quinta-feira, 3 de abril de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte III)

«Quando a utilidade marginal diminui, isso não acontece por causa de alguma deficiência da unidade marginal. Diminui em virtude da posição final dessa unidade numa sequência. Acontece o mesmo quando a utilidade marginal aumenta: a unidade marginal proporciona maior utilidade do que as unidades anteriores em virtude do efeito causado pela aquisição ou pelo consumo dessas unidades. Agora quando a sequência consiste em unidades de dinheiro, o que corresponde ao processo de aquecimento – pelo menos, numa característica pertinente e importante – é a poupança. Acumular dinheiro implica, como no processo de aquecimento, gerar, em algum ponto subsequente da sequência, uma capacidade para obter gratificações que não se podiam ter obtido antes.
O facto de que, ocasionalmente, possa valer especialmente a pena que uma pessoa poupe dinheiro em vez de gastar cada cêntimo que obtém deve-se, em parte, à incidência do que pode pensar-se como limiar de utilidade. Consideremos um item com as seguintes características: não é de desgaste, é a fonte de um tipo de satisfação nova e impossível de se obter de outra maneira e é tão caro que só pode ser adquirido mediante poupança. A utilidade da unidade de dinheiro que finalmente completa um plano de poupança para esse item pode ser maior que a utilidade de qualquer unidade de dinheiro poupado anteriormente. Será esse o caso quando a utilidade proporcionada pelo item for maior que a soma das utilidades que se poderiam obter se o dinheiro poupado fosse gasto à medida que entrava ou dividido em partes e usado para comprar outras coisas. Numa situação deste tipo, a última unidade de dinheiro poupada permite transpor um limiar de utilidade
[1].
Argumenta-se por vezes que, para qualquer pessoa racional, no sentido em que procura maximizar a utilidade gerada pelos seus gastos, a utilidade marginal do dinheiro deve necessariamente diminuir. Abba Lerner apresenta este argumento da seguinte forma:

O princípio da utilidade marginal decrescente do rendimento pode derivar-se da suposição de que os consumidores gastam os seus rendimentos de uma forma que maximiza a satisfação que podem obter através do bem adquirido. Com o rendimento dado, todas as coisas que se compram provocam uma satisfação maior pelo dinheiro que se gastou com elas do que qualquer uma das outras coisas que se poderiam ter comprado no seu lugar, mas que não se compraram precisamente por essa razão. Disto se depreende que se o rendimento fosse maior, as outras coisas que se comprariam com o aumento de rendimento seriam coisas que não se compraram quando o rendimento era menor porque davam menos satisfação; e se o rendimento fosse maior, comprar-se-iam coisas menos satisfatórias. Quanto maior for o rendimento, menos satisfatórias serão as coisas adicionais que se podem comprar com aumentos iguais ao rendimento. Isto refere-se ao princípio da utilidade marginal decrescente do dinheiro.
[2]

Lerner invoca aqui uma comparação entre a utilidade de B (n) – os bens que o consumidor racional efectivamente comprar com o seu rendimento de n unidades de dinheiro - e “as outras coisas que se poderiam ter comprado no seu lugar, mas que não se compraram”. Dado que prefere comprar B (n) mais do que qualquer outra coisa, que por hipótese não custa mais, o consumidor racional deve considerar que B (n) lhe oferece mais satisfação do que qualquer outra coisa. Daqui infere Lerner que o consumidor com n unidades adicionais de dinheiro só poderia comprar coisas com menos utilidade do que B (n); e concluiu que, em geral, “quanto maior for o rendimento, menos satisfatórias são as coisas adicionais que se podem comprar com aumentos iguais de rendimento”. Defende que esta conclusão é equivalente ao princípio da utilidade marginal decrescente de rendimento.
Parece evidente que Lerner falha na sua tentativa de deduzir o princípio desta maneira. Uma razão para isso é que a quantidade de satisfação que uma pessoa pode obter de um bem em particular pode variar de modo considerável nomeadamente se tiver ou não outros bens. Portanto, a satisfação que se pode obter a partir de certo gasto pode ser maior se já houve outro gasto. Suponhamos que o custo de uma porção de pipocas é igual ao custo de uma quantidade de manteiga suficiente para as tornar deliciosas; e suponhamos que um consumidor racional que adora pipocas com manteiga sente pouquíssima satisfação se as comer sem manteiga, mas que, ainda assim, as prefere a manteiga apenas. Portanto, preferirá comprar as pipocas, mas não a manteiga se tiver que optar por uma das coisas. Suponhamos agora que os rendimentos dessa pessoa aumentam de modo que podem comprar também a manteiga. Então poderá conseguir algo de que gosta extraordinariamente: um rendimento maior torna possível que compre a manteiga e as pipocas e que desfrute das pipocas com manteiga. A satisfação que obterá ao combinar as pipocas com a manteiga será consideravelmente maior do que a soma das satisfações que podia obter dos bens separadamente. Há aqui, uma vez mais, um efeito limiar.
Neste tipo de casos, o que o consumidor racional compra com o seu maior rendimento é um bem - B (i) – que, quando o seu rendimento era menor, havia recusado em favor de B (n), pois obtê-lo isoladamente teria sido menos satisfatório do que se tivesse apenas B (n). Sem dúvida que, apesar disto, não é verdade que a utilidade do rendimento que usa para comprar B (i) seja menor que a utilidade do rendimento que usava para comprar B (n). Quando existe a oportunidade de criar uma combinação que seja (como as pipocas com manteiga) sinergética no sentido de que agregar um bem a outro aumenta a utilidade de ambos, a utilidade marginal do rendimento não pode diminuir embora a sequência marginal dos itens marginais – tomados separadamente – exiba um padrão de utilidade decrescente.
O argumento de Lerner é defeituoso em virtude de uma outra consideração. Uma vez que ele fala das “coisas adicionais que se podem comprar com aumentos iguais de rendimento”, supõe evidentemente que um consumidor racional usa as suas primeiras n unidades de dinheiro para comprar um certo bem e usa qualquer aumento de rendimento que as supere para comprar algo mais. Isto leva Lerner a supor que o que o consumidor comprar quando o seu rendimento aumenta em i unidades de dinheiro (em que i é igual ao menor que n) deve ser algo que poderia ter comprado e que decidiu não comprar quando o seu rendimento era apenas de n unidades de dinheiro. Mas esta suposição é infundada. Com um rendimento de (n + i) unidades de dinheiro, o consumidor não precisa usar o seu dinheiro para comprar tanto B (n) como B (i). Poderia usá-lo para comprar algo que custasse mais do que qualquer um desses bens, algo que fosse demasiado caro para estar à sua disposição antes do seu rendimento aumentar. A questão é que se o consumidor racional com um rendimento de n unidades de dinheiro protela a compra de um bem em particular até que aumente o seu rendimento, isso não significa necessariamente que “recusou” comprá-lo quando o seu rendimento era menor. O bem em questão pode ter estado fora do seu alcance nesse momento porque custava mais do que n unidades de dinheiro. A sua razão para protelar a sua compra pode em absoluto não ter estado relacionada com as suas expectativas comparativas de satisfação ou com as suas preferências ou prioridades.
Deve considerar-se duas possibilidades. Suponhamos, por um lado, que em vez de comprar B (n) quando o seu rendimento é de n unidades de dinheiro, o consumidor racional, poupa dinheiro até que tenha agregado uma soma de i unidades de dinheiro e compre imediatamente B (n + i). Neste caso, é bastante evidente que o adiamento da compra de B (n + i) não significa que lhe tenha atribuído menor valor do que a B (n). Por outro lado, suponhamos que o consumidor racional se recuse a poupar para comprar B (n + i). e que gaste todo o dinheiro que tem com B (n). Neste caso, também será um erro interpretar que a sua conduta indique que prefere B (n). a B (n + i). A sua recusa em poupar para B (n + i). poderia dever-se apenas ao facto de considerar inútil fazê-lo por não acreditar ser razoável confiar que fosse possível poupar o suficiente para o comprar num momento oportuno.
A utilidade de B (n + i) pode não só ser maior do que a utilidade de B (n) ou de B (i) separadamente. Também pode ser maior que a soma das suas utilidades. Quer dizer, quando alguém adquire B (n + i), o consumidor pode estar a ultrapassar o limiar de utilidade. Então, a utilidade do aumento de i do seu rendimento é, na realidade, maior que a utilidade das n utilidades de dinheiro a que se agrega, embora i equivalha ou seja menor do que n. Nesse caso, o rendimento do consumidor racional não exibe uma utilidade marginal decrescente.»


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[1] Em virtude destes, uma unidade de dinheiro marginal ou incremental pode ter uma utilidade obviamente maior que as unidades de dinheiro que não permitem passar o limiar. Assim, uma pessoa que usa o dinheiro que lhe sobra durante certo tempo para introduzir alguma melhoria inconsequente na sua rotina de consumo – quem sabe, comprar carne de uma qualidade algo superior para o quotidiano - pode obter bastante menos utilidade adicional desta maneira do que se poupasse o dinheiro extra durante algumas semanas para ir ver um peça de teatro ou uma ópera maravilhosa. O efeito limiar é particularmente essencial para a experiência dos coleccionistas, que, em geral, sentem maior satisfação ao obter o item que finalmente completa a sua colecção - independentemente de qual seja – do que ao obter qualquer dos outros itens da colecção. Obter um item final implica passar o limiar de utilidade. É provável que uma colecção completa de vinte itens diferentes, sendo que cada um possui a mesma utilidade quando considerado individualmente, tenha uma maior utilidade para um coleccionista que uma colecção incompleta que tenha o mesmo tamanho, mas que inclua cópias. O facto da colecção estar completa possui, em si mesmo, utilidade, para além da utilidade proporcionada individualmente pelos itens que compõe a colecção.
[2] A. Lerner, op. cit., pp. 26-7.

1 comentário:

Porfirio Silva disse...

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