terça-feira, 10 de junho de 2008

Corliss Lamont, "Liberdade da vontade e responsabilidade humana"

«Corliss Lamont (1902-95) foi um destacado filósofo humanista, defensor convicto da liberdade política e do livre-arbítrio. No texto seguinte, apresenta, de forma breve, um conjunto de razões em defesa do livre-arbítrio e mostra de que forma a liberdade da vontade se relaciona com a responsabilidade moral.

Depois de leres atentamente o texto que se segue, responde às questões:
1. Qual é a tese de Lamont?
2. O que diz Lamont acerca do determinismo clássico?
3. Concordas com a definição de determinismo de Lamont? Porquê?
4. Quais são as oito razões que Lamont apresenta para acreditarmos no livre-arbítrio?
5. Em que medida a existência do acaso mostra que o determinismo é apenas relativo?
6. Considera as razões que Lamont apresenta para acreditarmos no livre-arbítrio.
6.1. Qual ou quais serão as mais convincentes? Porquê?
6.2. Qual ou quais serão as menos convincentes? Porquê?
7. Explica a relação que Lamont estabelece entre livre-arbítrio e responsabilidade moral.
8. Achas que Lamont tem razão acerca da relação entre livre-arbítrio e responsabilidade moral? Porquê?
9. O que achas que significa a frase de Sartre “Não somos livres para deixar de ser livres”? Será verdadeira? Porquê?

A minha tese é a seguinte: a pessoa que está convencida que possui liberdade de escolha ou livre-arbítrio tem um maior sentido de responsabilidade do que a pessoa que pensa que o determinismo absoluto governa o universo e a vida humana. O determinismo no sentido clássico significa que todo o fluir da história, incluindo todas as escolhas humanas e as acções, estão completamente determinadas desde o início dos tempos. Quem quer que acredite que “o que tem que ser, será” pode tentar escapar à responsabilidade moral apesar de ter agido erradamente defendendo que tal estava predestinado por leis rígidas de causa e efeito.
Mas se a livre escolha realmente existe na altura de escolher, os homens possuem claramente responsabilidade moral por decidirem entre duas ou mais alternativas genuínas, e o álibi determinístico não tem qualquer peso. Assim, o coração da nossa discussão radica na questão de saber se é verdade que temos livre escolha ou se é verdadeiro o determinismo universal. Tentarei resumir brevemente as razões principais que apontam para a existência de livre-arbítrio.

Primeiro: há uma intuição vulgar imediata e poderosa, que é partilhada por virtualmente todos os seres humanos de que existe liberdade de escolha. Esta intuição parece-me tão forte como a sensação de prazer ou de dor; e a tentativa dos deterministas provarem que esta intuição é falsa é tão artificial como a pretensão (…) de que a dor não é real. Claro que a existência desta intuição não prova por si a existência da liberdade de escolha, mas justamente por ser uma intuição tão forte, coloca o ónus da prova do lado dos deterministas, que têm que provar que se baseia numa ilusão.

Segundo: podemos recusar o argumento determinista admitindo, ou até insistindo, que há uma grande quantidade de determinismo no mundo. O determinismo na forma de leis causais do tipo “se…então…” governa não só o funcionamento de inúmeros movimentos corporais como o funcionamento de grande parte do universo. Podemos estar contentes com o facto dos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, e dos batimentos cardíacos, funcionarem deterministicamente – pelo menos até avariarem. O determinismo versus libre-arbítrio é uma falsa questão; o que nós sempre tivemos foi um determinismo e um livre-arbítrio relativos. O livre-arbítrio sempre esteve limitado pelo passado e por um conjunto vasto de leis causais do tipo “se…então…”. Ao mesmo tempo, os seres humanos usam o livre-arbítrio para tirarem partido daquelas leis determinísticas que fazem parte da ciência e das máquinas que produziram. A maioria de nós guia carros, e somos nós e não estes quem decide quando e para onde vão. O determinismo usado de forma sábia e controlada – o que nem sempre se verifica – pode tornar-nos mais livres e felizes.

Terceiro: o determinismo é algo relativo, não apenas porque os seres humanos possuem liberdade de escolha, mas também porque a contingência e o acaso são um traço fundamental do cosmos. A contingência percebe-se melhor na intersecção de sequências de eventos independentes entre si sem qualquer conexão causal prévia. O meu exemplo favorito é o da colisão do transatlântico Titanic com um iceberg, a meio da noite de 14 de Abril de 1912. Foi um acidente terrível em que morreram mais de 1500 pessoas. A deriva do iceberg desde o norte e o percurso do Titanic de oeste a partir de Inglaterra, representam claramente duas sequências causais de eventos independentes.

Se, por hipótese, um grupo de especialistas tivesse sido capaz de identificar as duas sequências causais e assegurar que tal catástrofe estava predeterminada desde o momento em que o transatlântico deixou o porto de Southampton, ainda assim isso não perturbaria a minha teoria. A relação espaço-tempo do iceberg e do Titanic, desde que este iniciou a sua viagem, seria, em si mesma, uma relação de contingência, já que não haveria qualquer causa relevante para a explicar.

Como já referi, a presença constante da contingência no mundo é igualmente provada pelo facto de todas as leis naturais assumirem a forma de sequências ou relações do tipo “se…então…”. O elemento se é obviamente condicional e demonstra a coexistência habitual da contingência com o determinismo. A actualidade da contingência nega a ideia de uma necessidade total e universal a operar em todo o universo. No que diz respeito as escolhas humanas, a contingência assegura que o conjunto de alternativas que experienciamos são indeterminadas relativamente ao acto de escolher, o que faz depois com que uma delas seja determinada.

A minha quarta razão é que o significado aceite de potencialidade, nomeadamente, de que todo o objecto e evento no cosmos possuem possibilidades plurais de comportamento, interacção e desenvolvimento, deita por terra a tese determinista. Se quiseres realizar uma viagem de férias no próximo verão, pensarás sem qualquer dúvida em inúmeros destinos possíveis antes de te decidires. O determinismo implica que isso não seja mais do que teatro, pois está determinado escolheres precisamente o destino que escolheste. Quando relacionamos o padrão causal com a ideia de potencialidade, verificamos que a causação mediada pela escolha livre pode ter o seu efeito apropriado na actualização de qualquer uma das diversas possibilidades existentes.

Quinto: os processos normais do pensamento humano estão ligados com a ideia de potencialidade tal como a descrevi, e do mesmo modo tendem a mostrar que a liberdade de escolha é real. Pensar envolve constantemente concepções gerais, universais ou abstractas sob as quais são classificados os diferentes particulares. No caso que discuti na minha quarta razão, “viagem de férias” era a concepção geral e os diferentes lugares que poderias visitar eram os particulares, as alternativas, as potencialidades, que alguém podia livremente escolher. Se de facto não houver liberdade de escolha, então a função do pensamento humano de resolver problemas torna-se supérflua e numa máscara de faz-de-conta.

Sexto: é esclarecedor para o problema da liberdade de escolha perceber que apenas existe o presente, e que é sempre alguma actividade presente que dá origem ao passado, no mesmo sentido em que um esquiador deixa atrás de si um trilho na neve quando desce uma colina. Tudo o que existe – o vasto conjunto agregado de matéria inanimada, a imensa profusão de vida anterior, o ser humano em toda a sua diversidade - existe ou existem apenas como eventos quando ocorrem neste instante exacto, que é agora. O passado está morto e passado; existe apenas na medida em que se exprime nas estruturas e actividades presentes.

A actividade do presente imediatamente anterior estabelece os fundamentos através dos quais opera o presente imediato. O que aconteceu no passado cria tanto limitações como possibilidades, que condicionam sempre o presente. Mas condicionar neste sentido não significa o mesmo que determinar; cada dia se desenvolve a partir de agora no seu próprio momento, actualizando novos padrões de existência, mantendo e destruindo outros. Portanto, quando um homem escolhe e age no presente não é inteiramente controlado pelo passado, mas parte da evolução interminável do poder cósmico. É um agente activo e iniciador, que, montado na onda de um dado presente, delibera entre alternativas abertas para alcançar decisões relativamente às muitas e diversas fases da sua vida.

A minha sétima razão é que a doutrina do determinismo universal e eterno auto-refuta-se quando consideramos, por redução ao absurdo, todas as suas implicações. Se as nossas escolhas e acções de hoje estivessem determinadas ontem, então estariam igualmente determinadas antes de ontem, no dia do nosso nascimento, no dia do nascimento do nosso sistema solar e da terra há biliões de anos atrás. Considere-se então a consequência: para o determinismo, o chamado impulso irresistível que os sistemas jurídicos reconhecem quando julgam crimes cometidos por pessoas insanas, deve ser considerado com o mesmo vigor para as acções realizadas por pessoas sãs e virtuosas. Segundo a filosofia determinística, o homem bom sente um impulso irresistível para dizer a verdade, para ser bom para os animais e para expor a corrupção na política.

Oito: são inúmeras as palavras que perdem o seu significado normal no novo dialecto do determinismo. Refiro-me a palavras como abstenção, proibição, moderação e remorso. Uma vez provada a verdade do determinismo, teríamos que rasurar grande parte dos dicionários existentes e redefinir uma grande quantidade de coisas. Por exemplo, que significado deveria ter proibição quando já está determinado que irás recusar o segundo cocktail de Martini? Em boa verdade, só se pode proibir quando se quer impedir alguém de fazer alguma coisa que esteja no seu alcance fazer. Mas segundo o determinismo não poderias aceitar o segundo cocktail por já estar predeterminado dizeres “Não”. Não estou a dizer que a natureza deva conformar-se com os nossos usos linguísticos, mas os hábitos linguísticos dos seres humanos, que evoluíram ao longo da imensidão dos tempos, não podem ser negligenciados na análise do livre-arbítrio e do determinismo.

Finalmente, não penso que o termo responsabilidade moral possa manter o seu significado tradicional, a não ser que exista liberdade de escolha. Segundo a perspectiva da ética, da lei e do direito criminal, é difícil entender como um determinista consistente possa possuir um sentido de responsabilidade pessoal adequado relativamente ao desenvolvimento de padrões éticos decentes. Mas a questões permanecerá independentemente de terem sido ou de alguma vez poderem vir a ser deterministas consistentes, ou até do facto do livre-arbítrio ser um traço inato profundo tão característico da natureza humana, como sugeriu Jean-Paul Sartre ao afirmar “Não somos livres para deixar de ser livres”.»

Corliss Lamont, “Freedom of the Will and Human Responsibility” in Pojman, Louis P. (2006). Philosophy: The Quest for Truth. 6.ª ed. Nova Iorque: Oxford University Press, pp. 367-8 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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