sexta-feira, 20 de junho de 2008

Hugo Adam Bedau, “Um escrutínio abolicionista da pena de morte na América de hoje” (Parte II)

«Humanizando os Métodos de Execução

A quarta reforma mais importante da nossa jurisprudência sobre a pena de morte diz respeito ao esforço para tornar as execuções mais eficientes e humanas. Por mais difícil que seja hoje acreditar, esta era a razão principal por detrás da introdução em 1890 da cadeira eléctrica em Nova Iorque como melhoria relativamente ao enforcamento. Saber se a cadeira eléctrica chegou de facto a corresponder às expectativas de eficiência e humanidade que nela depositaram, é bastante duvidoso. Certamente que a sua culpa na prática actual – os corpos começarem a arder, queimar lentamente o condenado a morte, a cadeira de morte libertar um forte odor a carne queimada – está bem documentada e para além de qualquer disputa. Independentemente do que quer que possa ter parecido verdade no século passado, hoje não deve ser impossível olhar para a morte na cadeira eléctrica como “punição cruel e invulgar”, em directa violação da proibição de tais punições constante da Oitava Emenda à Carta de Direitos. Apenas dois estados (Alabama e Nebraska) entraram no novo milénio continuando a empregar este método de execução; outros nove continuam a autorizá-lo, mas concedem ao condenado a possibilidade de optar pela injecção letal. Muito do mesmo tipo de argumentação humanitária foi usada em nome da execução por gás letal, iniciada no Nevada em 1923. A morte na câmara de gás foi amplamente adoptada nos anos subsequentes, mas começou a ser atacada nos anos noventa (até agora sem sucesso) com base constitucional.

O método de execução que hoje e previsivelmente no futuro tem dominado todos os outros é o da injecção letal. Oklahoma foi, em 1977, o primeiro estado a legalizar a morte por este método, mas o Texas foi o primeiro a usá-lo em 1982. Hoje está autorizado em mais de doze estados. Nenhuma mutilação corporal, nenhum desfiguramento, nenhum atraso, nenhum odor, aparentemente nenhuma dor – o que mais poderá um defensor da pena de morte desejar? Como pode um opositor da pena de morte argumentar que a injecção letal é uma “punição cruel e invulgar” inconstitucional?[1] Não há qualquer dúvida que a ampla adopção deste método de execução nos Estados Unidos durante o quarto de século passado ajudou a preservar e a proteger a pena de morte.

Apelar para a Intervenção Federal

Há um século, o criminoso capital poderia caminhar para a sua morte sem ter qualquer possibilidade de apelar a um tribunal (especialmente um tribunal federal) para rever a sua condenação e a sua sentença. Todavia, era comum nos anos cinquenta os tribunais de apelo estatais e federais reverem a pena capital do réu. Em anos recentes, a revisão pelos tribunais superiores, estatais e federais, tornaram-se numa rotina. O elevado escrutínio resultou em muitas alterações e, nalguns casos, em novos julgamentos ou em segundas audições da sentença ordenadas pelos tribunais. Há aparentemente muito que remediar. Uma investigação recente conduzida pelo Professor de Direito James F. Liebman e seus associados, estabeleceu que “mais de dois em cada três condenações de pena capital revistas pelos tribunais no período de 23 anos deste estudo [de 1973 até 1995] vieram a provar-se defeituosas”. Estes defeitos não constituem meras violações “técnicas”; são suficientes para “minar seriamente a confiabilidade do resultado ou noutras circunstâncias a “prejudicar” o réu”[2].

Por outro lado, desde meados dos anos noventa, os tribunais federais têm sido severamente pressionados por decisões do Congresso e do Supremo Tribunal cujo objectivo é alcançar uma maior “finalidade” e maior “eficiência” nos casos de pena de morte através do desenvolvimento de um grau apropriado de escrutínio cuidado. As expectativas quanto ao futuro são desencorajadoras. Os críticos têm apontado que as determinações do Supremo Tribunal que remontam a 1983 têm mostrado aquilo que o Professor de Direito Robert Weisberg designou apropriadamente de “desregulamentação da morte” – deixando a cada estado a capacidade de decidir à sua maneira dentro de fronteiras amplas, sem nunca considerar o preço a pagar pela arbitrariedade, imprevisibilidade, e discrição descontrolada. É como se o tribunal tivesse decidido “já não querer usar a lei constitucional para promover fórmulas legais para regular a escolha moral durante um julgamento de pena de morte”[3].

Desde os inícios de 2002, que os abolicionistas têm pressionado o Supremo Tribunal para regulamentar duas questões há muito preocupantes. Uma envolve a limitação da pena de morte a pessoas com mais de 18 anos à data do crime; a lei actual em diversas jurisdições permite a execução de jovens com 16 anos. A outra questão diz respeito a exclusão do âmbito da pena de morte de ofensores que sofram de atraso mental; a lei actual permite (mas não exige) aconselhamento jurídico do réu com deficiência mental durante a fase de apresentação de provas (se não antes) como factor mitigador. Esta preocupação saiu recentemente da agenda abolicionista porque em Junho de 2002 o Supremo tribunal determinou no Atkins vs Virgínia que um homicida com deficiência mental não pode ser considerado completamente responsável pelo seu crime, ao contrário do que havia sido decidido em 1989 no caso Penry vs Lynaugh. É impossível saber quando irá o Supremo Tribunal proibir os estados de condenar um homicida à morte por um crime cometido com uma idade inferior a 18 anos; mas, ainda assim, este é um desenvolvimento provável num futuro próximo.

Abolição da pena de morte

Por volta de meados do século dezanove, o número de decretos da pena de morte produzidos e reforçados na América foi reduzindo nas legislaturas dos estados. Esta redução ocorreu de duas formas: revogação selectiva na variedade dos decretos da pena de morte e completa abolição de todas essas leis. O primeiro estado a reduzir o número dos seus decretos sobre a pena de morte foi a Pensilvânia em 1786; a legislatura aboliu a pena de morte para os crimes de assalto, roubo e sodomia, e reservou as execuções para os condenados por homicídio em primeiro grau. Os primeiros estados a revogar completamente a pena de morte – Michigan (excepto para os casos de traição), Wisconsin e Rhode island – fizeram-no mesmo antes da Guerra Civil. A abolição foi uma tendência quase bem sucedida em diversos estados, tendo apenas sido interrompida pela guerra, e só no final do século viria a ser reatada. Durante a Era Progressiva, um número substancial de estados entrou na coluna da abolição: Arizona, Colorado, Kansas, Minnesota, Missouri, Oregon, North dakota, South dakota, Tennessee, Washington. Apenas dois restauraram a pena de morte ao fim de alguns anos. (As duas excepções foram o Minnesota e o North Dakota).

Já há mais de um século que a pena de morte foi efectivamente regionalizada neste país. A única parte da nação que não possui qualquer experiência com a abolição temporária é o Sul, a velha Confederação, o Cinto da Bíblia (Bible Belt). Como Stuart Banner observa de forma soberba, “o Sul foi sempre um lugar mais violento do que o Norte, e pode supor-se que o uso continuado da punição violenta sobre os escravos acostumou os brancos do sul à generalização das punições violentas”[4]. Isto continua a ser verdade. Há gerações que as sentenças de morte e as execuções juntam-se às elevadas taxas de homicídio como se tratasse de um modo de vida no Texas, Florida, e noutros estados do sul. As vozes que se opõem à pena de morte nestes estados nunca, nem sequer remotamente, se aproximaram da maioria, como aconteceu de tempos em tempos na nação. É tentador ver uma linha de continuidade sangrenta desde os linchamentos fora-da-lei de pretos e brancos há não mais de duas gerações até à festa da “justiça” que se encontra ainda hoje nos tribunais do sul quando um homem negro está a ser julgado pelo homicídio de uma vítima branca. O testemunho de Bright e de Stevenson sobre este tema nas suas contribuições para este livro é tão assustador como irrefutável.

Desde 1960, e para além do crime capital de homicídio, que não há duas jurisdições de pena de morte americanas que possuam o mesmo catálogo estatutário de crimes sujeitos a pena de morte. Numa jurisdição ou noutra, mas de três dúzias de crimes diferentes passaram a ser puníveis com a pena de morte. Os mais populares, depois do homicídio, são o rapto (34 jurisdições), traição (21), violação (18), abuso sexual (15), assalto à mão armada (10), e perjúrio em casos capitais (10)[5]. Nesses anos, só a Georgia possuía 16 ofensas capitais decretadas.

Em meados dos anos sessenta, o movimento abolicionista sofreu uma transformação profunda. Até essa altura, a redução dos decretos capitais e a sua abolição completa foram realizadas exclusivamente pelos governos dos estados e pelo Congresso. No início de 1967, os advogados atacaram a pena de morte tendo por base a constituição, defendendo que violava “a aplicação devida da lei”, “a igual protecção perante a lei”, e especialmente a proibição contra a “punição cruel e invulgar”[6]. Á medida que o Supremo Tribunal lutava com os seus argumentos, estes desafios iam resultando numa moratória de facto sobre as execuções.

No caso Furman vs Georgia (1972), o Tribunal determinou que o decreto típico da pena de morte era tão arbitrário que violava a Oitava e a Décima Quarta Emenda e que se um estado desejasse preservar a pena de morte devia refazer os decretos em conformidade. Um efeito dessa determinação foi que centenas de prisioneiros que esperavam no corredor da morte tiveram que receber nova sentença para os termos da prisão. Contudo, quatro anos mais tarde no caso Gregg vs Geórgia (1976), o Tribunal determinou que a pena de morte não era inconstitucional per se. Esta determinação marcou a derrota dos esforços feitos pelo Tribunal para supervisionar a forma como os estados da pena de morte administravam esta punição, tolerando aqui e retirando ali dezenas de cláusulas diferentes da lei.

Nos anos setenta, nem todas as determinações do tribunal defendiam a pena de morte. Em 1976, a pena de morte obrigatória foi declarada inconstitucional (Woodson vs North Carolina). Um ano depois a pena de morte por violação foi considerada inconstitucional (Coker vs Georgia); com efeito, apenas alguns decretos capitais não homicidas (como espionagem e traição) desapareceram praticamente sem deixar rasto. Os únicos decretos de pena de morte que sobreviveram ao desafio constitucional desde 1976 foram aqueles que puniam algum tipo de homicídio criminoso. Saber se as disposições não homicidas da Lei Anti-terrorista e da Pena de Morte Efectiva do Congresso (1996) serão consideradas constitucionais é algo que ainda se está para ver.

Quanto à abolição completa, 25 estados, Porto Rico e Washington, D.C., aboliram cada um deles a pena de morte para homicídio num ou noutro momento. Desde 2002, 14 jurisdições pertencem à coluna da abolição: Alaska, Hawai, Iowa, Maine, Massachusetts, Michigan, Minnesota, North Dakota, Rhode Island, Vermont, West Virgínia, Wisconsin, District of Columbia, e Porto Rico. Mas o curso da determinação da abolição da pena de morte tem sido titubeante. O número de jurisdições americanas que aboliram a pena de morte, para alguns anos depois a restaurarem, é apenas um pouco menor do que o número dos que a aboliram de uma vez por todas (pelo menos até ao presente).»
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[1] Procurei noutro lado responder a esta objecção; veja-se “Thinking about the Death Penalty as a Cruel and Unusual Punishment”, U.C. Davis Law Review, 18 (1985), pp. 873-925.
[2] James S. Liebman, Jeffrey Fagan, e Valerie West, Broken System: Error Rates in Capital Cases, 1973-1995, New York, Columbia Law School, 200, pp. 1, 4.
[3] Robert Weisberg, “Deregulating Death”, The Supreme Court Review 1983, p. 395.
[4] Banner, The Death Penalty, p. 143.
[5] H. A. Bedau, ed., The Death Penalty: na Antology, New York, Doubleday, 1964, p. 46.
[6] Veja-se Michael Meltsner, Cruel and Unusual: The Supreme Court and Capital Punishment, New York, Random House, 1973.
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