domingo, 22 de junho de 2008

Iris Marion Young, “A Acção Afirmativa e o Mito do Mérito” (Parte III)

«O debate sobre a acção afirmativa e o paradigma distributivo

Defendi no capítulo 1 que o paradigma distributivo domina as discussões filosóficas e políticas sobre a justiça social. Ainda que as questões distributivas constituam uma importante matéria de justiça social, uma abordagem que se centre apenas na distribuição tende a esconder questões relativas à justiça das instituições sociais e que são pelo menos tão importantes como a distribuição. As teorias da justiça que se centram na distribuição tendem a assumir as estruturas institucionais que produzem distribuições, como condições antecedentes dadas cuja justiça não se questiona. Na medida em que este paradigma da justiça limita a avaliação à distribuição, ignorando e ocultando questões relativas à justiça da organização institucional, esse paradigma serve uma função ideológica e apoia implicitamente as relações institucionais que assume como dadas.

Tanto as discussões filosóficas como as políticas sobre a acção afirmativa põem de manifesto o paradigma distributivo de justiça social. Richard Wassertrom é representativo daquelas pessoas que concebem a acção afirmativa como uma questão de justiça distributiva:

Existe actualmente uma má distribuição do poder e da autoridade em paralelo com as linhas raciais e sexuais que são parte da estrutura social. No interior das principais instituições políticas e sociais, tais como a universidade, a magistratura e as associações de juristas, o poder executivo estatal e federal, e o mundo das empresas, a maioria dos cargos são exercidos por homens brancos. Uma coisa a dizer a favor dos programas de tratamento preferencial é que através do seu funcionamento alteram directamente a composição dessas instituições incrementando o número de pessoas não brancas e de mulheres que de facto ocupam estes postos de poder e autoridade. Isto é desejável em si mesmo porque é uma redistribuição de cargos feita de modo que cria uma nova realidade social, uma realidade que se parece mais claramente com a captada por uma concepção de sociedade boa…. Na medida em que a actual distribuição de bens e serviços é injusta relativamente aos membros destes grupos, a mudança da distribuição justifica-se simplesmente porque é assim uma distribuição mais justa (Wasserstrom, 1980b, p. 56).

Nos locais em que foram implementados programas de acção afirmativa, têm tido de facto algum êxito na redistribuição de posições desejáveis entre mulheres e pessoas de cor que de outra forma provavelmente não se obteria. Embora haja quem possa sustentar que os procedimentos de igualdade formal de tratamento não deveriam ser violados para produzir modelos mais justos de distribuição de posições, concordo com Wasserstrom sobre o facto do objectivo de alcançar uma maior justiça legitimar o tratamento preferencial. Contudo, ainda que os programas de acção afirmativa forte existam na maioria das instituições, teriam apenas um efeito menor na alteração da estrutura básica de privilégios de grupo e opressão nos Estados Unidos. Dado que estes programas requerem que os candidatos, sexual ou racialmente preferidos, estejam qualificados, e de facto frequentemente se exige que estejam altamente qualificadas, a esses programas não faz falta que se aponte directamente para aumentar as oportunidades das pessoas negras, latinas ou das mulheres, cujo ambiente social e a falta de recursos fazem com que adquirir uma qualificação seja praticamente impossível para elas. Uma mudança na totalidade dos modelos sociais de estratificação racial e de género na nossa sociedade exigiria mudanças radicais na estrutura da economia, nos processos de atribuição de trabalho, no carácter da divisão social do trabalho e no acesso à escolarização e qualificação (Cfr. Wilson, 1978; 1986; Livingston, 1979, cap. 11; Hochschild, 1988). As opressões de classe cruzam-se com as opressões de raça e género.

Nos últimos vinte anos, o debate sobre as políticas de acção afirmativa ocuparam boa parte da atenção das pessoas encarregadas de elaborar as políticas, bem como de analistas políticos, tribunais, sindicatos e associações profissionais. Este debate é importante porque coloca questões de princípio fundamentais. Contudo, tanta energia investida na questão da acção afirmativa significa energia desviada de outros aspectos da justiça racial e de género, e da tarefa de imaginar propostas políticas que possam eliminar a opressão racial e sexual. A acção afirmativa é uma das poucas propostas políticas da agenda social nos Estados Unidos, que aborda questões de opressão sexual e racial. Sugiro que uma das razões pelas quais esta política seja tão discutida, embora frequentemente menos apoiada, é que se trata de uma proposta “mais segura” para abordar a desigualdade de grupo do que outras propostas que poderiam ser apresentadas.

Os termos em que se desenvolve o debate sobre a acção afirmativa define um conjunto de pressupostos que aceitam a estrutura básica da divisão do trabalho e o processo básico de atribuição de posições. Neste debate, tanto aqueles que defendem como os que se opõem à acção afirmativa assumem como um princípio prima facie que as posições sociais deveriam distribuir-se pelas pessoas “melhor qualificadas” e só não estão de acordo quanto à questão de se será justo colocar esse princípio de lado. Ambos assumem como dado uma divisão hierárquica do trabalho em que algumas poucas pessoas saem vencedoras quanto à competência nos cargos desejáveis e escassos, e que a maioria das pessoas deve aceitar posições com salários baixos, ou até nem sequer possuir qualquer posição social. Sem esta divisão do trabalho, os obstáculos que fazem com que o debate sobre a acção afirmativa seja tão aceso não seriam tão grandes. Algumas das pessoas que participam no debate sobre a acção afirmativa noutros contextos poderiam não aceitar estes pressupostos; mas os termos do debate em si pressupõem-nos. Uma vez que a questão da acção afirmativa está restringida à distribuição e à redistribuição de posições, as questões estruturais mais amplas sobre a justiça na definição das posições e sobre como se determina a admissão a essas posições, raramente se coloca no âmbito público. Na medida em que o debate sobre a acção afirmativa limita a atenção pública à questão relativamente circunscrita e superficial da redistribuição de posições dentro de uma fronteira já dada, esse debate contribui para a função de apoiar o status quo estrutural.

No que resta deste capítulo, examinarei em detalhe dois pressupostos sobre a estrutura institucional que geralmente subjazem ao debate sobre a acção afirmativa: o pressuposto de que as posições deveriam distribuir-se pelas pessoas melhor qualificadas, e o pressuposto de que a divisão hierárquica do trabalho é justa.»
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