segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Douglas P. Lackey, "Pacifismo" ( Parte VII)

Pacifismo Universal
(c) O Pacifismo de Gandhi
Certamente que o pacifista mais interessante e efectivo do século XX foi Mahatma Gandhi (1869-1948). Embora tenha sido um hindu devoto, Gandhi desenvolveu a sua filosofia de não-violência a partir dos conceitos metafísicos básicos que não são de forma alguma específicos do Hinduísmo:

Enquanto animal, o homem é violento, mas enquanto espírito, ele é não violento. Assim que desperta para as exigências do espírito que nele habita, é-lhe impossível continuar violento. Ou progride para ahimsa [não-violência] ou precipita-se para a sua perdição. (Não-violência na Paz e na Guerra, I, p. 311)

O requisito para não ser violento parece ser totalmente negativo; as pessoas adormecidas alcançam-no facilmente. Mas, para Gandhi, a tarefa moral essencial é não só ser não-violento, mas usar a força da alma (
satyagraha, “a procura da verdade”) numa luta constante pela justiça. Os métodos da satyagraha aplicada desenvolvidos por Gandhi – as marchas desarmadas, os protestos passivos, as greves e os boicotes, os jejuns e as orações – capturaram a admiração do mundo e têm sido amplamente copiados, nomeadamente por Martin Luther King, Jr., nas suas campanhas contra a discriminação racial. De acordo com Gandhi, cada pessoa, ao envolver-se na satyagraha, e ao sofrer em nome da justiça, purifica a alma da poluição que emana da natureza animal do homem:

A satyagraha morre para o corpo antes mesmo do seu inimigo a tentar matar, isto é, ela é livre das amarras do seu corpo e vive apenas na vitória da sua alma. (Não-violência na Paz e na Guerra, I, p. 318) A não-violência implica a auto-purificação absoluta tanto quanto seja humanamente possível. (Não-violência na Paz e na Guerra, I, p. 111)

Ao agir de forma não-violenta, os pacifistas não estão apenas a purificar as suas almas, estão também a transformar as almas dos seus adversários: “Uma revolução não-violenta não é um programa para alcançar o poder. É um programa de transformação das relações, que culmina com a transferência pacífica do poder”.
(Não-violência na Paz e na Guerra, II, p. 8)
Embora Gandhi, em muitas passagens, enfatize que a redenção pessoal só será possível através da resistência passiva ao mal, o efeito espiritualmente positivo da não-violência nos adversários violentos tem provavelmente igual importância, uma vez que “A alma do
satagrahi é o amor” (Não-violência na Paz e na Guerra, II, p. 59).
Assim, Gandhi está longe de pregar a sacralidade da vida biológica. O que importa não é a vida biológica, mas as condições da alma, o estado natural e próprio que é a
ahimsa. O mal da violência é distorcer e perturbar esta condição natural da alma. A lei moral básica (dharma) para todas as pessoas é a procura da restauração das suas almas para a harmonia da ahimsa. Esta restauração espiritual não pode ser alcançada através da violência, mas apenas através da aplicação da satyagraha. A desarmonia não pode produzir a harmonia; a violência não pode produzir a paz espiritual.
A defesa do pacifismo assente na ideia de “sacralidade da vida” enfrenta dificuldades na análise de situações nas quais tirar a vida de alguém possa salvar mais vidas. Para Gandhi, isso não constitui qualquer problema: tirar a vida de alguém pode salvar muitas vidas biológicas, mas não salva almas. Pelo contrário, a alma do assassino será pervertida pelo seu acto e é essa perversão – não a perda da vida – que é moralmente relevante.
O sistema de valores defendido por Gandhi – em que o bem humano mais elevado é a condição harmoniosa da alma – deve estar presente quando se analisa a acusação frequente de que o seu método de resistência passiva “não funciona”, que a não-violência por si só não forçou, nem poderia ter forçado, os Ingleses a abandonar a Índia, e que a resistência passiva a tiranos assassinos como Hitler apenas serviria para provocar o assassínio em massa de inocentes. Talvez a prática da não-violência não pudesse ter “derrotado” os Ingleses ou “derrotado” Hitler, mas segundo o padrão de Gandhi, o uso de força militar apenas provocaria uma derrota maior - a perversão das almas dos milhares de homens envolvidos na guerra e na intensificação da vontade de violência do lado oposto. Por outro lado, a alma do satyagraha seria fortalecida e purificada pela luta não-violenta contra o imperialismo dos Ingleses ou o nazismo dos Alemães, e, nesta purificação, o pacifista de Gandhi podia obter uma vitória moral mesmo no caso de derrota política.
A Índia não adoptou a filosofia da não-violência depois do abandono dos Ingleses, em 1948, e é pouco provável que qualquer estado-nação moderno possa organizar os seus assuntos internacionais de acordo com os princípios de Gandhi. Mas nada disto afecta a validade dos argumentos de Gandhi, os quais indicam como devem ser as coisas e não como já são. Temos que ter em conta que os princípios de Gandhi não vacilam na análise de situações em que tirar a vida de alguém possa salvar mais vidas. Mas o que dizer das situações em que o sacrifício individual da pureza espiritual possa prevenir a corrupção de um número significativo de almas? Suponha-se, por exemplo, que um seguidor de Gandhi acredita (baseado em boas evidências) que um ataque surpresa bem organizado pode impedir um estado-nação de entrar numa guerra agressiva, numa guerra que inflamaria o ódio de populações inteiras relativamente aos seus inimigos. Será que, nesta situação, se alguém estivesse preocupado com a sua pureza espiritual, mas não estivesse preocupado com as almas dos seus concidadãos, isso seria sinal de uma falha moral?
Um outro problema para Gandhi diz respeito às relações entre violência e coerção. Coagir as pessoas é fazer com que elas ajam contra a sua vontade, por medo das consequências que sofreriam se não obedecessem. Assim, a coerção é uma forma de violência espiritual, dirigida à imaginação e à vontade da vítima. A “violência” que é mais claramente rejeitada por Gandhi – empurrar, afastar, dar murros, usar armas, colocar bombas e explosivos – é essencialmente a violência física, dirigida contra os corpos dos adversários. Mas se a violência física contra os corpos corrompe o espírito, a violência psicológica dirigida à vontade dos oponentes deve ser ainda mais corruptiva.
Nos seus escritos, Gandhi condena a coerção, mas na prática dificilmente se pode dizer que renunciou à coerção psicológica. É obvio que ele devia preferir que os Ingleses tivessem abandonado a Índia de livre vontade, ou por terem decidido que era o que melhor servia os seus interesses ou, pelo menos, que era moralmente necessário. Mas se os Ingleses, na ausência de coerção, tivessem decidido ficar, Gandhi estava preparado para aplicar todo o tipo de pressão não-violenta para os mandar embora. E nas ocasiões em que Gandhi tentou alcançar objectivos políticos através da “greve de forme”, a ameaça de se matar à fome provocou uma enorme pressão sobre as autoridades, as quais receavam, entre outras coisas, os motins que se seguiriam se Gandhi morresse.
Assim, o pacifista gandhista deve explicar por que é permissível a pressão psicológica, se a pressão física é proibida. Uma resposta possível é que a pressão física não pode transformar a alma dos adversários, mas a pressão psicológica, uma vez que afecta a mente, pode produzir a transformação espiritual. De facto, Gandhi caracterizava as suas terríveis greves de fome como actos educativos, não como actos de coerção. Mas ao defender que estes actos não eram coercivos, baralha a intenção coerciva que está por trás dos seus efeitos previsivelmente coercivos; e se a educação é o nome do jogo, os não-pacifistas podem sempre observar que a violência tem sido por vezes usada para ensinar umas boas lições. Em diversas tradições espirituais, o que interessa essencialmente não é o tipo de pressão, mas a pressão a aplicar no tempo certo e da forma correcta. Os mestres Zen conduzem os estudantes ao esclarecimento fazendo-os chorar, e Deus ajudou S. Paulo a ver a luz derrubando-o do seu cavalo.
Para além destes problemas técnicos, muitas pessoas estarão inclinadas a rejeitar o sistema de valores que está na base das inferências de Gandhi. Muitos aceitarão que é importante um bom carácter e que ajudar os outros a desenvolver virtudes morais é uma tarefa importante. Mas poucos concordarão com Gandhi quando este considera o desenvolvimento da pureza moral como o bem humano supremo, e que outros bens, como a preservação da vida humana, ou o progresso nas artes e nas ciências, têm, comparativamente, pouco ou nenhum valor. Ainda que pouco valor seja dado a estes bens, por vezes é necessário colocar de lado o projecto de desenvolvimento da pureza espiritual, para que se possam preservar outros valores. Estes actos de preservação podem requerer violência, e aqueles que a usam para defender a vida ou a beleza ou a liberdade, podem estar de facto a corromper as suas almas. Mas é difícil acreditar que um acto de violência fortuito mas necessário a favor destes valores, possa corromper a alma de uma forma total e permanente, e que aqueles que usam judiciosamente a violência possam estar errados ao pensar que salvar a vida ou a beleza ou a liberdade, pode justificar uma perda espiritual pequena ou temporária.

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