«Será intrinsecamente mau produzir uma pessoa através da clonagem?
Enfrentemos agora a questão de saber se o uso da clonagem para produzir uma pessoa é, em princípio, moralmente aceitável ou não. Nesta secção, vou-me concentrar na questão de saber se a clonagem, quando usada, é intrinsecamente má. Depois, na secção seguinte, procurarei saber se a clonagem para produzir pessoas possui necessariamente consequências que a tornam moralmente errada.
Como pode alguém argumentar que a produção de pessoas através da clonagem é intrinsecamente má? Parece aqui que o Dan Brock terá razão quando sugere que existem basicamente duas linhas de argumentação que merecem ser examinadas[1]. Primeiro, há um argumento que apela ao que pode inicialmente ser descrito como o direito da pessoa a ser um indivíduo único, mas que, no final, deve apenas ser caracterizado de facto como o direito das pessoas a possuir uma natureza genética única. Segundo, há um argumento que apela à ideia de que a pessoa possui um direito a um futuro que está, num certo sentido, em aberto.
Será que uma pessoa possui o direito a uma natureza genética única?
Inúmeras pessoas sentem que ser um ser individual único é importante, e o pressuposto básico desta tentativa para mostrar que a clonagem é intrinsecamente errada envolve a ideia de que a unicidade dos indivíduos seria de algum modo prejudicada pela clonagem. Em resposta, penso que é legítimo questionar se a unicidade é relevante. Se, por exemplo, se vier a descobrir que existe, talvez num planeta distante, um indivíduo qualitativamente idêntico a alguém, até ao mais pequeno detalhe, tanto física como psicologicamente, será que isso tornaria a vida dessa pessoa menos valiosa, menos merecedora de ser vivida?
Ao pensar sobre esta questão, pode ser importante distinguir dois casos diferentes: primeiro, o caso em que as duas vidas são qualitativamente idênticas em função da acção de leis causais determinísticas; segundo, o caso em que se dá a coincidência de ambos os indivíduos viverem sempre situações similares em que livremente decidem agir da mesma forma, têm os mesmos pensamentos e sentimentos, e assim por diante. O segundo cenário, como sugeri, não é problemático. Mas o primeiro pode ser. Mas se for, será por haver uma pessoa que é qualitativamente indistinguível de outra ou por a sua vida estar totalmente determinada?
Desta forma, talvez esteja inclinado a problematizar a perspectiva amplamente aceite de que a unicidade é uma parte importante do valor da vida de alguém. Felizmente, contudo, não é necessário responder a essa questão neste momento, uma vez que a clonagem não produz, efectivamente, uma pessoa qualitativamente indistinguível do indivíduo clonado, uma vez que, como acontece no caso dos gémeos idênticos, dois indivíduos com o mesmo código genético, mesmo tendo sido criados na mesma família na mesma altura, diferem em aspectos relevantes, por causa dos diferentes eventos que compõe a sua história de vida.
Quão profundas são as diferenças? O resultado de um estudo diz o seguinte:
Em média, os nossos questionários mostram que os traços de personalidade de gémeos idênticos apresentam uma correlação de 50%. Os traços de gémeos falsos, pelo contrário, apresentam uma correlação de 25%, irmãos não-gémeos uma correlação de 11% e estranhos uma correlação próxima do 0%.[2]
Consequentemente, os traços de personalidade de um indivíduo e do seu clone devem, em média e presumivelmente, apresentar níveis de correlação provavelmente inferiores, dado que um indivíduo e o seu clone serão educados em tempos diferentes, e em gerações que podem diferir substancialmente ao nível das crenças básicas e dos valores fundamentais.
O presente argumento, se quiser ser bem sucedido, deve abandonar a tese de que uma pessoa tem o direito a uma unicidade absoluta e passar a afirmar uma outra, a saber, que uma pessoa tem o direito a uma natureza geneticamente única. Então como fica o argumento depois desta reformulação?
Um aspecto inicial digno de ser sublinhado refere-se ao facto de qualquer defesa do direito a uma natureza geneticamente única levantar uma dificuldade ao teísta: se existe um tal direito, por que razão terá Deus criado um mundo em que podem nascer gémeos idênticos? Mas há, claro, muitas características do mundo que são deveras surpreendentes, se for o caso de o nosso mundo ter sido criado por uma pessoa omnipotente, omnisciente e moralmente perfeita, pelo que o teísta que defende um direito a uma natureza geneticamente única pode simplesmente responder que a presença de gémeos é apenas mais uma faceta do problema geral do mal.
Como devemos analisar a questão de saber se as pessoas têm direito a uma natureza geneticamente única? Penso que para alguns escritores é suficiente uma resposta do tipo “ónus da prova”. A ideia aqui seria que, embora possa ser o caso que bastantes pessoas de facto pensem que ser um indivíduo único, no sentido de não ser qualitativamente idêntico a alguém, é uma parte importante do que confere valor ao ser uma pessoa, mas a ideia de que as pessoas possuem um direito a uma identidade genética única só foi introduzida recentemente e aqueles que a defendem devem apresentar razões para que a aceitemos como verdadeira.
Há, contudo, formas de procurar resolver esta questão que implicam oferecer argumentos contra esta tese. Por exemplo, uma possibilidade é apelar para as nossas intuições ponderadas. Assim, podemos considerar o caso dos gémeos idênticos e perguntar, depois de reflectirmos, se pensamos que seria prima facie errado reproduzir-nos se soubéssemos que, ao fazê-lo, isso resultasse em gémeos idênticos. Acredito que seria surpreendente se bastantes pessoas sentissem isso.
Uma outra forma de responder à questão é apelando para alguma teoria geral plausível dos direitos. Assim, por exemplo, estou inclinado a pensar que esses direitos existem quando há interesses próprios reais que devem ser preservados. Se uma tal perspectiva for correcta, poderemos finalmente enfrentar o problema de saber se as pessoas possuem o direito a uma natureza geneticamente única perguntando se alguém possui um interesse próprio real que seria eliminado se fosse um clone. Será este um desses casos? A razão inicial para pensar que não é o caso é que a existência de um clone não parece afectar uma pessoa da mesma forma que impedir alguém de realizar uma acção que prejudique outra, ou de ser torturado, ou morto: um clone distante pode não ter qualquer impacto na vida da pessoa clonada.
Em resposta, pode argumentar-se que, enquanto que a mera existência de um clone não precisa de ter qualquer impacto, pelo que não afecta de modo algum os interesses próprios de uma qualquer pessoa, a situação poderá ser bem diferente se essa pessoa viesse a saber da existência de um clone seu, já que esse conhecimento poderia, por exemplo, prejudicar o seu sentido de individualidade. Mas por que seria esse o caso, dado que os indivíduos podem diferir significativamente, embora partilhando o mesmo código genético? Parece-me que se o conhecimento da existência de um clone pode ser perturbador, isso deve acontecer por causa da presença de alguma crença relevante falsa como é o caso da crença no determinismo genético. Mas se for esse o caso, surgirá a questão de saber se tais direitos existem quando os interesses que protegem são tais que serão prejudicados apenas se os sujeitos potenciais do dano possuírem determinadas crenças falsas e presumivelmente irracionais. A minha convicção é que a responsabilidade por tal dano será devidamente atribuída ao indivíduo que adquiriu as crenças irracionais cuja presença é necessária se for o caso de haver qualquer dano. Consequentemente, parece-me que as acções dos outros não devem ser constrangidas de modo a impedir que algum dano possa ocorrer, pelo que nenhum direito estará a ser violado nesse caso.
Uma terceira forma de pensar sobre esta questão de saber se existe um direito a uma natureza genética única é considerando que o cenário em que indivíduos possuem o mesmo código genético é de facto bastante comum, e considerando que um tal mundo seria inferior ao actual. Por exemplo, imagine o leitor que estamos no ano 4004 a.C. e que Deus está a pensar criar seres humanos. Já pensou na possibilidade de os seres humanos resultarem de um processo evolutivo, mas rejeitou esse plano com base na ideia de que uma solução baseada no acaso para uma questão tão vital como dar existência a seres humanos, seria bastante inapropriada. Também está a considerar criar um par humano original que seja geneticamente distinto, a partir do qual surgirão seres humanos que serão geneticamente bem diversos. Contudo, depois de alguma reflexão essa ideia também lhe pareceu imperfeita, já que a mistura aleatória dos genes daria origem a indivíduos que podiam ser fisicamente deficientes, ou com tendências para doenças desagradáveis, como o cancro, o que lhes causaria um enorme sofrimento e provocaria mortes prematuras. Assim, no final, o Criador decidiu-se por uma constituição genética que possuísse as duas propriedades seguintes: primeiro, não resultaria em sérias deficiências físicas e doenças, o que permitiria que um indivíduo, capaz de fazer escolhas acertadas, crescesse mental e espiritualmente. Segundo, todos os genes conteriam alelos idênticos. Deus criou então uma pessoa com essa caracterização genética – chamou-lhe Eva – e um segundo indivíduo, Adão, cuja única diferença genética estaria no facto deste possuir um cromossoma X e um cormossoma Y, enquanto que a Eva teria dois cromossomas X. O resultado seria que quando Adão e Eva reproduzissem, tal aconteceria efectivamente, por causa do facto de possuírem, para além de uma diferença, a mesma caracterização genética, com alelos idênticos por cada caracter herdado, pelo que todos os seus descendentes serão geneticamente idênticos a Adão ou a Eva.
Em que medida será esse mundo comparável ao actual? Se estivéssemos a escolher por detrás do véu de ignorância de Rawls, seria racional preferir o mundo actual ou o mundo alternativo? Talvez esta não seja uma questão fácil. Mas parece claro que há algumas mais valias significativas associadas ao mundo alternativo. Primeiro, ao contrário do mundo actual, estaria garantida uma caracterização genética livre de disposições para doenças indesejáveis e encurtadoras da vida, ou de outras condições debilitantes como a depressão, a esquizofrenia, e assim por diante. Segundo, os traços herdados seriam distribuídos de uma forma perfeitamente equitativa, e ninguém começaria, como acontece no mundo actual, em sérias desvantagens, tendo que enfrentar árduas batalhas. Terceiro, para além das diferenças entre homem e mulher, todos seriam fisicamente idênticos, e as pessoas diferenciar-se-iam apenas com relação às suas “almas”, pelo que teríamos um mundo em que os julgamentos das pessoas provavelmente teriam uma base mais superficial do que acontece frequentemente no mundo actual. Portanto, parece que há razões sérias para preferir o mundo alternativo ao mundo actual.
A terceira vantagem que acabei de mencionar aponta também, seguramente, para uma óbvia rejeição prática do mundo alternativo: saber quem é quem seria uma questão bastante mais difícil do que o que acontece no mundo actual. Mas pode lidar-se com este problema com as variáveis do anterior cenário. Uma variante, por exemplo, envolveria possuir uma identidade de caracterização genética excepto no que diz respeito aos genes que determinam a aparência da face e do cabelo. Dessa forma seria tão fácil identificar os indivíduos no mundo alternativo como o é fazê-lo no actual. Claro que esta mudança significaria estarmos a considerar um mundo alternativo em que existiria uma ampla identidade ao nível da caracterização genética. Ainda assim, se este mundo fosse preferível ao mundo actual, penso que isso continuaria a fornecer um argumento contra a perspectiva de que os indivíduos têm um direito a uma caracterização genética única. Porque, em primeiro lugar, considerar que o mundo alternativo seria preferível sugeriria fortemente que a diferença genética, ao invés de ser desejável em si própria, é valiosa apenas na medida em que permite identificar as pessoas com maior facilidade. Em segundo lugar, será plausível defender que, embora a unicidade genética seja crucial, um nível bastante elevado de similitude genética não é? Mas no mundo alternativo que estamos aqui a considerar, o grau de similitude entre dois indivíduos seria extraordinariamente elevado. Em terceiro lugar, o mundo alternativo é tal que os genes que determinam a estrutura inicial do cérebro individual não são meramente similares, mas absolutamente idênticos em todos os indivíduos. Mas então alguém pode defender de forma plausível que a unicidade genética é moralmente crucial, ao mesmo tempo que aceita que um mundo em que os indivíduos não difiram quanto aos genes que determinam a natureza inicial dos seus cérebros possa ser melhor do que o mundo actual?
Estas considerações, sugiro, dão-nos boas razões para defender que alguém não pode sustentar de forma plausível que os indivíduos têm direito a uma natureza genética única, sem também defender que o actual mundo é preferível ao mundo alternativo antes descrito. O problema da identificação pode, contudo, ser enfrentado sem mudar para um mundo em que as pessoas difiram geneticamente, uma vez que se pode supor que um mecanismo diferente para identificar outras pessoas faria parte dos seres humanos. Deus poderia, por exemplo, incorporar um circuito especial nos cérebros humanos, que emitiria não apenas o nome, mas também informação individual apropriada para identificar alguém, e que receberia a informação emitida pelos outros seres humanos que estivessem no interior do campo perceptivo. A informação seria confrontada com uma banco dados que contivesse informação relativa a qualquer pessoa conhecida, e se afinal alguma pessoa familiar estivesse dentro do campo perceptivo e se quiséssemos saber quem seria a pessoa em questão, estaríamos automaticamente na posse de informação relevante para o fazer.
O resultado seria um mundo em que todos os indivíduos teriam exactamente o mesmo código genético, independentemente dos cromossomas X e Y, e todas as características atraentes do mundo alternativo original estariam presentes, sem que houvesse problemas de identificação. Pode então perguntar-se em que medida este mundo se compara ao mundo actual, e se, em particular e após reflexão, o facto de todas as pessoas neste mundo alternativo possuírem essencialmente a mesma caracterização genética poder realmente ser uma razão para preferir o mundo actual.»
Enfrentemos agora a questão de saber se o uso da clonagem para produzir uma pessoa é, em princípio, moralmente aceitável ou não. Nesta secção, vou-me concentrar na questão de saber se a clonagem, quando usada, é intrinsecamente má. Depois, na secção seguinte, procurarei saber se a clonagem para produzir pessoas possui necessariamente consequências que a tornam moralmente errada.
Como pode alguém argumentar que a produção de pessoas através da clonagem é intrinsecamente má? Parece aqui que o Dan Brock terá razão quando sugere que existem basicamente duas linhas de argumentação que merecem ser examinadas[1]. Primeiro, há um argumento que apela ao que pode inicialmente ser descrito como o direito da pessoa a ser um indivíduo único, mas que, no final, deve apenas ser caracterizado de facto como o direito das pessoas a possuir uma natureza genética única. Segundo, há um argumento que apela à ideia de que a pessoa possui um direito a um futuro que está, num certo sentido, em aberto.
Será que uma pessoa possui o direito a uma natureza genética única?
Inúmeras pessoas sentem que ser um ser individual único é importante, e o pressuposto básico desta tentativa para mostrar que a clonagem é intrinsecamente errada envolve a ideia de que a unicidade dos indivíduos seria de algum modo prejudicada pela clonagem. Em resposta, penso que é legítimo questionar se a unicidade é relevante. Se, por exemplo, se vier a descobrir que existe, talvez num planeta distante, um indivíduo qualitativamente idêntico a alguém, até ao mais pequeno detalhe, tanto física como psicologicamente, será que isso tornaria a vida dessa pessoa menos valiosa, menos merecedora de ser vivida?
Ao pensar sobre esta questão, pode ser importante distinguir dois casos diferentes: primeiro, o caso em que as duas vidas são qualitativamente idênticas em função da acção de leis causais determinísticas; segundo, o caso em que se dá a coincidência de ambos os indivíduos viverem sempre situações similares em que livremente decidem agir da mesma forma, têm os mesmos pensamentos e sentimentos, e assim por diante. O segundo cenário, como sugeri, não é problemático. Mas o primeiro pode ser. Mas se for, será por haver uma pessoa que é qualitativamente indistinguível de outra ou por a sua vida estar totalmente determinada?
Desta forma, talvez esteja inclinado a problematizar a perspectiva amplamente aceite de que a unicidade é uma parte importante do valor da vida de alguém. Felizmente, contudo, não é necessário responder a essa questão neste momento, uma vez que a clonagem não produz, efectivamente, uma pessoa qualitativamente indistinguível do indivíduo clonado, uma vez que, como acontece no caso dos gémeos idênticos, dois indivíduos com o mesmo código genético, mesmo tendo sido criados na mesma família na mesma altura, diferem em aspectos relevantes, por causa dos diferentes eventos que compõe a sua história de vida.
Quão profundas são as diferenças? O resultado de um estudo diz o seguinte:
Em média, os nossos questionários mostram que os traços de personalidade de gémeos idênticos apresentam uma correlação de 50%. Os traços de gémeos falsos, pelo contrário, apresentam uma correlação de 25%, irmãos não-gémeos uma correlação de 11% e estranhos uma correlação próxima do 0%.[2]
Consequentemente, os traços de personalidade de um indivíduo e do seu clone devem, em média e presumivelmente, apresentar níveis de correlação provavelmente inferiores, dado que um indivíduo e o seu clone serão educados em tempos diferentes, e em gerações que podem diferir substancialmente ao nível das crenças básicas e dos valores fundamentais.
O presente argumento, se quiser ser bem sucedido, deve abandonar a tese de que uma pessoa tem o direito a uma unicidade absoluta e passar a afirmar uma outra, a saber, que uma pessoa tem o direito a uma natureza geneticamente única. Então como fica o argumento depois desta reformulação?
Um aspecto inicial digno de ser sublinhado refere-se ao facto de qualquer defesa do direito a uma natureza geneticamente única levantar uma dificuldade ao teísta: se existe um tal direito, por que razão terá Deus criado um mundo em que podem nascer gémeos idênticos? Mas há, claro, muitas características do mundo que são deveras surpreendentes, se for o caso de o nosso mundo ter sido criado por uma pessoa omnipotente, omnisciente e moralmente perfeita, pelo que o teísta que defende um direito a uma natureza geneticamente única pode simplesmente responder que a presença de gémeos é apenas mais uma faceta do problema geral do mal.
Como devemos analisar a questão de saber se as pessoas têm direito a uma natureza geneticamente única? Penso que para alguns escritores é suficiente uma resposta do tipo “ónus da prova”. A ideia aqui seria que, embora possa ser o caso que bastantes pessoas de facto pensem que ser um indivíduo único, no sentido de não ser qualitativamente idêntico a alguém, é uma parte importante do que confere valor ao ser uma pessoa, mas a ideia de que as pessoas possuem um direito a uma identidade genética única só foi introduzida recentemente e aqueles que a defendem devem apresentar razões para que a aceitemos como verdadeira.
Há, contudo, formas de procurar resolver esta questão que implicam oferecer argumentos contra esta tese. Por exemplo, uma possibilidade é apelar para as nossas intuições ponderadas. Assim, podemos considerar o caso dos gémeos idênticos e perguntar, depois de reflectirmos, se pensamos que seria prima facie errado reproduzir-nos se soubéssemos que, ao fazê-lo, isso resultasse em gémeos idênticos. Acredito que seria surpreendente se bastantes pessoas sentissem isso.
Uma outra forma de responder à questão é apelando para alguma teoria geral plausível dos direitos. Assim, por exemplo, estou inclinado a pensar que esses direitos existem quando há interesses próprios reais que devem ser preservados. Se uma tal perspectiva for correcta, poderemos finalmente enfrentar o problema de saber se as pessoas possuem o direito a uma natureza geneticamente única perguntando se alguém possui um interesse próprio real que seria eliminado se fosse um clone. Será este um desses casos? A razão inicial para pensar que não é o caso é que a existência de um clone não parece afectar uma pessoa da mesma forma que impedir alguém de realizar uma acção que prejudique outra, ou de ser torturado, ou morto: um clone distante pode não ter qualquer impacto na vida da pessoa clonada.
Em resposta, pode argumentar-se que, enquanto que a mera existência de um clone não precisa de ter qualquer impacto, pelo que não afecta de modo algum os interesses próprios de uma qualquer pessoa, a situação poderá ser bem diferente se essa pessoa viesse a saber da existência de um clone seu, já que esse conhecimento poderia, por exemplo, prejudicar o seu sentido de individualidade. Mas por que seria esse o caso, dado que os indivíduos podem diferir significativamente, embora partilhando o mesmo código genético? Parece-me que se o conhecimento da existência de um clone pode ser perturbador, isso deve acontecer por causa da presença de alguma crença relevante falsa como é o caso da crença no determinismo genético. Mas se for esse o caso, surgirá a questão de saber se tais direitos existem quando os interesses que protegem são tais que serão prejudicados apenas se os sujeitos potenciais do dano possuírem determinadas crenças falsas e presumivelmente irracionais. A minha convicção é que a responsabilidade por tal dano será devidamente atribuída ao indivíduo que adquiriu as crenças irracionais cuja presença é necessária se for o caso de haver qualquer dano. Consequentemente, parece-me que as acções dos outros não devem ser constrangidas de modo a impedir que algum dano possa ocorrer, pelo que nenhum direito estará a ser violado nesse caso.
Uma terceira forma de pensar sobre esta questão de saber se existe um direito a uma natureza genética única é considerando que o cenário em que indivíduos possuem o mesmo código genético é de facto bastante comum, e considerando que um tal mundo seria inferior ao actual. Por exemplo, imagine o leitor que estamos no ano 4004 a.C. e que Deus está a pensar criar seres humanos. Já pensou na possibilidade de os seres humanos resultarem de um processo evolutivo, mas rejeitou esse plano com base na ideia de que uma solução baseada no acaso para uma questão tão vital como dar existência a seres humanos, seria bastante inapropriada. Também está a considerar criar um par humano original que seja geneticamente distinto, a partir do qual surgirão seres humanos que serão geneticamente bem diversos. Contudo, depois de alguma reflexão essa ideia também lhe pareceu imperfeita, já que a mistura aleatória dos genes daria origem a indivíduos que podiam ser fisicamente deficientes, ou com tendências para doenças desagradáveis, como o cancro, o que lhes causaria um enorme sofrimento e provocaria mortes prematuras. Assim, no final, o Criador decidiu-se por uma constituição genética que possuísse as duas propriedades seguintes: primeiro, não resultaria em sérias deficiências físicas e doenças, o que permitiria que um indivíduo, capaz de fazer escolhas acertadas, crescesse mental e espiritualmente. Segundo, todos os genes conteriam alelos idênticos. Deus criou então uma pessoa com essa caracterização genética – chamou-lhe Eva – e um segundo indivíduo, Adão, cuja única diferença genética estaria no facto deste possuir um cromossoma X e um cormossoma Y, enquanto que a Eva teria dois cromossomas X. O resultado seria que quando Adão e Eva reproduzissem, tal aconteceria efectivamente, por causa do facto de possuírem, para além de uma diferença, a mesma caracterização genética, com alelos idênticos por cada caracter herdado, pelo que todos os seus descendentes serão geneticamente idênticos a Adão ou a Eva.
Em que medida será esse mundo comparável ao actual? Se estivéssemos a escolher por detrás do véu de ignorância de Rawls, seria racional preferir o mundo actual ou o mundo alternativo? Talvez esta não seja uma questão fácil. Mas parece claro que há algumas mais valias significativas associadas ao mundo alternativo. Primeiro, ao contrário do mundo actual, estaria garantida uma caracterização genética livre de disposições para doenças indesejáveis e encurtadoras da vida, ou de outras condições debilitantes como a depressão, a esquizofrenia, e assim por diante. Segundo, os traços herdados seriam distribuídos de uma forma perfeitamente equitativa, e ninguém começaria, como acontece no mundo actual, em sérias desvantagens, tendo que enfrentar árduas batalhas. Terceiro, para além das diferenças entre homem e mulher, todos seriam fisicamente idênticos, e as pessoas diferenciar-se-iam apenas com relação às suas “almas”, pelo que teríamos um mundo em que os julgamentos das pessoas provavelmente teriam uma base mais superficial do que acontece frequentemente no mundo actual. Portanto, parece que há razões sérias para preferir o mundo alternativo ao mundo actual.
A terceira vantagem que acabei de mencionar aponta também, seguramente, para uma óbvia rejeição prática do mundo alternativo: saber quem é quem seria uma questão bastante mais difícil do que o que acontece no mundo actual. Mas pode lidar-se com este problema com as variáveis do anterior cenário. Uma variante, por exemplo, envolveria possuir uma identidade de caracterização genética excepto no que diz respeito aos genes que determinam a aparência da face e do cabelo. Dessa forma seria tão fácil identificar os indivíduos no mundo alternativo como o é fazê-lo no actual. Claro que esta mudança significaria estarmos a considerar um mundo alternativo em que existiria uma ampla identidade ao nível da caracterização genética. Ainda assim, se este mundo fosse preferível ao mundo actual, penso que isso continuaria a fornecer um argumento contra a perspectiva de que os indivíduos têm um direito a uma caracterização genética única. Porque, em primeiro lugar, considerar que o mundo alternativo seria preferível sugeriria fortemente que a diferença genética, ao invés de ser desejável em si própria, é valiosa apenas na medida em que permite identificar as pessoas com maior facilidade. Em segundo lugar, será plausível defender que, embora a unicidade genética seja crucial, um nível bastante elevado de similitude genética não é? Mas no mundo alternativo que estamos aqui a considerar, o grau de similitude entre dois indivíduos seria extraordinariamente elevado. Em terceiro lugar, o mundo alternativo é tal que os genes que determinam a estrutura inicial do cérebro individual não são meramente similares, mas absolutamente idênticos em todos os indivíduos. Mas então alguém pode defender de forma plausível que a unicidade genética é moralmente crucial, ao mesmo tempo que aceita que um mundo em que os indivíduos não difiram quanto aos genes que determinam a natureza inicial dos seus cérebros possa ser melhor do que o mundo actual?
Estas considerações, sugiro, dão-nos boas razões para defender que alguém não pode sustentar de forma plausível que os indivíduos têm direito a uma natureza genética única, sem também defender que o actual mundo é preferível ao mundo alternativo antes descrito. O problema da identificação pode, contudo, ser enfrentado sem mudar para um mundo em que as pessoas difiram geneticamente, uma vez que se pode supor que um mecanismo diferente para identificar outras pessoas faria parte dos seres humanos. Deus poderia, por exemplo, incorporar um circuito especial nos cérebros humanos, que emitiria não apenas o nome, mas também informação individual apropriada para identificar alguém, e que receberia a informação emitida pelos outros seres humanos que estivessem no interior do campo perceptivo. A informação seria confrontada com uma banco dados que contivesse informação relativa a qualquer pessoa conhecida, e se afinal alguma pessoa familiar estivesse dentro do campo perceptivo e se quiséssemos saber quem seria a pessoa em questão, estaríamos automaticamente na posse de informação relevante para o fazer.
O resultado seria um mundo em que todos os indivíduos teriam exactamente o mesmo código genético, independentemente dos cromossomas X e Y, e todas as características atraentes do mundo alternativo original estariam presentes, sem que houvesse problemas de identificação. Pode então perguntar-se em que medida este mundo se compara ao mundo actual, e se, em particular e após reflexão, o facto de todas as pessoas neste mundo alternativo possuírem essencialmente a mesma caracterização genética poder realmente ser uma razão para preferir o mundo actual.»
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[1] Brock, D. W. (1998). “Cloning human beings; an assessment of the ethical issues pro and com”, in Clones and Clones, Nussbaum, M. C. and Sunstein, C.R., eds, Norton, New York. Ver a secção “Será que o uso da clonagem violaria direitos humanos importantes?”.
[1] Brock, D. W. (1998). “Cloning human beings; an assessment of the ethical issues pro and com”, in Clones and Clones, Nussbaum, M. C. and Sunstein, C.R., eds, Norton, New York. Ver a secção “Será que o uso da clonagem violaria direitos humanos importantes?”.
[2] Bouchard, T. J., Jr. (1997), “Para quando os gémeos se encontrarem”, The Sciences 37, 52-7.
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