terça-feira, 2 de setembro de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte VIII)

«Direitos de grupo e direitos individuais

Podemos agora ver que a forma habitual de denominar o debate sobre os direitos de grupo é equívoca. Dizem-nos frequentemente que os estados liberais se debatem com uma escolha entre um modelo “não discriminatório” (ou um modelo de “estado neutro”) e um modelo de “direitos de grupo”. Mas o que chamamos de “estado neutro” pode de facto ser visto como um sistema de “direitos de grupo” que apoia a língua, a história, a cultura e o calendário da maioria. Nos Estados Unidos, por exemplo, a política do governo induz sistematicamente todas as pessoas a aprender inglês e a considerar as suas escolhas vitais vinculadas à participação em instituições linguisticamente anglófonas. Isto é um sistema de “não discriminação” no sentido em que os grupos minoritários não são discriminados relativamente à corrente principal de instituições da cultura maioritária, mas não é “neutra” no sentido da sua relação com as identidades culturais.

Inversamente, o que as pessoas denominam de modelos de “direitos de grupo” pode ser visto de facto como uma forma mais robusta de discriminação. Além do mais, os portorriquenhos nos Estados Unidos ou os francófonos no Canadá que perseguem direitos linguísticos, não estão a pedir qualquer tipo de “direito de grupo” especial não concedido aos que são anglófonos. Estão simplesmente a pedir o mesmo tipo de direitos que a cultura maioritária dá como garantidos. Mas como se relaciona tudo isto com os direitos individuais? O reconhecimento dos grupos na constituição é frequentemente percebido como uma questão de “direitos colectivos”, e muitos liberais temem que os direitos colectivos sejam, por definição, inimigos dos direitos individuais. Este ponto de vista foi popularizado no Canadá pelo antigo primeiro-ministro Pierre Trudeau, o qual explicou a sua oposição aos direitos colectivos para o Quebéc dizendo que acreditava na “primazia do indivíduo”[1].

Sem dúvida, esta retórica dos direitos individuais contra os direitos colectivos é de pouca utilidade. Precisamos distinguir entre dois tipos de direitos colectivos que podem ser reclamados por um grupo. O primeiro deles implica o direito de um grupo relativamente aos seus próprios membros; o segundo implica o direito de um grupo relativamente ao resto da sociedade. Pode considerar-se que ambos os tipos de direitos colectivos protegem a estabilidade dos grupos nacionais, étnicos e religiosos. Não obstante, respondem a diferentes fontes de instabilidade. O primeiro tipo de direitos está dirigido a proteger o grupo do impacto desestabilizador da distância interna (quer dizer, da decisão dos membros individuais de não observarem práticas ou costumes tradicionais), enquanto que o segundo pretende proteger o grupo do impacto das pressões externas (quer dizer, das decisões económicas ou políticas da sociedade em que se englobam). Para distinguir entre estes dois tipos de direitos colectivos, chamarei aos primeiros “restrições internas” e aos segundos “protecções externas”.

Ambos os tipos são rotulados como “direitos colectivos”, mas levantam questões bastante distintas. As restrições internas referem-se às restrições intragrupais (o grupo étnico ou nacional pode perseguir a utilização do poder estatal para restringir a liberdade dos seus próprios membros em nome da solidariedade do grupo). Isto coloca o perigo da opressão individual. Os críticos dos “direitos colectivos” invocam frequentemente a imagem de culturas teocráticas e patriarcais em cujo seio as mulheres são oprimidas e a ortodoxia religiosa é legalmente imposta como um exemplo do que pode acontecer quando se concede prioridade aos desejados direitos de comunidade sobre os direitos do indivíduo.

De facto, todas as formas de governo e todo o exercício da autoridade política implicam a restrição da liberdade daqueles que estejam sujeitos a essa autoridade. Em todos os países, independentemente do seu grau de liberdade ou democracia, exige-se que as pessoas paguem impostos com o fim de financiar bens sociais. A maioria das democracias também exige que a pessoas participem na constituição de jurados ou prestem algum tipo de serviço militar ou comunitário. Em alguns países até o voto é obrigatório (por exemplo, na Austrália). Todos os governos esperam, e às vezes exigem, um mínimo de responsabilidade cívica e de participação por parte dos seus cidadãos. Alguns grupos, contudo, procuram impor restrições muito maiores à liberdade dos seus membros. Uma coisa é exigir que as pessoas participem num júri ou em eleições, e outra muito diferente é obrigá-las a assistir a uma determinada cerimónia religiosa ou a desempenhar papéis tradicionais de género. As primeiras exigências pretendem proteger os direitos liberais e as instituições democráticas. As segundas, restringir esses direitos em nome da tradição cultural ou da ortodoxia religiosa. Para os fins desta discussão empregarei o termo “restrições internas” para me referir exclusivamente ao último caso, em que se restringem as liberdades civis e políticas básicas dos membros de um grupo[2].

As protecções externas correspondem às relações entre grupos, quer dizer, o grupo étnico ou nacional pode procurar proteger a sua existência e especificidade limitando o impacto das decisões da sociedade mais ampla em que se inclui. Isto também implica certos perigos, já não de opressão individual no interior do grupo, mas de injustiça entre os grupos. Um grupo pode ver-se marginalizado ou segregado em nome da preservação da especificidade de outro grupo. A este propósito os críticos dos “direitos colectivos” citam com frequência o sistema de apartheid na África do Sul como um exemplo do que pode acontecer quando os grupos minoritários exigem protecções especiais relativamente ao resto da sociedade.

Ainda assim, as protecções externas não precisam criar tal injustiça. A concessão de direitos especiais de representação, de exigências territoriais ou de direitos linguísticos para uma minoria não a coloca necessariamente, e amiúde não o faz, numa posição dominante relativamente a outros grupos. Pelo contrário, ao reduzir o grau em que o grupo minoritário é vulnerável face ao maioritário, esses direitos podem ser vistos como o colocar em pé de igualdade diversos grupos entre si. É preciso recordar que as restrições internas podem existir, e de facto existem, em países culturalmente homogéneos. As protecções externas, contudo, só podem surgir nos estados multinacionais ou multi-étnicos, já que protegem um grupo étnico ou nacional particular do impacto desestabilizador das decisões do resto da sociedade[3].

Os dois tipos de exigências citadas não precisam andar juntas. Alguns grupos étnicos ou nacionais procuram uma protecção externa face ao resto da sociedade sem procurar a imposição legal de restrições internas sobre os seus próprios membros. Outros grupos não reclama qualquer protecção eterna relativamente à comunidade maioritária, mas procuram alcançar amplos poderes sobre o comportamento dos seus próprios membros. Por último, outros grupos colocam ambos os tipos de exigências. Estas variações conduzem a concepções fundamentalmente diversas dos direitos das minorias e é importante determinar se o tipo de direitos de grupo exigido pelas minorias nacionais implica restrições internas ou protecções externas.

Creio que na maioria dos países ocidentais as minorias nacionais exigem antes do mais protecções externas. Por exemplo, os quebequenses do Canadá estão basicamente preocupados em assegurar que a sociedade maioritária não os prive das condições necessárias para a sua sobrevivência. Falando em termos mais gerais, não os preocupa controlar o grau em que os seus próprios membros se envolvem em práticas pouco tradicionais ou ortodoxas. Por exemplo, a representação garantida no interior das instituições políticas da sociedade maioritária ou a devolução por parte do governo federal de poderes de auto-governo às minorias nacionais relativamente às decisões económicas e políticas da sociedade maioritária. As diversas formas de protecção externa são compatíveis, na minha opinião, com os valores liberais. Ainda que as protecções externas alentem o perigo de uns grupos poderem dominar outros, como no apartheid, isto não parece ser um perigo real no caso das protecções externas particulares que estão a ser actualmente exigidas na maioria das democracias ocidentais. Os poderes especiais de veto exigidos pelos franco-canadenses dificilmente os colocariam numa situação de dominação face aos anglo-canadenses. Pelo contrário, esses poderes podem considerar-se como estando em pé de igualdade com os diversos grupos em termos do seu poder relativo relativamente aos demais. O mesmo pode dizer-se das exigências dos portorriquenhos nos Estados Unidos ou dos flamengos na Bélgica. Para além disso, nenhuma dessas protecções externas precisa conflituar com os direitos individuais, já que por si mesmas nada nos dizem acerca do poder relativo do grupo relativamente aos demais. A existência dessas protecções externas informa-nos sobre a relação entre os grupos maioritário e minoritário. Todavia, nada nos dizem sobre a relação entre o grupo nacional e os seus próprios membros. Os grupos que possuem essas protecções externas podem respeitar completamente os direitos civis e políticos dos demais membros. Uma vez mais isto é, em geral, característico do quebequenses, catalães, flamengos ou portorriquenhos, os quais procuram protecções externas ao mesmo tempo que apoiam completamente a protecção constitucional dos direitos individuais.

É claro que os direitos de auto-governo podem ser usados, em determinadas circunstâncias, para oprimir os membros da minoria nacional. Por exemplo, alguns líderes do Quebéc pretenderam uma interpretação qualificada, ou a isenção total, da Carta Canadense dos Direitos e Liberdades em nome do auto-governo. Semelhante limitação da Carta criaria a possibilidade dos indivíduos ou das comunidades no interior do Quebéc poderem ser oprimidas em nome da solidariedade de grupo ou da pureza cultural. Exigências semelhantes foram feitas por tribos índias tanto nos Estados Unidos como no Canadá. A existência de um perigo real de opressão nestas situações é matéria de considerável discussão. O exemplo mais frequentemente discutido refere-se ao potencial de discriminação sexual nas culturas minoritárias. Por exemplo, foi expressa a preocupação com a possibilidade das mulheres índias poderem ser discriminadas em determinados sistemas de auto-governo indígena no caso destes virem a ser isentos da Carta Canadense de Direitos e Liberdade ou da Declaração Americana de Direitos[4].

Por outro lado, muitos líderes índios insistem que esse temor à opressão sexual é o reflexo de má informação e da existência de preconceitos estereotipados sobre as suas culturas. Defendem que o auto-governo índio precisa estar isento da Carta/Declaração de Direitos, não com o fim de restringir a liberdade das mulheres no interior das comunidades índias, mas para defender as protecções externas dos índios. Os seus direitos especiais sobre a terra, ou uma garantia de representação que ajudasse a reduzir a sua vulnerabilidade face à pressão política e económica da sociedade maioritária, poderiam ser desmantelados como formas de discriminação segundo a Carta/Declaração de Direitos[5].

Ainda assim, os líderes índios temem que os juízes brancos possam interpretar determinados direitos (por exemplo, os direitos democráticos) de uma forma culturalmente enviesada[6]. Dai que muitos juízes índios desejem a isenção face à Carta/Declaração de Direitos, mas afirmem ao mesmo tempo o seu compromisso com os direitos humanos e liberdades básicas que subjazem a esses textos constitucionais. Apoiam os princípios, mas levantam objecções às instituições particulares e aos procedimentos estabelecidos pela sociedade maioritária para impor esses princípios[7]. Por isso, desejam criar ou manter os seus próprios métodos para a protecção de direitos humanos especificados nas constituições tribais ou de bando, algumas das quais baseadas nos pressupostos dos protocolos internacionais de direitos humanos. Alguns grupos índios também aceitaram a ideia de que os seus auto-governos, como todos os governos soberanos, deveriam ser responsáveis perante os tribunais internacionais de direitos humanos (por exemplo, a Comissão de Direitos Humanos das nações Unidas). Contudo, opõem-se à pretensão de que as suas decisões de auto-governo se vejam submetidas aos tribunais federais da sociedade dominante (tribunais que historicamente aceitaram e legitimaram a colonização e a expropriação dos povos e dos territórios índios).

Em geral, existe um escasso apoio nas democracias ocidentais para colocar em prática restrições internas, incluindo no interior de comunidades minoritárias. Em vez disso, a maioria dos direitos colectivos para os grupos nacionais têm assumido a forma e têm sido defendidos mais como protecções externas relativamente à comunidade maioritária. A ideia de que os grupos nacionais deveriam ser capazes de proteger os seus costumes históricos mediante a limitação das liberdades cívicas básicas dos seus membros não desperta qualquer entusiasmo. Assim, por exemplo, não tem havido qualquer apoio público à restrição da liberdade religiosa em nome da protecção dos costumes religiosos de uma comunidade[8].

É claro que noutras partes do mundo em que as tradições liberais são menos influentes que existe uma maior probabilidade das minorias procurarem restrições internas. Mas é aqui que os liberais devem traçar uma linha. O que distingue uma teoria liberal dos direitos das minorias é precisamente o facto de poder aceitar as protecções externas (desde que não permitam que um grupo oprima outro), mas não as restrições internas. Os liberais podem aceitar os direitos de auto-governo, mas insistirão que todos os governos, tanto das minorias como das maiorias, devem observar as protecções constitucionais básicas dos direitos humanos. Não é necessário dizer que isto coloca questões importantes e difíceis sobre os limites da tolerância liberal e sobre quando pode uma nação maioritária (ou países estrangeiros) intervir através da força nos assuntos de uma minoria nacional. A intervenção coerciva nem sempre será apropriada ou prudente. Com efeito, o juízo dos liberais deveria ser claro: é errado e injusto que um grupo etnocultural preserve a sua “pureza” ou “autenticidade” através da restrição das liberdades básicas dos seus próprios membros.»
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[1] P. E. Trudeau, »The Values of a Just Society», in Thomas Axworthy (ed.), Towards a Just Society, Toronto, Viking Press, 1990, pp. 363-4.
[2] Obviamente, os grupos são livres de exigir semelhantes acções no âmbito da participação em associações privadas e voluntárias. Uma organização católica pode insistir na assistência à missa por parte dos seus membros. Os liberais insistem no facto de que quem quer que exerça o poder político no interior de uma comunidade deve respeitar os direitos civis e políticos dos seus membros, e que toda a tentativa de impor restrições internas que violem esta condição é ilegítima.
[3] Como discuti na secção anterior, existe um sentido em que o próprio Estado constitui uma protecção externa relativamente ao resto do mundo. Nesta secção, contudo, centrar-me-ei apenas nas exigências feitas por grupos étnicos e nacionais com o fim de se protegerem das decisões de outros grupos maioritários no interior do próprio Estado. Este tipo de exigências (ao contrário das restrições internas) só pode surgir num país pluralista.
[4] Veja-se Clara Christofferson, «Tribal Court’s Failure to Protect Native American Women: A Reappraisal of the Indian Civil Rights Act», Yale Law Journal, vol. 101/1, 1991, pp. 169-85; Judit Resnik, «Dependent Sovereigns: Indian Tribes, State and the Federal Courts», University of Chicago Law Review, vol. 56, pp. 671-759.
[5] Por exemplo, uma representação garantida para os índios poderia ser vista como uma violação da igualdade de direitos constante da Carta/Declaração, tal como poderia acontecer com as restrições sobre a mobilidade dos não índios nos territórios índios.
[6] Por exemplo, os métodos índios tradicionais de tomada de decisão por consenso poderiam ser vistos como uma negação dos direitos democráticos. Estes procedimentos tradicionais de tomada de decisão não violam o princípio democrático subjacente à constituição, a saber, que a autoridade legítima requer o consentimento, submetido a revisão periódica, dos governados. No entanto, os índios não empregam o método particular previsto na constituição para assegurar o consentimento dos governados, a saber, a eleição periódica dos representantes. Apoiam-se mais exactamente em determinados procedimentos ancestrais para assegurar a tomada de decisões por consenso. Os líderes índios preocupam-se com a possibilidade dos juízes brancos imporem a sua própria forma específica de democracia sem considerar se as práticas índias tradicionais constituem uma interpretação igualmente válida dos princípios democráticos.
[7] Como Carens assinalou, «supõe-se que as pessoas experimentam a realização dos princípios de justiça através de diversas instituições concretas, mas de facto podem experimentar muito da instituição e muito pouco dos princípio». Esta é uma forma bonita de captar o modo como muitos índios no Canadá e nos estados Unidos percepcionam o Supremo Tribunal. Experimentam os rituais e procedimentais do sistema judicial, mas quase nada dos princípios de justiça e de direitos humanos subjacentes. Sobre as discussões relativas à aplicação dos direitos constitucionais aos governos índios, veja-se Mary Ellen Turpel, «Aboriginal Peoples and the Canadian Charter: Interpretative Monopolies, Cultural Differences», Canadian Human Rights Yearbook, vol. 6, 1989, pp. 3-45; Menno Boldt, Surviving as Indians: The Challenge of Selfgovernment, Toronto, University of Toronto Press, 1993, pp. 147-56; Resnik, Dependent Sovereigns, pp. 725-42.
[8] Isto ocorre em algumas reservas índias americanas. Veja-se William Weston, «Freedom of Religion and the American Indian», in R. Nichols (ed.), The American Indian: Past and Present, 2ª ed., New York, John Wiley and Sons, 1981; Frances Svensson, «Liberal Democracy and Group Rights: the Legacy of Individualism and its Impact on American tribes», Political Studies, vol. 27/3, 1979, pp. 421-39. Há que notar que a ameaça à liberdade individual levantada pelas restrições internas não acontecem só com as minorias. Frequentemente é uma nação maioritária ou um Estado nação etnicamente homogéneo quem persegue ou oprime os seus membros. Discuti a distinção entre restrições internas e protecções externas e a sua relação com o liberalismo na minha obra Multicultural Citizenship, capítulos. 3 e 8.
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