terça-feira, 17 de junho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte II)

«A acção afirmativa e o princípio da não discriminação
O meu propósito agora não é deter-me numa justificação minuciosa das políticas educativas e de emprego, que se ocupam especialmente dos grupos excluídos ou desfavorecidos e que preferem por vezes membros destes grupos. Desejo, ao invés, colocar esta tão discutida questão de justiça e diferença de grupo no contexto dos argumentos que expus em capítulos anteriores. Assim, a minha análise limitar-se-á, na sua maior parte, a avaliar o modo como as políticas de acção afirmativa violam o princípio da igualdade de tratamento, e a ilustrar que boa parte da discussão sobre a acção afirmativa pressupõe um paradigma distributivo de justiça social.

A maioria das políticas de acção afirmativa ordenadas ou confirmadas pelos tribunais têm sido justificadas como compensação por práticas discriminatórias passadas. Nos termos legais tradicionais, tal justificação é menos controversa quando a reparação beneficia as mesmas pessoas que sofreram a discriminação, como quando um tribunal ordena procedimentos preferenciais de promoção para aquelas pessoas que foram incorrectamente segregadas em categorias laborais especificamente marcadas pela raça ou pelo género. Mas nos casos em que os tribunais encontraram evidências de uma discriminação intencional no passado, frequentemente ordenaram ou confirmaram a solução da acção afirmativa, ainda que os indivíduos beneficiados não tenham sido os mesmos em relação aos quais a discriminação foi praticada.

Justificar as políticas de acção afirmativa como reparação ou compensação por discriminações passadas é uma questão praticamente incontroversa, mas essa justificação tende também a restringir os programas permitidos a um tipo muito limitado. Algumas das pessoas que escrevem sobre este tema ou litigam em causas deste tipo procuram justificar as políticas de acção afirmativa como compensação ou reparação por uma história de discriminação social geral contra as mulheres ou as pessoas negras (veja-se Boxill, 1984, pp. 148-67). Esses argumentos são débeis porque, como analisarei de seguida, fazem do conceito de discriminação um conceito inaceitavelmente vago. Os argumentos que vão no sentido de que as políticas de acção afirmativa contrariam a corrente enviesada e os preconceitos de quem toma decisões, são mais convincentes. Embora as políticas explicitamente discriminatórias já não sejam legais, e muitas instituições tenham eliminado de boa fé as práticas explicitamente discriminatórias, as mulheres e as pessoas de cor continuam a estar sujeitas a estereótipos, reacções e expectativas frequentemente inconscientes por parte de quem toma decisões, que continuam a ser pessoas brancas ou homens, e geralmente ambas as coisas. Os procedimentos de acção afirmativa são um meio necessário e justo para combater tais pressupostos e percepções, que persistem em excluir e desfavorecer as mulheres e as pessoas de cor (Davidson, 1976; citado em Fullinwider, 1980, pp. 151-2).

Robert Fullinwider sugere que este raciocínio cria um dilema. Segundo este argumento, diz o autor, “se não usamos a contratação preferencial, permitimos que exista discriminação. Mas a contratação preferencial também é discriminação. Deste modo, se recorremos a contratação preferencial permitimos também que exista a discriminação. O dilema consiste em que, façamos o que façamos, permitimos a discriminação” (Fullinwider, 1980, p. 156). Aqueles que defendem políticas amplas de acção afirmativa deparam-se frequentemente com este dilema porque compartilham com os seus adversários a convicção de que o principal princípio de justiça que está em jogo é um princípio de não discriminação. A formulação do dilema que faz Fullinwider repousa também num equívoco sobre o termo discriminação: no primeiro uso esse termo significa viés, preconceito e pressuposto inconscientes que coloca em desvantagem as mulheres e as pessoas de cor, e no segundo significa práticas preferenciais conscientes que favorecem os membros de um grupo com base na sua pertença a um grupo. Sugiro que o dilema desaparece se aqueles que defendem a acção afirmativa abandonarem o pressuposto de que a não discriminação é um princípio supremo da justiça, e deixem de assumir que a injustiça racial e sexual deva estar comprometida pelo conceito de discriminação.

Aqueles que se opõem às práticas de acção afirmativa fazem-no geralmente com base no facto dessas políticas discriminarem. Para essas pessoas, o princípio de igualdade de tratamento, um princípio de não discriminação, possui primazia moral absoluta. Segundo esta concepção da justiça social, as políticas que não têm em consideração os grupos e aplicam as mesmas normas formais a todas as pessoas são tanto necessárias como suficientes para a justiça social. Uma vez que as políticas de acção afirmativa violam este princípio de igualdade de tratamento, são incorrectas (veja-se, por exemplo, Reynolds, 1986). Sugiro que os apoiantes das políticas de acção afirmativa estariam menos na defensiva se reconhecessem positivamente que estas políticas discriminam, em vez de tratar de argumentar que são uma extensão do princípio de não discriminação, ou que são compatíveis com ele. Para além disso, deveríamos negar o pressuposto, amplamente defendido tanto pelas pessoas que defendem como pelas pessoas que são contra a acção afirmativa, que a discriminação é o único ou principal mal que os grupos sofrem. A opressão, não a discriminação, é o principal conceito para denominar a injustiça relacionada com os grupos. Ainda que as políticas discriminatórias por vezes causem ou reforcem a opressão, esta está entranhada em muitas acções, práticas e estruturas que pouco têm que ver com preferir ou excluir os membros de certos grupos na atribuição de benefícios.

No capítulo 6 opus-me ao ideal de assimilação que equipara a igualdade social à eliminação ou transcendência das diferenças de grupo. Considerar o princípio da igualdade de tratamento, ou de não discriminação, como um princípio de justiça absoluto ou supremo, pressupõe um tal ideal de igualdade como ser iguais. Defendi que a igualdade de tratamento não deveria receber tal supremacia. A igualdade, definida como a participação e inclusão de todos os grupos em instituições e posições, vê-se por vezes melhor satisfeita pelo tratamento diferencial. Este argumento altera o contexto para a discussão da justiça das políticas de acção afirmativa que favorecem os membros de grupos oprimidos ou desfavorecidos. A acção afirmativa já não precisa ser vista como uma excepção ao, por demais operativo, princípio de não discriminação. Assim, ao contrário, a acção afirmativa passa a ser uma das muitas políticas de consciência de grupo que contribuem para eliminar a opressão.

Ao considerar a discriminação como a única ou a principal injustiça sofrida pelas mulheres ou pelas pessoas de cor na sociedade norte-americana, focaliza-se a atenção em questões que não são relevantes. A discriminação é, antes de mais, um conceito orientado para o agente, erradamente orientado. Assim, esse conceito tende a focalizar a atenção naqueles que são autores de uma acção e na acção ou política particular, em vez de se focalizar nas vítimas ou na sua situação (veja-se Freeman, 1982). Identificar a injustiça com base nos grupos com a discriminação tende a colocar o ónus da prova nas vítimas para que demonstrem que se cometeu um dano, caso a caso.

Para além de que, como conceito por defeito, a discriminação tende a apresentar a injustiça sofrida pelos grupos como algo anómalo, a excepção mais do que a regra. Agora que a lei e o sentimento público concordam que a discriminação específica que exclui ou coloca em desvantagem as mulheres ou as pessoas de cor é errada, as pessoas começaram a pensar na condição normal como a ausência de discriminação (Fitzpatrick, 1987). Uma vez que a discriminação explícita contra as mulheres e as pessoas de cor diminuiu, a equiparação da injustiça com base no grupo à discriminação leva as pessoas a assumirem que as injustiças contra estes grupos também foram eliminadas.

Sugiro que o conceito de discriminação deve restringir-se à exclusão ou preferência explícita de algumas pessoas na distribuição de benefícios, o tratamento eu recém, ou a posição que ocupam, em virtude da sua pertença a um grupo social. Ironicamente, quando a discriminação neste sentido se torna ilegal e socialmente inaceitável, fica muito difícil provar que têm lugar. As pessoas facilmente se apoiam no apelo para as aptidões, ou em afirmar que se trata de preferências por certos tipos de carácter e comportamento, em vez de preferências de grupos. Muitas teorias legais defenderam uma avaliação dos resultados em vez das intenções de discriminação; quer dizer, uma política ou uma prática deveria considerar-se discriminatória se resultante de uma exclusão desproporcionada das mulheres ou das pessoas de cor, sem importar qual tenha sido a intenção daqueles que a exerceram. A doutrina do “impacto díspar” expressa pelo Supremo Tribunal em 1971 no caso Griggs sugere esse significado amplo da discriminação. Contudo, nos últimos anos nem os tribunais nem aqueles que participam na vida pública em geral pareceram querer aceitar este significado amplo de discriminação.

Concordo que a atenção moral deva recair sobre as vítimas e os resultados, em vez dos autores da acção ou das intenções. Mas confunde-se a questão ao focalizar a atenção nos resultados sob o conceito de discriminação. Uma estratégia muito mais acertada para estudar a injustiça sofrida pelos grupos desfavorecidos seria restringir o conceito de discriminação às políticas de exclusão ou preferência intencionais e explicitamente formuladas, e defender que a discriminação não é o único nem necessariamente o principal mal sofrido pelas mulheres e pelas pessoas de cor. Como grupos, o principal mal que sofremos é a opressão.

No capítulo 2 defendi que a opressão não deveria ser entendida necessariamente como perpetrada por agentes opressores em particular. Ainda que muitos indivíduos contribuam para a opressão, e grupos determinados de pessoas se vejam privilegiados devido à opressão de outros grupos, não se percebe o carácter mundano e sistemático da opressão se se assume que as pessoas opressoras em particular podem e devem ser sempre identificadas e culpadas. Ao focalizar-se nos agentes individuais, o conceito de discriminação esconde e até tende a negar a marca estrutural e institucional da opressão. Se uma se focaliza na discriminação como o principal mal que sofrem os grupos, então os males mais profundos de exploração, marginalização, ausência de poder, imperialismo cultural e violência que ainda padecemos acontecem sem ser discutidos nem estudados; não se percebe como o peso das instituições sociais e dos pressupostos das pessoas, os hábitos e a conduta relativamente a outras pessoas estão dirigidas a reproduzir as condições materiais e ideológicas que tornam a vida mais fácil para os homens brancos heterossexuais, ao mesmo tempo que lhes garante maiores oportunidades reais e estabelece a prioridade do seu ponto de vista.

Centrarmo-nos na opressão em vez da discriminação como o mal principal sofrido pelas mulheres, pela pessoas de cor e por outros grupos, permite-nos admitir que as políticas de acção afirmativa são efectivamente discriminatórias (veja-se Summer, 1987). Tais políticas prevêem preferir consciente e explicitamente os membros de grupos particulares com base na sua pertença ao grupo. A discriminação poderia neste sentido não ser incorrecta, dependendo das suas intenções. Um clube só masculino de oficiais municipais e pessoas de negócios é incorrecto, por exemplo, porque reforça e aumenta as redes de privilégio entre os homens que existem até na sua ausência. Por outro lado, não é correcto fundar uma associação profissional só de mulheres, para contrariar o isolamento e a tensão que vivem muitas mulheres profissionais como resultado de serem uma minoria que não é bem-vinda nesse campo.

Se a diferenciação de grupos reforça estereótipos não desejáveis sobre os seus membros, os exclui, os segrega ou os coloca em posições de subordinação, então é incorrecta (Rhode, 1989, cap. 10; cfr. Colker, 1986). A maioria das discriminações históricas foi incorrecta não por distinguir as pessoas consoante os atributos de grupo, mas porque propunha ou implicava uma restrição formal e explícita das acções e oportunidades dos membros do grupo. Quer dizer, foram incorrectas porque contribuíram e ajudaram a executar a opressão. Se a discriminação serve os propósitos de eliminar a opressão de um grupo, não só é permitida, como é moralmente exigível.

As instituições e as políticas têm amiúde um impacto diferencial adverso nos grupos anteriormente excluídos ou segregados, embora não tenham sido propostas para ter esse impacto. Os preconceitos contra as mulheres, as pessoas de cor, as pessoas com deficiência, os gays e as lésbicas, estão impregnados nessas instituições, porque estas estão concebidas tendo em mente as vidas e as perspectivas de pessoas privilegiadas, ou porque a sua estrutura ainda reflecte a subordinação que as normas formais declararam ilegais. Por último, as políticas explícitas de exclusão, segregação e subordinação deixaram um profundo legado de capacidades, cultura e socialização diferenciada segundo os grupos, que continua a privilegiar os homens brancos na competência por posições sociais melhor recompensadas. Grande parte desta diferença de capacidade ou preferência deveria conceber-se simplesmente como diferença e não como inferioridade, mas como analisarei de seguida, os critérios de mérito traduzem frequentemente uma diferença de hierarquia. Assim, a opressão continua a ser um processo em marcha reproduzido por muitas normas, práticas, acções e imagens.

Deste modo, o argumento central a favor das políticas que conscientemente se propõe aumentar a participação e inclusão das mulheres, das pessoas negras, latinas ou deficientes, nas escolas e nas fábricas e em posições altamente recompensadas e de liderança, é que estas políticas intervêm nos processos de opressão (Hawkesworth, 1984, pp. 343-4; Livingston, 1979, caps. 1-3; Fullinwider, 1980, pp. 151-2; 1986, pp. 183-4; Boxill, 1984, cap. 7; Wassertrom, 1980b; 1989, cap. 10; Summer, 1987). Esta intervenção positiva tem várias dimensões. Através de uma acção afirmativa forte as políticas e as instituições anunciam a aceitação dos grupos excluídos. As políticas de acção afirmativa contrariam também os preconceitos especialmente relacionados com os grupos, que estão presentes nas instituições e naqueles que tomam decisões, e que põem as mulheres e as pessoas de cor em posição de desvantagem. Por último, a inclusão e participação das mulheres, das pessoas de cor, das pessoas com deficiência, etc., nas instituições e posições sociais em geral, implica as vantagens da representação do grupo nos órgãos de tomada de decisão. Em virtude das suas vivências diferenciadas, culturas, valores e estilos de interacção, as pessoas de diferentes grupos incorporam frequentemente perspectivas singulares no esforço colectivo, complementando as perspectivas das demais pessoas. Então a intenção central das políticas de acção afirmativa não é compensar discriminações passadas nem suprir pretensas deficiências dos grupos antes excluídos. Pelo contrário, a intenção central das políticas de acção afirmativa é mitigar a influência dos actuais preconceitos e a cegueira das instituições e das pessoas que tomam decisões.»
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2 comentários:

Anónimo disse...

Estimado colega Victor: he leído las traducciones de mi libro "Ética ambiental" en su blog, así como otros artículos del mismo. Le felicito por la tarea pedagógica que lleva a cabo a través del blog. Yo también he sido profesor de escola secundaria y sé lo difícil e interesante que es la tarea. Quedo a su disposición para cualquier colaboración y le envío a usted y a sus afortunados alumnos un saludo muy cordial (aunque lo leo correctamente, no me atrevo a escribir en portugués, lo haría con mala ortografía, me disculpo por ello). Alfredo Marcos

Vítor João Oliveira disse...

Estimado Alfredo Marcos, obrigado pelas suas palavras e pela sua disponibilidade. Ao contrário do que acontece em Espanha, em Portugal traduz-se muito pouco, pelo que, por vezes torna-se bastante difícil pedir que os alunos tratem certos temas porque, pura e simplesmente, ou não há bibliografia ou a que existe, para além de escassa, é absolutamente irrelevante.
Se tiver mais algum texto que queira partilhar, a minha abertura é total. Seria uma honra.
Abraço,
Vítor João Oliveira