segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Seyla Benhabib, "Para um Modelo Normativo de Legitimidade Democrática" (Parte I)

«Legitimidade democrática e bens públicos

Desde a Segunda Guerra Mundial que as sociedades democráticas modernas complexas se defrontam com a tarefa de assegurar três bens públicos: a legitimidade, o bem-estar económico e um sentimento viável de identidade colectiva. Estes são "bens" no sentido em que a sua realização é considerada valiosa e desejável pela maioria dos membros dessas sociedades; para além disso, não realizar algum ou uma combinação deles causaria problemas no funcionamento dessas sociedades, de tal modo que as lançaria numa crise.
Estes bens encontram-se numa relação complexa um com o outro: a realização excessiva de um destes bens pode estar em conflito com e pode pôr em risco a realização dos outros. Por exemplo, o bem-estar económico pode ser realizado à custa do sacrifício da legitimidade, restringindo os direitos sindicais, limitando um exame mais rigoroso das práticas contabilísticas nos negócios ou encorajando o uso injusto de medidas de protecção estatal. Por outro lado, atribuir demasiada ênfase à identidade colectiva pode atingir as minorias e os dissidentes, cujos direitos políticos e civis podem ser infringidos pelo renascimento de um sentimento de identidade colectiva. Desse modo, as pretensões de legitimidade e as exigências de identidade colectiva, particularmente se ganham um tom nacionalista, podem entrar em conflito. Pode também haver conflitos entre as pretensões de bem-estar económico e as exigências de identidades colectivas, como acontece quando formas de proteccionismo e nacionalismo excessivo isolam os países no contexto económico mundial, levando provavelmente a um declínio dos padrões de vida. De modo inverso, demasiada ênfase no bem-estar económico pode minar o sentimento de identidade colectiva ao aumentar a competição entre grupos sociais e enfraquecer as pretensões de soberania política vis-à-vis outros Estados. Numa sociedade democrática que funcione adequadamente as exigências de legitimidade, bem-estar económico e identidade colectiva existem idealmente segundo alguma forma de equilíbrio.

O presente ensaio preocupa-se com um bem entre outros que a sociedade democrática deve realizar: o bem da legitimidade. Estou interessada em examinar os fundamentos filosóficos da legitimidade democrática. Argumentarei que a legitimidade em sociedades democráticas complexas deve ser concebida como o resultado de uma deliberação livre e não constrangida de todos em torno das questões de preocupação comum. Assim, a esfera pública de deliberação acerca das questões de preocupação mútua é essencial para a legitimidade das instituições democráticas.

A democracia, de acordo com o meu ponto de vista, é melhor entendida como um modelo de organização do exercício público e colectivo do poder nas principais instituições de uma sociedade com base no princípio segundo o qual as decisões que atingem o bem-estar de uma colectividade podem ser encaradas como resultantes de um procedimento de deliberação livre e racional entre indivíduos considerados iguais política e moralmente. Claro que qualquer definição de conceitos essencialmente controversos como é o caso de democracia, liberdade e justiça, nunca é uma mera definição; a própria definição já articula ela própria uma teoria normativa que justifica o termo. É esse o caso da definição anterior. A minha compreensão da democracia privilegia um modelo deliberativo em face de outros tipos de considerações normativas. Isto não deve sugerir que o bem-estar económico, a eficiência institucional e a estabilidade cultural sejam irrelevantes para avaliar a adequação de uma definição normativa de democracia. As reivindicações de bem-estar económico e as necessidades de identidade colectiva devem igualmente ser satisfeitas para que possam funcionar ao longo do tempo. Contudo, os fundamentos normativos da democracia como uma forma de organização da nossa vida colectiva não residem na satisfação do nosso bem-estar económico nem na realização de um sentimento estável de identidade colectiva. Da mesma forma que realização de certos níveis de bem-estar económico pode ser compatível com um regime político autoritário, também um regime antidemocrático pode ser mais bem sucedido em assegurar um sentimento de identidade colectiva do que um regime democrático.

O meu objectivo na primeira parte deste ensaio será examinar a relação entre os pressupostos normativos da deliberação democrática e o conteúdo idealizado da racionalidade prática. A abordagem que sigo é consistente com o que John Rawls chamou de "construtivismo kantiano", e o que Jürgen Habermas apresenta como "reconstrução"[1]. Neste contexto, as diferenças nas suas metodologias são menos importantes do que o seu pressuposto compartilhado de que as instituições das democracias liberais incorporam o conteúdo idealizado de uma forma de razão prática. Esse conteúdo idealizado pode ser esclarecido e articulado filosoficamente; de facto, a tarefa de uma teoria filosófica da democracia consistiria em esclarecer e articular a forma da racionalidade prática representada pelo regime democrático[2].

A metodologia de "reconstrução filosófica" difere do "liberalismo etnocêntrico" (Richard Rorty) bem como de formas mais apriorísticas de kantianismo
[3]. Diferentemente de certos tipos de kantianismo, gostaria de reconhecer a especificidade histórica e sociológica do projecto da democracia. Por outro lado, contra o liberalismo etnocêntrico, gostaria de insistir que a racionalidade prática incorporada nas instituições democráticas tem uma pretensão de validade cultural-transcendente. Essa forma de razão prática tomou-se uma propriedade colectiva e anónima de culturas, instituições e tradições, como um resultado de tentativas e experiências, tanto antigas quanto modernas, com o regime democrático ao longo da história humana[4]. Os insights e talvez as ilusões resultantes destas tentativas e experiências estão sedimentados em diversas Constituições, arranjos institucionais e procedimentos específicos. Quando alguém pensa sobre qual será a forma da racionalidade prática que está no centro do regime democrático, o conceito de "espírito objectivo" (objektiver Geist) de Hegel parece-me ser particularmente apropriado[5]. Para tornar este conceito actualmente proveitoso temos de o pensar sem o recurso à presença metafórica de um super-sujeito; temos de dessubstancializar o modelo de um super-sujeito pensante e actuante que governa continuamente a filosofia hegeliana. Sem esta metáfora do sujeito, governando-o implicitamente, o termo "espírito objectivo" poderia reportar-se a essas regras, procedimentos e práticas colectivas anónimas, porém inteligíveis que formam um modo de vida. Seria a racionalidade intrínseca destas regras, procedimentos e práticas anónimas, porém inteligíveis, que qualquer tentativa que visasse a reconstrução da lógica das democracias deveria focalizar.»
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[1] Veja-se John Rawls, "Kantian constructivism in moral theory", Journal of Philosophy, v. 77, n. 9,1980, p. 515-72; uma versão revista e ampliada está incluída em Political liberalism. New York: Columbia University Press, 1993, p. 89-131; Jürgen Habermas, Moral consciousness and communicative action. Tradução para o Inglês: Christian Lenhardt e Shierry Weber Nicholsen. Cambridge, MA.: MIT Press, 1990, em particular o capítulo "Discourse ethics: notes on a program of philosophical justification”.
[2] Num valioso artigo intitulado "Freedom, consensus, and equality on collective decision making", Ethics, 10I, n.1, Outubro 1990, Thomas Christiano examina diferentes abordagens acerca dos fundamentos filosóficos da democracia.
[3] É bem conhecido que há aproximadamente uma década atrás John Rawls encolheu a estratégia kantiana de justificação normativa, seguida no seu Uma Teoria da Justiça, a favor de uma mais historicista e de um conceito de consenso de sobreposição mais situado social e politicamente. Os dois princípios de justiça seriam válidos, afirmava, não sub specie aeternitatis, mas porque articulam algumas das convicções sobre os fundamentos das formas de governo profundamente compartilhadas nas democracias liberais do Ocidente. Estas convicções profundamente defendidas constituiriam, nessas sociedades e quando devidamente depuradas, esclarecidas e articuladas, a base de um "consenso de sobreposição”. Veja-se John Rawls, "Justice as fairness: political not metaphysical", Philosophy and Public Affairs, 14, 1985, p. 223- 251; e "The idea of overlapping consensus", Oxford Journal of Legal Studies, 7, 1987, p. 1-25. Este desvio de uma estratégia de justificação kantiana para um modo mais historicista tem sido celebrado por alguns. Richard Rorty viu nesses desenvolvimentos recentes da obra de Rawls a confirmação da sua própria marca do "liberalismo etnocêntrico”. Veja-se Richard Rorty, "The priority of democracy to philosophy'”, in Objectivism, relativism, and truth, New York: Cambridge University Press, 1991. Para uma descrição lúcida destes desenvolvimentos da posição de Rawls e um exame crítico da ideia de "consenso de sobreposição", veja-se Kenneth Baynes, "Constructivism and pratical reason in Rawls”, em Analyse und Kritik. Zeitschrift für Sozialwissenchaften, 14, Jun. 1992, p.18-32.
[4] Veja-se o ensaio ainda clássico de Moses I. Finley, Democracy: ancient and modern, New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1985.
[5] O exemplo mais brilhante da metodologia de Hegel continua a ser a Filosofia do Direito, de 1821, traduzida para o inglês por T.M. Knox, NewYork: Oxford UniversityPress, 1973. O tipo de racionalidade colectiva anónima que tenho em mente tem sido desenvolvido por Karl Popper no domínio da epistemologia. Veja-se Karl Popper, Objective knowledge: an evolutionary approach, Oxford: Clarendon, 1972.

2 comentários:

manhã disse...

Bem, estamos na mesma linha, de divulgação dos textos filosóficos e incitamento a todos poderem ler e comentar, trocar ideias, discutir. Vimos dar notícias da nossa presença e esperamos poder entrar em diálogo. Parabéns pelo espaço!

Helena Serrão disse...

uma rectificação a fazer: o comentário anterior foi realizado com uma conta errada, rectificamos o nome: Logosfera (Carlos Marques e Helena Serrão, da Escola Secundária Luís de Freitas Branco)