«PLURALIDADE E O ALEGADO VAZIO DE CONTEÚDO
A aceitação da pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser avaliada, pode levantar algumas dúvidas sobre o conteúdo da ideia de igualdade. Será que isso torna a igualdade, enquanto ideia política, menos robusta ou imperativa? Se é possível a igualdade falar através de tantas vozes, será que podemos levar a sério alguma das suas exigências?[1]
De facto, a aparente flexibilidade dos conteúdos da igualdade pareceu a alguns analistas uma fonte de grave embaraço para a ideia da igualdade. Tal como Douglas Rae (1981) o expressou (na sua meticulosa e útil exploração das várias noções contemporâneas de igualdade), "uma ideia que tem mais força para resistir à igualdade do que as de ordem ou eficiência ou liberdade" é "a própria igualdade" (p. 151).
Enquanto Rae sustenta que a ideia de igualdade está como que "saturada", outros sustentaram, por razões semelhantes, que a igualdade é "uma ideia vazia" - é "uma forma vazia que por si mesma não tem qualquer conteúdo substantivo "[2]. Uma vez que a igualdade pode ser interpretada de tantas maneiras diferentes, o requisito de igualdade não pode, segundo este modo de ver, ser tomado como uma verdadeira exigência substantiva.
É verdade seguramente que a mera exigência da igualdade sem dizer de quê é a igualdade, não pode ser tomado como exigência de algo específico. Isto dá uma certa plausibilidade à tese do vazio de conteúdo. Mas a tese é, acredito, ainda assim errónea. Primeiro, mesmo antes de um espaço específico ser escolhido, o requisito geral da necessidade de valorar a igualdade em algum espaço que é visto como particularmente importante não é uma exigência vazia. Isto relaciona-se com a disciplina imposta pela necessidade de alguma imparcialidade, alguma forma de igual consideração. É no mínimo um requisito de escrutínio da base do sistema de avaliação proposto. Pode ter também considerável poder de incisão, ao questionar teorias sem uma estrutura básica e rejeitar aquelas que terminam completamente sem uma igualdade básica. Mesmo nesse nível geral, a igualdade é um requisito substantivo e substancial.
Segundo, uma vez fixado o contexto, a igualdade pode ser uma exigência rigorosa e vigorosa. Por exemplo, quando o espaço está fixado, as exigências de igualdade impõem algum ranking de padrões, mesmo antes que qualquer índice específico de igualdade seja assumido. Por exemplo, ao lidar com a desigualdade de rendimentos, o assim chamado "princípio da transferência de Dalton" exige que uma pequena transferência de rendimento de uma pessoa mais rica para uma mais pobre - mantendo o total inalterado - deva ser vista como um melhoria distributiva[3]. Neste contexto, esta é uma regra bastante persuasiva para fazer rankings de distribuições do mesmo rendimento total através do requisito geral de igualdade sem apelar para qualquer índice ou medida específicos.
Além de tal ordenação de padrões num dado espaço, mesmo o exercício mais amplo da própria escolha do espaço pode ter ligações claras com a motivação subjacente à exigência de igualdade. Por exemplo, ao avaliar a justiça, ou o bem-estar social, ou padrões de vida ou a qualidade de vida, o exercício de escolha de espaço não é mais apenas formal, mas de discriminação substantiva. Como tentarei mostrar nos capítulos que se seguem, as pretensões de muitos desses espaços podem ser fortemente questionadas depois de fixado o contexto. Embora isso não nos leve necessariamente a uma única caracterização precisa das exigências de igualdade que seja importante em todos os contextos, isso está longe de ser um verdadeiro problema. Em cada contexto, as exigências de igualdade podem ser tanto distintas como forçosas.
Terceiro, a diversidade de espaços nos quais a igualdade pode ser exigida reflecte efectivamente uma diversidade mais profunda, que é a dos diferentes diagnósticos dos objectos portadores de valor - visões diferentes sobre as noções apropriadas da vantagem individual nos contextos em questão. O problema da diversidade não é, portanto, o único da avaliação da igualdade. As diferentes exigências de igualdade reflectem visões diferentes quanto a que coisas vão ser directamente valorizadas nesse contexto. Elas indicam ideias diferentes sobre como as vantagens de diferentes pessoas vão ser avaliadas vis-à-vis cada uma das outras no exercício em questão. Liberdades, direitos, utilidades, rendimentos, recursos, bens primários, satisfação de necessidades etc., fornecem maneiras diferentes de ver as respectivas vidas de pessoas diferentes, e cada uma das perspectivas conduz a uma visão correspondente da igualdade.
Esta mesma pluralidade - a de avaliar as vantagens de diferentes pessoas - reflecte-se nas visões diferentes não só da igualdade, mas também de qualquer outra noção social em cuja base informacional a vantagem individual entre substancialmente. Por exemplo, a noção de "eficiência" teria exactamente a mesma pluralidade relacionada com a escolha do espaço[4]. A eficiência cresce, e não há outro sentido para isso, sempre que há um aumento da vantagem de cada pessoa (ou uma melhoria da situação de pelo menos uma pessoa, sem piorara de qualquer outra), mas o conteúdo dessa caracterização depende do modo como a vantagem é definida. Quando a variável focal é fixada, nós temos uma definição específica da eficiência nesta estrutura geral.
Podem ser feitas comparações de eficiência em termos de diferentes variáveis. Se, por exemplo, a vantagem é vista em termos de utilidade individual, a noção de eficiência torna-se imediatamente o conceito de "optimalidade de Pareto" muito usado na economia do bem-estar. Esta exige que a situação seja tal que a utilidade de nenhuma pessoa possa ser aumentada sem reduzir a utilidade de alguma outra pessoa. Mas a eficiência também pode ser definida similarmente nos espaços de liberdades, direitos, rendimentos, e assim por diante. Por exemplo, correspondendo ao óptimo de Pareto no espaço de utilidades, a eficiência em termos de liberdade exigiria que a situação seja tal que a liberdade de nenhuma pessoa pode ser aumentada à custa da liberdade de outra. Formalmente, há uma multiplicidade de noções de eficiência exactamente iguais ao que já vimos para o caso da igualdade, relacionada com a pluralidade de espaços.
Este facto não é surpreendente, uma vez que a pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser considerada reflecte uma questão mais profunda, que é a pluralidade relativa à noção apropriada de vantagem individual em comparações sociais. A escolha entre esses espaços é sem dúvida uma parte essencial da literatura sobre a avaliação da desigualdade. Mas a pluralidade de espaços reflecte realmente as diversidades de abordagens substantivas da vantagem individual, e da base informacional de comparações interpessoais. A pluralidade de espaços não é um problema único - nem, é claro, uma fonte de dificuldade especial - da ideia de igualdade como tal.»
A aceitação da pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser avaliada, pode levantar algumas dúvidas sobre o conteúdo da ideia de igualdade. Será que isso torna a igualdade, enquanto ideia política, menos robusta ou imperativa? Se é possível a igualdade falar através de tantas vozes, será que podemos levar a sério alguma das suas exigências?[1]
De facto, a aparente flexibilidade dos conteúdos da igualdade pareceu a alguns analistas uma fonte de grave embaraço para a ideia da igualdade. Tal como Douglas Rae (1981) o expressou (na sua meticulosa e útil exploração das várias noções contemporâneas de igualdade), "uma ideia que tem mais força para resistir à igualdade do que as de ordem ou eficiência ou liberdade" é "a própria igualdade" (p. 151).
Enquanto Rae sustenta que a ideia de igualdade está como que "saturada", outros sustentaram, por razões semelhantes, que a igualdade é "uma ideia vazia" - é "uma forma vazia que por si mesma não tem qualquer conteúdo substantivo "[2]. Uma vez que a igualdade pode ser interpretada de tantas maneiras diferentes, o requisito de igualdade não pode, segundo este modo de ver, ser tomado como uma verdadeira exigência substantiva.
É verdade seguramente que a mera exigência da igualdade sem dizer de quê é a igualdade, não pode ser tomado como exigência de algo específico. Isto dá uma certa plausibilidade à tese do vazio de conteúdo. Mas a tese é, acredito, ainda assim errónea. Primeiro, mesmo antes de um espaço específico ser escolhido, o requisito geral da necessidade de valorar a igualdade em algum espaço que é visto como particularmente importante não é uma exigência vazia. Isto relaciona-se com a disciplina imposta pela necessidade de alguma imparcialidade, alguma forma de igual consideração. É no mínimo um requisito de escrutínio da base do sistema de avaliação proposto. Pode ter também considerável poder de incisão, ao questionar teorias sem uma estrutura básica e rejeitar aquelas que terminam completamente sem uma igualdade básica. Mesmo nesse nível geral, a igualdade é um requisito substantivo e substancial.
Segundo, uma vez fixado o contexto, a igualdade pode ser uma exigência rigorosa e vigorosa. Por exemplo, quando o espaço está fixado, as exigências de igualdade impõem algum ranking de padrões, mesmo antes que qualquer índice específico de igualdade seja assumido. Por exemplo, ao lidar com a desigualdade de rendimentos, o assim chamado "princípio da transferência de Dalton" exige que uma pequena transferência de rendimento de uma pessoa mais rica para uma mais pobre - mantendo o total inalterado - deva ser vista como um melhoria distributiva[3]. Neste contexto, esta é uma regra bastante persuasiva para fazer rankings de distribuições do mesmo rendimento total através do requisito geral de igualdade sem apelar para qualquer índice ou medida específicos.
Além de tal ordenação de padrões num dado espaço, mesmo o exercício mais amplo da própria escolha do espaço pode ter ligações claras com a motivação subjacente à exigência de igualdade. Por exemplo, ao avaliar a justiça, ou o bem-estar social, ou padrões de vida ou a qualidade de vida, o exercício de escolha de espaço não é mais apenas formal, mas de discriminação substantiva. Como tentarei mostrar nos capítulos que se seguem, as pretensões de muitos desses espaços podem ser fortemente questionadas depois de fixado o contexto. Embora isso não nos leve necessariamente a uma única caracterização precisa das exigências de igualdade que seja importante em todos os contextos, isso está longe de ser um verdadeiro problema. Em cada contexto, as exigências de igualdade podem ser tanto distintas como forçosas.
Terceiro, a diversidade de espaços nos quais a igualdade pode ser exigida reflecte efectivamente uma diversidade mais profunda, que é a dos diferentes diagnósticos dos objectos portadores de valor - visões diferentes sobre as noções apropriadas da vantagem individual nos contextos em questão. O problema da diversidade não é, portanto, o único da avaliação da igualdade. As diferentes exigências de igualdade reflectem visões diferentes quanto a que coisas vão ser directamente valorizadas nesse contexto. Elas indicam ideias diferentes sobre como as vantagens de diferentes pessoas vão ser avaliadas vis-à-vis cada uma das outras no exercício em questão. Liberdades, direitos, utilidades, rendimentos, recursos, bens primários, satisfação de necessidades etc., fornecem maneiras diferentes de ver as respectivas vidas de pessoas diferentes, e cada uma das perspectivas conduz a uma visão correspondente da igualdade.
Esta mesma pluralidade - a de avaliar as vantagens de diferentes pessoas - reflecte-se nas visões diferentes não só da igualdade, mas também de qualquer outra noção social em cuja base informacional a vantagem individual entre substancialmente. Por exemplo, a noção de "eficiência" teria exactamente a mesma pluralidade relacionada com a escolha do espaço[4]. A eficiência cresce, e não há outro sentido para isso, sempre que há um aumento da vantagem de cada pessoa (ou uma melhoria da situação de pelo menos uma pessoa, sem piorara de qualquer outra), mas o conteúdo dessa caracterização depende do modo como a vantagem é definida. Quando a variável focal é fixada, nós temos uma definição específica da eficiência nesta estrutura geral.
Podem ser feitas comparações de eficiência em termos de diferentes variáveis. Se, por exemplo, a vantagem é vista em termos de utilidade individual, a noção de eficiência torna-se imediatamente o conceito de "optimalidade de Pareto" muito usado na economia do bem-estar. Esta exige que a situação seja tal que a utilidade de nenhuma pessoa possa ser aumentada sem reduzir a utilidade de alguma outra pessoa. Mas a eficiência também pode ser definida similarmente nos espaços de liberdades, direitos, rendimentos, e assim por diante. Por exemplo, correspondendo ao óptimo de Pareto no espaço de utilidades, a eficiência em termos de liberdade exigiria que a situação seja tal que a liberdade de nenhuma pessoa pode ser aumentada à custa da liberdade de outra. Formalmente, há uma multiplicidade de noções de eficiência exactamente iguais ao que já vimos para o caso da igualdade, relacionada com a pluralidade de espaços.
Este facto não é surpreendente, uma vez que a pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser considerada reflecte uma questão mais profunda, que é a pluralidade relativa à noção apropriada de vantagem individual em comparações sociais. A escolha entre esses espaços é sem dúvida uma parte essencial da literatura sobre a avaliação da desigualdade. Mas a pluralidade de espaços reflecte realmente as diversidades de abordagens substantivas da vantagem individual, e da base informacional de comparações interpessoais. A pluralidade de espaços não é um problema único - nem, é claro, uma fonte de dificuldade especial - da ideia de igualdade como tal.»
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[1] Há também uma questão aparentada embora distinta sobre se a igualdade pode prover uma justificação suficientemente profunda para qualquer estrutura social. Robert Goodin (1988) faz uma pergunta interessante relativa a saber se o "igualitarismo aparente" subjacente às "práticas do Estado do bem-estar" não é, em última instância, somente "epifenoménico" (pp. 51-69). O argumento depende, como Goodin assinala, de como a igualdade é definida, e a sua resposta afirmativa à questão baseia-se no conflito entre diferentes visões de igualdade (incluindo aquela implícita no que ele chama de "imparcialidade").
[2] Westen (1982: 596).
[3] Sobre isso ver Dalton (1920), Kolm (1969), Atkinson (1970b, 1983). Sobre algumas implicações normativas adicionais desta propriedade, ver Dasgupta, Sen & Starrett (1973) e Rothschild & Stiglitz (1973), e também OEI, cap. 3.
[4] Embora a pluralidade seja exactamente igual em princípio, é possível que possa haver empiricamente mais "divergências relativas ao espaço" entre comparações de desigualdade do que entre comparações de eficiência; sobre isso, ver Sen (1992b).
[1] Há também uma questão aparentada embora distinta sobre se a igualdade pode prover uma justificação suficientemente profunda para qualquer estrutura social. Robert Goodin (1988) faz uma pergunta interessante relativa a saber se o "igualitarismo aparente" subjacente às "práticas do Estado do bem-estar" não é, em última instância, somente "epifenoménico" (pp. 51-69). O argumento depende, como Goodin assinala, de como a igualdade é definida, e a sua resposta afirmativa à questão baseia-se no conflito entre diferentes visões de igualdade (incluindo aquela implícita no que ele chama de "imparcialidade").
[2] Westen (1982: 596).
[3] Sobre isso ver Dalton (1920), Kolm (1969), Atkinson (1970b, 1983). Sobre algumas implicações normativas adicionais desta propriedade, ver Dasgupta, Sen & Starrett (1973) e Rothschild & Stiglitz (1973), e também OEI, cap. 3.
[4] Embora a pluralidade seja exactamente igual em princípio, é possível que possa haver empiricamente mais "divergências relativas ao espaço" entre comparações de desigualdade do que entre comparações de eficiência; sobre isso, ver Sen (1992b).
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