como característica básica da democracia, e livre da maldição do dinheiro. Do contrário, a política é dominada por interesses corporativos e outros interesses organizados, que através de grandes contribuições para as campanhas eleitorais distorcem, quando não excluem, a discussão e a deliberação públicas.
A democracia deliberativa também reconhece que, sem educação ampla sobre os aspectos básicos do governo democrático para todos os cidadãos, e sem um público informado a respeito de problemas prementes, as decisões políticas e sociais, cruciais não podem pura e simplesmente ser tomadas. Mesmo que líderes políticos previdentes desejassem fazer mudanças e reformas sensatas, não poderiam convencer um público mal informado e descrente a aceitá-Ias e segui-Ias. Por exemplo, há propostas sensatas quanto ao que devia ser feito a respeito da crise a que se alega estar a chegar na Segurança Social; diminuir o crescimento dos níveis dos beneficios, elevar gradualmente a idade de reforma, impor limites aos cuidados médicos dispendiosos para prolongar a vida por apenas algumas semanas ou dias, e aumentar as contribuições agora, em vez de enfrentar aumentos mais tarde. Mas, como as coisas estão, os que seguem o "grande jogo da política" sabem que nenhuma dessas propostas sensatas será aceite. A mesma história pode ser contada sobre a importância de apoiar instituições internacionais (como as Nações Unidas), ajuda internacional adequadamente aplicada e interesse pelos direitos humanos interna e externamente. Na procura constante do lucro para financiar campanhas, o sistema político é simplesmente incapaz de funcionar. Os seus poderes deliberativos estão paralisados.”

Rawls, John (2001). O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes, pp. 182-3 (Adaptado por Vítor João Oliveira)

Será que somos todos egoístas?

Pedi aos meus alunos que respondessem ao problema filosófico seguinte "Será que somos todos egoístas?". Eis a resposta dada pelo grupo do Daniel, do Gonçalo, do João, do Ricardo e do Rúben (10º C):


Na realidade, ninguém é verdadeiramente altruísta, o que pode ser explicado por uma simples razão: o Homem não tem essa capacidade. Todas as acções humanas são motivadas pelo egoísmo, pois o ser humano apenas se interessa consigo mesmo e em satisfazer as suas necessidades. Na verdade, todo o comportamento “altruísta” está claramente ligado ao benefício próprio: ao desejo de reconhecimento público ou ao prazer da satisfação pessoal, por exemplo, ou ainda à esperança da recompensa divina.
Cada acto de aparente altruísmo pode ser justificado ou substituído por uma explicação reveladora de uma motivação egoísta. Veja-se o caso da caridade. Embora os actos de caridade pareçam actos de profunda abnegação, não passam do prazer de cada um na demonstração dos seus próprios poderes. Um homem caridoso está apenas a demonstrar a si e às outras pessoas que tem mais recursos que os outros, que é superior, pois é capaz de cuidar não só de si mesmo, mas também de outrem, embora às vezes possa não pensar estar a fazê-lo.
Também a piedade é uma pura farsa “altruísta”, uma vez que a razão pela qual nos sentimos incomodados com a infelicidade dos outros é pensarmos que a mesma coisa nos podia acontecer a nós. A “piedade” consiste em imaginar os nossos próprios infortúnios futuros, partindo da consciência das calamidades dos outros. A explicação da piedade dada pela teoria egoísta pode assim esclarecer facilmente o facto de sentirmos maior piedade de uma pessoa boa do que de uma pessoa má: a piedade requer um certo sentido de identificação com a pessoa que sofre, pois sentimos piedade de alguém quando nos sentimos no seu lugar, mas como todos pensamos ser pessoas boas, não nos identificamos com as que pensamos serem más. Assim, os nossos sentimentos de piedade variam em função directa do carácter da pessoa que sofre, porque o nosso sentido de identificação varia da mesma forma.
Do mesmo modo, cada um de nós está intimamente familiarizado com as suas próprias necessidades e desejos, não conhecendo de uma forma correcta as necessidades das outras pessoas e não estando, portanto, bem colocados para as satisfazer. Para além disso, utilizar as pessoas como objecto da nossa “caridade” é degradante para elas e priva-as da sua dignidade – as pessoas deixam de ter confiança em si mesmas e tornam-se dependentes dos outros. Tomemos como exemplo um mendigo habituado a receber esmolas dos outros. Este torna-se dependente das esmolas que as pessoas lhe dão e convence-se de que é incapaz de arranjar emprego, deixando de ter confiança em si mesmo.
Um outro ponto forte da teoria egoísta é a evidência da preocupação que todos temos connosco próprios, sendo um factor de importância esmagadora na motivação. Na verdade, cada um de nós tem uma só vida, tendo esta uma importância suprema. 0 egoísmo ético é a teoria que melhor valoriza o indivíduo, permitindo a cada pessoa encarar a sua vida como tendo um valor único. A ética do altruísmo leva a vida do indivíduo como algo que devemos estar prontos a sacrificar para o bem dos outros não tomando a sério o valor do indivíduo humano nem dos seus próprios interesses. Faz-se então a escolha parecer óbvia ao retratar a ética do altruísmo como uma doutrina demente que apenas um puro idiota poderia aceitar.
Para além disso, a doutrina do egoísmo não põe em causa a moralidade do senso comum, apenas a tenta explicar/sistematizar: não nega a existência de comportamentos como dizer a verdade, cumprir as nossas promessas, não fazer mal aos outros, entre outros, apenas explica que estes comportamentos são na verdade actos egoístas e, como tal, motivados pelo interesse próprio. Um exemplo que demonstra claramente esta situação é o seguinte: um comerciante de uma feira apenas dá o troco correcto aos seus clientes com medo de ser penalizado pela sociedade por burlar as pessoas.
Em suma, a ética altruísta é uma espécie de fraude, uma vez que quase todas as pessoas, mesmo aquelas que defendem o altruísmo e o auto-sacrifício, se colocam em primeiro lugar, e aquelas que não o fazem é apenas por recearem ficar mal vistas pela sociedade.

Haig Khatchadourian, "A Moralidade do Terrorismo" (Parte III)

"Os Elementos do Terrorismo
As principais formas de terrorismo que existem actualmente no mundo partilham pelo menos cinco aspectos ou elementos importantes que uma descrição adequada do terrorismo deve incluir. São:
(1) As causas históricas e culturais, incluindo as raízes socioeconómicas da sua prevalência (por exemplo, a falta da terra natal ou a sua perda).
(2) Os objectivos imediatos, intermédios e a longo prazo ou últimos. A retaliação é um exemplo dos primeiros, enquanto a publicidade é um exemplo dos segundos. A recuperação da terra natal perdida, a aquisição ou o exercício do poder [pelo estado], … ou o reforço da [sua] autoridade,”
[1] (que F. J. Hacker designa de terrorismo a partir de cima[2]), ou um desafio à… autoridade [do estado] (que designa de terrorismo a partir de baixo) são exemplos de objectivos terroristas a longo prazo.
(3) O terceiro aspecto ou elemento consiste nas formas ou métodos de coerção ou força
[3] geralmente usados para aterrorizar as vítimas imediatas ou para coagir[4] aqueles que são seriamente afectados pelos terroristas, as vítimas. Estas são os indivíduos, grupos, governos ou países que estão intimamente conectados com os alvos imediatos, os quais são eles próprios, embora indirectamente, os verdadeiros alvos dos actos terroristas[5]. As formas e os métodos de coerção e de força serviram para definir as diferentes espécies e formas de terrorismo de qualquer tipo.
(4) A natureza ou tipo de organizações e instituições, ou os sistemas políticos que praticam ou patrocinam o terrorismo. Por exemplo, no terrorismo de estado o terrorismo é praticado por agentes do estado, enquanto que no caso do terrorismo patrocinado pelo estado, o terrorismo é financiado militarmente ou apoiado através de outras formas, mas não é directamente conduzido pelo estado ou pelos estados patrocinadores.
(5) O contexto ou circunstâncias sociais, políticas, económicas ou militares em que ocorre o terrorismo também é importante e deve ser considerado. Por exemplo, saber se o terrorismo ocorre em tempo de paz ou em tempo de guerra
[6]. No último caso, também existe uma importante dimensão ética relativamente à violência terrorista ou às ameaças aos não-combatentes, tal como aconteceu no bombardeamento de vilas e cidades com uma precisão “saturante” nas guerras do século XX. Isto pode tornar-se incalculavelmente mais importante no caso da possibilidade de terrorismo nuclear.[7]
A única forma de terrorismo a que (1) normalmente não se aplica é o terrorismo predatório – o terrorismo motivado pela ganância. Mas o terrorismo predatório é relativamente pouco importante, especialmente para a presente discussão da moralidade do terrorismo, uma vez que é claramente imoral. Embora a definição de Leiser, que referimos antes, seja claramente insuficiente, possui o mérito de incorporar os diversos aspectos do terrorismo que mencionei. Mas falha por não evidenciar os diversos tipos de causas do terrorismo e por nunca referir o que designa de “fins políticos” dos terroristas[8]."


[1] Vetter et al., Perspectives, 8.
[2] Frederick J. Hacker, Crusaders, Criminals, Crazies (Nova Iorque, 1977), citado em Vetter et al., 8.
[3] Uso o termo “força” porque é moralmente neutra ou quasi-neutra, ao contrário do termo mais comum “violência”.
[4] Wienberg & Davis, Introdução, 6, afirmam: “O propósito objectivo de prejudicar as vítimas imediatas é subordinado ao propósito de enviar uma mensagem a uma população alvo mais ampla [os “vitimizados”].” Embora esta afirmação mostre o seu reconhecimento do carácter bifocal do terrorismo, a ideia de “enviar uma mensagem” é demasiado geral e vaga para ser útil.
[5] Tomei a expressão “a vítima imediata” emprestada de Abraham Edel, “Notas sobre o Terrorismo”, em Values in Conflit, Burton M. Leiser, ed. (New York, 1981), 458.
[6] Esta e a próxima secção correspondem a uma ampla reprodução, apesar de algumas alterações estilísticas e substantivas, ao meu “Terrorism and Morality”.
[7] Cfr. Joel Kovel, Against The State of Nuclear Terror (Bóston, MA, 1983), Robert J. Lifton & Richard Falk, Indefensible Weapons (New York, 1982), e Helen Caldicott, Missile Envy, The Arms Race and Nuclear War (New York, 1986).
[8] Leiser, Liberty, Jutice and Morals, 375.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

David Chalmers, "Afinal o que é a ciência?" (Parte II)

1. O princípio de indução pode ser justificado?
De acordo com o indutivista ingénuo, a ciência começa com a observação, a observação fornece uma base segura sobre a qual o conhecimento científico pode ser construído, e o conhecimento científico é obtido a partir de proposições de observação por indução. (…) [A] explicação indutivista da ciência será criticada lançando-se dúvida sobre a validade e a justificabilidade do princípio da indução. […]
A minha descrição do princípio da indução diz: “Se um grande número de As foi observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses As possuíam sem excepção a propriedade B, então todos os As possuem a propriedade B”. Este princípio, ou algo bastante semelhante, é o princípio básico em que se fundamenta a ciência, se a posição indutivista ingénua for aceite. Sob esta luz, uma questão óbvia com a qual se defronta o indutivista é: “Como pode o princípio da indução ser justificado?” isto é, se a observação nos proporciona um conjunto de proposições de observação como sendo o nosso ponto de partida (…), por que é que o raciocínio indutivo leva ao conhecimento científico confiável e talvez mesmo verdadeiro? Existem duas linhas de abordagem abertas ao indutivista na tentativa de responder a esta questão. Ele pode tentar justificar o princípio apelando para a lógica, um recurso que livremente lhe garantimos, ou pode tentar justificar o princípio apelando para a experiência, um recurso que está na base de toda a sua abordagem da ciência. Examinemos então estas duas linhas de abordagem.
Os argumentos lógicos válidos caracterizam-se pelo facto de que, se a premissa for verdadeira, então a conclusão deve ser verdadeira. Os argumentos dedutivos possuem este carácter. O princípio da indução certamente se justificaria se os argumentos indutivos também o possuíssem. Mas não possuem. Os argumentos indutivos não são argumentos logicamente válidos. Não é o caso que, se as premissas de uma inferência indutiva são verdadeiras, então a conclusão deva ser verdadeira. É possível a conclusão de um argumento indutivo ser falsa embora as premissas sejam verdadeiras e, ainda assim, não haver contradição envolvida. Suponhamos, por exemplo, que até hoje eu tenha observado uma grande quantidade de corvos sob uma ampla variedade de circunstâncias e tenha observado que todos eles são pretos e que, com base nisto, concluo: “Todos os corvos são pretos”. Esta é uma inferência indutiva perfeitamente legítima. As premissas da inferência são um grande número de afirmações do tipo “Observou-se que o corvo x era preto no período p”, e nós tomamos todas como sendo verdadeiras. Mas não há garantia lógica de que o próximo corvo que observarei não seja cor-de-rosa. Se for este o caso, então a conclusão “Todos os corvos são pretos” será falsa. Isto é, a inferência indutiva inicial, que era legítima na medida em que satisfazia os critérios especificados pelo princípio de indução, teria levado a uma conclusão falsa, apesar do facto de que todas as premissas da inferência eram verdadeiras. Não há nenhuma contradição lógica em afirmar que todos os corvos observados se revelaram pretos e também que nem todos os corvos são pretos. A indução não pode ser justificada puramente em bases lógicas.
Um exemplo mais interessante embora um tanto medonho é uma elaboração da história que Bertrand Russell conta do peru indutivista. Esse peru descobrira que, na sua primeira manhã na fazenda dos perus, fora alimentado às 9 da manhã. Contudo, sendo um bom indutivista, não tirou conclusões apressadas. Esperou até recolher um grande número de observações do facto de que era alimentado às 9 da manhã, e fez essas observações sob uma ampla variedade de circunstâncias, às quartas e quintas-feiras, em dias quentes e dias frios, em dias chuvosos e dias secos. A cada dia acrescentava uma outra proposição de observação à sua lista. Finalmente, a sua consciência indutivista ficou satisfeita e levou a cabo uma inferência indutiva para concluir: “Eu sou alimentado sempre às 9 da manhã”. Mas, ai de mim, essa conclusão demonstrou ser falsa, de modo inequívoco, quando, na véspera de Natal, ao invés de ser alimentado, fui degolado. Uma inferência indutiva com premissas verdadeiras levara a uma conclusão falsa.
O princípio da indução não pode ser justificado meramente por um apelo à lógica. Dado este resultado, parece que o indutivista, de acordo com o seu próprio ponto de vista, é agora obrigado a indicar como o princípio de indução pode ser derivado da experiência. Como seria uma tal derivação? Presumivelmente, seria semelhante a este facto. Observou-se que a indução funciona num grande número de ocasiões. As leis da óptica, por exemplo, derivadas por indução dos resultados da experiências laboratoriais, tê, sido usadas em numerosas ocasiões no projecto de instrumentos ópticos, e esses instrumentos têm funcionado satisfatoriamente. Mais uma vez, as leis do movimento planetário, derivadas de observações de posições planetárias, etc., têm sido empregues com sucesso para prever a ocorrência de eclipses. Esta lista poderia ser largamente estendida com relatos de previsões e explicações bem sucedidas tornadas possíveis por leis e teorias científicas derivadas da indutivamente. Dessa maneira, o princípio da indução é justificado.
A justificação anterior da indução é totalmente inaceitável, como demonstrou conclusivamente David Hume já em meados do século XVIII. O argumento proposto para justificar a indução é circular porque emprega o próprio tipo de argumento indutivo cuja validade está supostamente ela própria a precisar de justificação. A forma do argumento da justificação é como se segue:
O princípio da indução foi bem sucedido na ocasião x1.
O princípio da indução foi bem sucedido na ocasião x2 e etc.
Logo, o princípio da indução é sempre bem sucedido.
A afirmação universal que assegura a validade do princípio de indução é aqui inferida de várias afirmações que registam aplicações passadas do princípio bem sucedidas. O argumento é, portanto, indutivo e assim não pode ser usado para justificar o princípio da indução. Não podemos usar a indução para justificar a indução. Esta dificuldade associada à justificação da indução tem sido tradicionalmente chamada de “o problema da indução”.
Parece, então, que o indutivista ingénuo está em dificuldades. A exigência extrema de que todo o conhecimento deve ser obtido da experiência por indução, exclui o princípio da indução básico à posição indutivista.
Além da circularidade envolvida nas tentativas de justificar o princípio da indução, como já afirmei antes, o princípio sofre de outras deficiências. Estas originam-se da vagueza e dubiedade da exigência de que um “grande número” de observações deve ser feito sob uma ampla variedade de circunstâncias.
Quantas observações constituem um grande número? Uma barra de metal deve ser aquecida dez vezes, cem vezes ou quantas vezes mais antes que possamos concluir que ela sempre se expande quando aquecida? Seja qual for a resposta a esta questão, pode-se produzir exemplos que lancem dúvida sobre a invariável necessidade de um grande número de observações. Para ilustrar, refiro-me à vigorosa reacção pública contra as armas nucleares que se seguiu ao lançamento da primeira bomba atómica sobre Hiroshima perto do fim da II Guerra Mundial. Essa reacção baseava-se na compreensão de que as bombas atómicas causavam morte e destruição em larga escala e extremo sofrimento humano. E, no entanto, esta crença generalizada baseava-se apenas numa dramática observação. Novamente, seria necessário um indutivista muito teimoso para colocar a mão no fogo muitas vezes antes de concluir que o fogo queima. Em circunstâncias como essas, a exigência de um grande número de observações parece inadequada. Noutras situações, a exigência parece mais plausível. Por exemplo, ficaríamos justificadamente relutantes em atribuir poderes sobrenaturais a uma vidente com base apenas numa previsão correcta. Do mesmo modo, seria justificável concluir qualquer conexão causal entre fumar e cancro no pulmão a partir da evidência de que apenas um fumador inveterado contraiu a doença. Fica claro, penso eu, a partir destes exemplos, que, se o princípio da indução deve ser um guia para o que se estima ser uma inferência científica legítima, então é cláusula "grande número" terá que ser determinada detalhadamente.
A posição do indutivista ingénuo é, além disso, ameaçada, quando a exigência de que as observações devem ser feitas sob uma ampla variedade de circunstâncias é examinada de perto. O que deve ser considerado como uma variação significativa nas circunstâncias? Na investigação do ponto de ebulição da água, por exemplo, é necessário variar a pressão, a pureza da água, o método de aquecimento e a hora do dia? A resposta às primeiras duas questões é "Sim" e às duas seguintes é "Não". Mas quais são as bases para estas respostas? Esta questão é importante porque a lista de variações pode ser estendida indefinidamente pelo acréscimo de uma quantidade de variações subsequentes tais como a cor do recipiente, a identidade do experimentador, a localização geográfica e assim por diante. A menos que tais variações "supérfluas" possam ser eliminadas, o número de observações necessárias para se chegar a uma inferência indutiva legítima será infinitamente grande. Então quais são as bases nas quais um grande número de variações é julgado supérfluo? Eu sugiro que a resposta seja suficientemente clara. As variações que são significativas distinguem-se das supérfluas apelando-se ao nosso
conhecimento teórico da situação e dos tipos de mecanismos físicos em vigor. Mas, admitir isto, é admitir que a teoria joga um papel vital antes da observação. O indutivista ingénuo não pode se permitir fazer tal admissão [como se provou antes]. […]

2. O recuo para a probabilidade
Há uma maneira razoavelmente óbvia na qual a posição indutivista extremamente ingénua (…) pode ser enfraquecida numa tentativa de enfrentar alguma crítica. Um argumento em defesa de uma posição mais fraca pode correr mais ou menos da seguinte forma.
Não podemos estar cem por cento seguros de que, só porque observamos o pôr-do-sol a cada dia em muitas ocasiões, o sol vai se pôr todos os dias. (De facto, no Ártico e na Antártida, há dias em que o sol não se põe.) Não podemos estar cem por cento seguros de que a próxima pedra atirada não "cairá" para cima. Não obstante, embora generalizações às quais se chega por induções legítimas não possam ser garantidas como perfeitamente verdadeiras, elas são
provavelmente verdadeiras. A luz das evidências, é muito provável que o sol sempre vai se pôr em Lisboa, e que as pedras vão cair para baixo ao serem atiradas. Conhecimento científico não é conhecimento comprovado, mas representa conhecimento que é provavelmente verdadeiro. Quanto maior for o número de observações formando a base de uma indução e maior a variedade de condições sob as quais essas observações são feitas, maior será a probabilidade de que as generalizações resultantes sejam verdadeiras. Se é adoptada esta versão modificada da indução, então o princípio de indução será substituído por uma versão probabilística que dirá algo como: "Se um grande número de As foi observado sob uma ampla variedade de condições, e se todos esses As observados, sem excepção, possuíam a propriedade B, então todos os As provavelmente possuem a propriedade B". Esta reformulação não supera o problema da indução. O princípio reformulado ainda é uma afirmação universal. Ele implica, baseado num número limitado de eventos, que todas as aplicações do princípio levarão a conclusões provavelmente verdadeiras. As tentativas de justificar a versão probabilística do princípio de indução por apelo à experiência devem sofrer da mesma deficiência das tentativas de justificar o princípio na sua forma original. A justificação vai empregar um argumento do mesmo tipo que é visto como precisando de justificação.
Mesmo que o princípio de indução na sua versão probabilística pudesse ser justificado, existem ainda problemas subsequentes que devem ser enfrentados pelo nosso indutivista mais cauteloso. Esses problemas estão associados às dificuldades encontradas quando se tenta ser preciso a respeito justamente de quão provável é uma lei ou teoria à luz de evidência especificada. Pode parecer intuitivamente plausível que, conforme aumenta o apoio observável que uma lei universal recebe, a probabilidade dela ser verdadeira também aumenta. Mas esta intuição não resiste a um exame. Dada a teoria padrão de probabilidade, é muito difícil construir uma justificação da indução que evite a consequência de que a probabilidade de qualquer afirmação universal fazendo alegações sobre o mundo é zero, qualquer que seja a evidência observável. Colocando as coisas de uma forma não técnica, qualquer evidência observável vai consistir num número finito de proposições de observação, enquanto uma afirmação universal reivindica um número infinito de situações possíveis. A probabilidade de a generalização universal ser verdadeira é, desta forma, um número finito dividido por um número infinito, que permanece zero por mais que o número finito de proposições de observação, que constituem a evidência, tenha crescido.
Este problema, associado às tentativas de atribuir probabilidades a leis e teorias científicas à luz da evidência dada, originou um programa de pesquisa técnica detalhado que tem sido tenazmente desenvolvido pelos indutivistas nas últimas décadas. Têm sido elaboradas linguagens artificiais pelas quais é possível atribuir probabilidades únicas superiores a zero a generalizações, mas as linguagens são tão restritas que não contêm generalizações universais. Elas estão bem afastadas da linguagem da ciência.
Uma outra tentativa de salvar o programa indutivista envolve a desistência da ideia de atribuir probabilidades a leis e teorias científicas. Em vez disso, a atenção é dirigida para a probabilidade de previsões individuais estarem correctas. De acordo com esta abordagem, o objecto da ciência é, por exemplo, medir a probabilidade de o Sol nascer amanhã em vez da probabilidade de que ele sempre nascerá. Espera-se que a ciência seja capaz de fornecer uma garantia de que uma determinada ponte vai suportar tensões variadas e não cair, mas não que todas as pontes daquele tipo serão satisfatórias. Foram desenvolvidos alguns sistemas nessa linha permitindo a atribuição de probabilidades superiores a zero a previsões individuais. Mencionarei aqui duas críticas a estes sistemas. Primeiro, a noção de que a ciência está relacionada com a produção de um conjunto de previsões individuais em vez de produção de
conhecimento na forma de um complexo de afirmações gerais é, para dizer o mínimo, contra-intuitiva. Em segundo lugar, mesmo quando a atenção é restrita a previsões individuais, pode-se argumentar que as teorias científicas, e portanto as afirmações universais, estão inevitavelmente envolvidas na estimativa da probabilidade de uma previsão ser bem sucedida. Por exemplo, num sentido intuitivo, não técnico de "provável", podemos estar preparados para afirmar que é provável até certo grau que um fumador inveterado vá morrer de cancro no pulmão. A evidência que apoia a afirmação seria presumivelmente os dados estatísticos disponíveis. Mas esta probabilidade intuitiva será significativamente aumentada se houver uma teoria plausível e bem apoiada disponível que demonstre uma conexão causal entre o tabagismo e o cancro de pulmão. Da mesma forma, estimativas da probabilidade de que o sol nascerá amanhã aumentarão, logo que o conhecimento das leis que governam o comportamento do sistema solar seja levado em consideração. Mas esta dependência da probabilidade de exactidão previsões às teorias e leis universais arruína a tentativa dos indutivistas de atribuir probabilidades superiores a zero às previsões individuais. Logo que afirmações universais estejam envolvidas de uma maneira significativa, as probabilidades da exactidão das previsões individuais ameaçam ser novamente zero.

3. Respostas possíveis ao problema da indução
Diante do problema da indução e dos problemas relacionados, os indutivistas têm passado de uma dificuldade para outra nas suas tentativas de construir a ciência como um conjunto afirmações que podem ser estabelecidas como verdadeiras à luz da evidência dada. Cada manobra da sua acção de rectaguarda tem-nos afastado ainda mais das noções intuitivas sobre esse empreendimento excitante conhecido como ciência. Os seus programas técnicos conduziram a avanços interessantes dentro da teoria da probabilidade, mas nenhum novo
insight foi acrescentado sobre a natureza da ciência. O seu programa degenerou. Há várias respostas possíveis ao problema da indução. Uma delas é a céptica. Podemos aceitar que a ciência se baseia na indução e aceitar também a demonstração de Hume de que a indução não pode ser justificada por apelo à lógica ou à experiência, e concluir que a ciência não pode ser justificada racionalmente. O próprio Hume adoptou uma posição desse tipo. Ele sustentava que crenças nas leis e teorias nada mais são que hábitos psicológicos que adquirimos como resultado de repetições das observações relevantes.
Uma segunda resposta é enfraquecer a exigência indutivista de que todo o conhecimento não Iógico deve ser derivado da experiência e argumentar pela racionalidade do princípio da indução sobre alguma outra base. Entretanto, ver o princípio de indução, ou algo semelhante, como "óbvio" não é aceitável. O que vemos como óbvio depende demasiado da nossa educação, dos nossos preconceitos e da nossa cultura para ser um guia confiável para o que é razoável. Para muitas culturas, em vários estágios na história, era óbvio que a Terra achatada. Antes da revolução científica de Galileu e Newton, era óbvio que se um objecto se devia mover, era porque precisava de uma força ou de uma causa de algum tipo para o fazer mover-se. Isto pode ser óbvio para alguns leitores deste livro que não aprenderam física, e, no entanto, é falso. Se o princípio de indução deve ser defendido como razoável, deve oferecer-se algum argumento mais sofisticado do que um apelo ao que é óbvio.
Uma terceira resposta ao problema da indução envolve a negação de que a ciência se baseia na indução. O problema da indução será evitado se pudermos estabelecer que a ciência não envolve indução.”
Chalmers, A. F. (2000). O que é a ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, pp. 17-60 (Adaptação de Vítor João Oliveira).

Haig Khatchadourian, "A Moralidade do Terrorismo" (Parte II)

Embora defenda que esta e outras definições similares de “terrorismo” sejam inadequadas, Lackey tem razão em recusar a definição da Força de Intervenção Rápida ao Terrorismo do actual Vice-Presidente de George Bush, segundo a qual o terrorismo é “o uso ilegítimo da violência contra as pessoas e a propriedade para alcançar objectivos sociais e políticos”.[1]
Esta definição, observa Lackey, é demasiado abrangente, só que a sua própria definição, embora tenha o mérito de não confinar as vítimas do terrorismo aos civis, padece do efeito contrário. Um outro exemplo de uma definição demasiado abrangente é dada pela Força de Intervenção Rápida, a saber, “a ameaça ou o uso efectivo de força ou violência para obter um fim político através do medo, da coerção ou da intimidação”[2]. Esta definição, tal como outras que foram propostas, partilha um defeito fundamental que será exposto à medida que avançarmos.
Outras definições propostas que examinei
[3] revelaram-se também ou demasiado abrangentes ou demasiado restritas, ou ambas – um problema que as definições “essencialistas” geralmente enfrentam – para além de existirem, muitas vezes, outros problemas. Algumas definições são demasiado restritivas, estando limitadas a uma forma de terrorismo, por exemplo, ao terrorismo político segundo o significado restrito e usual do termo[4]. Há ainda outras definições ou caracterizações que falham por serem mais ou menos abertamente normativas (condenatórias) em vez de, como deve ser, serem neutras e não avaliativas. Na declaração do antigo Presidente Ronald Regan sobre o terrorismo afirma-se que este corresponde à mutilação e à morte deliberada de pessoas inocentes, e a sua caracterização dos terroristas como “puros criminosos” deixa claramente de lado as questões éticas[5]. Uma definição mais completa, mas que sofre do mesmo defeito foi proposta por Burton Leiser. Eis uma parte da sua definição[6]:

O terrorismo corresponde a qualquer conjunto organizado de actos de violência concebidos para destruir a estrutura da autoridade que normalmente zela pela segurança, ou para reforçar ou perpetuar um regime governamental cujo apoio popular é problemático. É uma política de morte, assassínio, sabotagem, subversão, roubo e outras formas de violência aparentemente sem sentido, irracionais e arbitrárias, cometidas com uma dedicada indiferença relativamente aos códigos legais e morais existentes ou com pretensões a reclamar uma isenção especial às normas sociais convencionais.

[1] “Relatório da Força de Intervenção Rápida ao Terrorismo do Vice.Presidente”, in Lackey, Ethics, 85.
[2] Charles A. Russell et al, “Reinventando o Terrorismo”, in Terrorism, Theory and Practice, Yonah Alexander e tal, eds, (Boulder, CO, 1979), 4. Na nota 2, p. 37, os autores acrescentam: «O ”político” é compreendido nesta acepção para se referir ao âmbito total dos factores sociais, económicos, religiosos, étnicos, e governamentais que têm impacto num corpo político, enfatizando as noções de poder e influência. A definição ideal é tal que tanto os que aceitam o terrorismo como os que o abominam concordam”.
[3] De acordo com Leonard B. Weinberg e Paul Davis, Introduction to Political Terrorism (New York, 1989), 3, foram propostas mais de uma centena de definições diferentes por diferentes analistas ao longo dos tempos. Ver ainda Harold J. Vetter et al, Perspectives on Terrorism (Pacific Grove, 1990), 3, onde se afirma que as definições foram propostas entre 1936 e 1983.
[4] Por exemplo, a definição de Weinberg e Davis na sua Introduction, 3 e seguintes.
[5] Citado por H. Khatchadourian, "Terrorism and Morality”, Journal of Applied Philosophy, 5, nº 2 (Outubro 1988): 131.
[6] Burton M. Leiser, Liberty, Justice, and Morals (New York, 1979), 375. Em itálico no original.

Laurie Calhoun, "A Mensagem Tácita do Terrorismo" (Parte V)

Uma vez garantida a possibilidade de uma “guerra justa”, parece seguir-se directamente que os políticos dissidentes, convencidos das práticas injustas dos governos que estão no poder, sentem-se obrigados a envolver-se em actos violentos de subversão. Falta às facções as vantagens das actuais instituições conservadoras que perpetuam naturalmente o exacto status quo que os dissidentes consideram injusto. Do mesmo modo, desde que as nações continuem a envolver-se em guerras em nome da “justiça”, parece plausível que as facções e grupos mais pequenos também o façam. Muitos grupos terroristas insistem que as suas causas têm sido silenciadas e ignoradas pelos regimes que detêm o poder. Mas se as nações formais têm o direito de entrar em guerra para defender a sua integridade e soberania, por que se nega esse direito aos grupos separatistas? E se a esses grupos falta um exército fundado e sancionado pela nação, não poderão eles reunir um?
O terrorista não é um tipo de criatura especial que nefastamente recorre à força mortífera em oposição às exigências da moralidade defendidas por todas as nações civilizadas. Ao invés, o terrorista apenas acolhe a perspectiva amplamente aceite de que as acções militares são moralmente permissíveis, ao mesmo tempo que encara os limites das “nações” de forma diferente daqueles que aceitam acriticamente as convenções em que foram educados. As nações existentes são historicamente contingentes, não são parte da essência das coisas. O terrorista reconhece que as nações actuais nasceram e transformaram-se em resultado da guerra. Assim, os agentes que, em nome da justiça, usam de força mortífera contra a sociedade em que vivem, vêem-se como combatentes civis. Os grupos terroristas são exércitos mais pequenos do que aqueles que são mantidos pelos contribuintes e sancionados pela lei, e, por essa mesma razão, podem sentir-se obrigados a servirem-se eles próprios de métodos particularmente drásticos. Tal como os líderes militares ao longo da história, os terroristas defendem que as situações que implicam o recurso à guerra são tão desesperadas que requerem medidas extremas.
Que o terrorista não é alguém
sui generis pode ser ilustrado pelo seguinte: imagine que o chefe de estado-maior de uma dada nação estabelecida era o líder de um grupo dissidente de um regime instalado. Ora, os mesmos actos de violência mortífera dessa pessoa (ou das suas ordens para os seus companheiros cometerem estas acções) não seriam diferentes só porque este havia sido formalmente designado chefe de estado-maior num caso e não no outro. Qualquer das partes de um conflito defende que está certa enquanto que o adversário está errado, pelo que as facções terroristas não são excepção. Quando olhamos com cuidado para a situação dos terroristas, torna-se difícil identificar qualquer diferença moralmente significativa entre o que fazem e aquilo que fazem as nações formais quando mandam os seus aviões sobrevoar nações inimigas para as bombardear, sabendo perfeitamente que pessoas inocentes morrerão em resultado dessas acções.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O que é a Filosofia Política?

A Filosofia Política corresponde ao estudo crítico da natureza, justificação e extensão do estado. Na realidade estes são os grandes problemas desta área da filosofia. Para demonstrar a sua enorme importância, podemos socorrer-nos de um exemplo concreto oportuno: os debates sobre a reconstrução do Iraque.
Como se sabe, na Primavera de 2003, os militares dos Estados Unidos da América entraram em Bagdad, capital do Iraque, e acabaram com o regime opressivo do ditador Saddam Hussein. Enquanto o regime ruía, os iraquianos respondiam nas ruas de Bagdad de forma bastante dramática. Ao mesmo tempo que muitos enchiam as ruas da capital aclamando os militares norte-americanos como seus libertadores, outros haviam que procuravam roubar tudo quanto podiam. Ironicamente, um dos artigos roubados foi o famoso corpo de leis da antiga Babilónia com mais de 3800 anos - o Código Hammurabi.
A seguir, surgiram inúmeras disputas sobre como devia ser a reconstrução do Iraque – se devia ser um estado islâmico ou um estado laico; se os seus recursos deviam ser públicos ou privados; e se o Iraque era ou não capaz de manter uma forma democrática de governo.
Como se pode facilmente perceber, todos os factos políticos são objecto da reflexão crítica do filósofo. Por exemplo, os governos são, de alguma forma, como os organismos vivos e têm, por isso, um início e um fim, e as questões filosóficas surgem em cada etapa do ciclo vital de um governo, pelo que podemos começar por questionar o que justifica, se é que há alguma justificação, o aparecimento dos governos. Uma vez que os governos são instituídos, podemos investigar se devem focalizar-se nos interesses dos cidadãos individualmente ou então no bem colectivo da comunidade. Na medida em que os líderes emergem, podemos reflectir sobre o tipo de padrão moral que queremos para eles. Na medida em que os governos criam leis que restringem as nossas actividades, podemos questionar que outros limites se devem estabelecer à acção coerciva do estado. E se os governos ultrapassarem os limites definidos, podemos perguntar se a desobediência à lei e até a revolta são justificáveis.