«B. Brincar de Deus
Os argumentos e as objeções que analisamos até agora não oferecem o que T. S. Eliot chamava de "correlato objectivo" para a repulsa imediata, e por tantos defendida, que descrevi. As pessoas pressentem uma base mais profunda, menos articulada, para essa repulsa, mesmo que não tenham ou não possam articular completamente essa base, mas apenas expressá-la numa linguagem acalorada e logicamente inadequada, como a estranha menção aos "direitos humanos fundamentais" contida na resolução do Parlamento Europeu que mencionei anteriormente. Só avaliaremos de maneira adequada o verdadeiro poder da resistência social e política às pesquisas futuras em engenharia genética, ou as genuínas questões morais e éticas que tais pesquisas apresentam, quando tivermos entendido melhor essa base mais profunda, e poderíamos iniciar com outra conhecida peça de retórica. E inaceitável, dizem, principalmente depois que se descobriu que as objecções mais conhe- cidas deixam a desejar, brincar de Deus.
Essa objecção apela ao que chamei de valor independente, em vez de derivado. Considera-se que brincar de Deus é errado em si mesmo, sem se contemplar nenhuma consequência má que possa vir a ter para qualquer ser humano identificável. Não obstante, não está nem um pouco claro o significado dessa proibição - não está claro o que significa brincar de Deus, e o que, exactamente, há de errado nisso. Não posso dizer que é sempre errado que os seres humanos tentem resistir às catástrofes naturais, ou aprimorar o que a natureza lhes deu. As pessoas fazem isso - sempre fizeram - o tempo todo. Qual é a diferença, afinal, entre inventar a penicilina e usar genes alterados pela engenharia e clonados para curar doenças ainda mais pavorosas do que as curadas pela penicilina? Qual é a diferença entre obrigar o seu filho a fazer exercícios extenuantes para ganhar ou perder peso e alterar os genes, ainda em embrião, com a mesma finalidade?
Não são perguntas retóricas. Devemos tentar responder-lhes, mas precisamos começar a alguma distância delas, na estrutura geral de nossa experiência moral e ética, pois essa estrutura depende, na essência, de uma diferença fundamental entre o que somos responsáveis nas nossas acções ou decisões, individual ou colectivamente, e o que nos é dado como pano de fundo para decidir ou agir, mas que não temos poder para modificar. Para os gregos, essa era a diferença entre eles mesmos e a sua sina ou destino, que estava nas mãos dos deuses. Para pessoas religiosas da maneira convencional, mesmo hoje em dia, é a diferença entre como Deus criou o mundo, inclusive a nossa situação natural dentro dele, e o âmbito do livre-arbítrio que Ele também criou. Pessoas mais eruditas empregam a linguagem da ciência com o mesmo resultado: para elas, a diferença fundamental está entre o que a natureza, incluindo-se nela a evolução, criou, por intermédio de partículas, energia e genes, e o que fazemos nesse mundo e com esses genes. Para todos, seja como for que a descrevam, a diferença traça uma linha entre quem e o que somos, pela qual se responsabiliza a vontade de Deus ou ninguém além de um processo cego, e o que fazemos com tal património, pelo qual somos, de facto, responsáveis, em separado ou em conjunto.
Esse limite fundamental entre acaso e escolha é a espinha dorsal da nossa ética e da nossa moralidade, e qualquer alteração profunda nessa fronteira é um deslocamento grave. A nossa percepção de vida bem-vivida, por exemplo, é fundamentalmente formada por supostos dados sobre os limites superiores da abrangência da vida humana. Se, repentinamente, fosse possível esperar que as pessoas vivessem dez vezes mais tempo do que vivemos hoje, teríamos de recriar todas as nossas opiniões sobre o que seria um tipo atraente de vida, e também sobre quais das atividades que representam risco de morte acidental para outras pessoas, tais como dirigir, são moralmente permissíveis. A histtória já oferece, no nosso próprio tempo, exemplos menos impressionantes, mesmo assim profundos, de como as mudanças científicas deslocam os valores de maneira radical. As convicções arraigadas sobre as responsabilidades que os líderes têm de proteger os próprios soldados na guerra, custe o que custar, mudaram quando os cientistas dividiram o átomo e aumentaram em muito a carnificina que tais convicções poderiam justificar. As convicções arraigadas relativas à eutanásia e ao suicídio mudaram, quando o tratamento das doenças terminais aumentou muitíssimo o poder que o médico tem de prolongar a vida para além do limite em que essa vida teria qualquer significado para o paciente. Em todos os casos, um período de estabilidade moral foi substituído pela insegurança moral, e é revelador o facto de que, em ambos os episódios, as pessoas recorreram à expressão "brincar de Deus", num caso para acusar os cientistas que haviam aumentado muitíssimo o nosso poder sobre a natureza, ao invadir um espaço que se pensava fundamental do de- sígnio divino, e no outro para criticar os pacientes moribundos por assumirem para si a decisão que os limites da medicina no passado tornavam fácil tratar como decisão que só competia a Deus.
A minha hipótese é que a ciência genética nos mostrou a possibilidade de um deslocamento moral semelhante e iminente, embora maior. Tememos a possibilidade de pessoas criarem outras pessoas porque tal possibilidade em si altera - de maneira muito mais marcante do que nesses outros exemplos - o limite entre a sorte e a escolha que estrutura todos os nossos valores, e tal deslocamento ameaça, não agredir nenhum dos nossos actuais valores, derivados ou independentes, mas, pelo contrário, tornar obsoleta uma grande parte deles. O nosso ser físico - o cérebro e o corpo que oferecem a cada um de nós o substrato material – é há muito o paradigma absoluto do que é importantíssimo para nós e, na sua condição inicial, está além de nosso poder de alterar e, por conseguinte, fora do âmbito da nossa responsabilidade, tanto individual quanto coletiva. A popularidade do termo "lotaria genética" já demonstra a centralidade da nossa convicção de que, essencialmente, o que somos é uma questão de sorte, e não de escolha. Não estou a dizer que a continuidade genética é o segredo do problema técnico e filosófico da identidade pessoal, embora alguns filósofos realmente pensem assim. O que pretendo é expor uma ideia psicológica: as pessoas pensam que a própria essência da diferença entre o que Deus ou a natureza oferecem e o que têm responsabilidade por fazer, ou sob que condicões, deve ser fisicamente definida, relativamente ao que existe dentro "dos genes" ou, numa metáfora que expressa a velha ciência, "no sangue".
Os argumentos e as objeções que analisamos até agora não oferecem o que T. S. Eliot chamava de "correlato objectivo" para a repulsa imediata, e por tantos defendida, que descrevi. As pessoas pressentem uma base mais profunda, menos articulada, para essa repulsa, mesmo que não tenham ou não possam articular completamente essa base, mas apenas expressá-la numa linguagem acalorada e logicamente inadequada, como a estranha menção aos "direitos humanos fundamentais" contida na resolução do Parlamento Europeu que mencionei anteriormente. Só avaliaremos de maneira adequada o verdadeiro poder da resistência social e política às pesquisas futuras em engenharia genética, ou as genuínas questões morais e éticas que tais pesquisas apresentam, quando tivermos entendido melhor essa base mais profunda, e poderíamos iniciar com outra conhecida peça de retórica. E inaceitável, dizem, principalmente depois que se descobriu que as objecções mais conhe- cidas deixam a desejar, brincar de Deus.
Essa objecção apela ao que chamei de valor independente, em vez de derivado. Considera-se que brincar de Deus é errado em si mesmo, sem se contemplar nenhuma consequência má que possa vir a ter para qualquer ser humano identificável. Não obstante, não está nem um pouco claro o significado dessa proibição - não está claro o que significa brincar de Deus, e o que, exactamente, há de errado nisso. Não posso dizer que é sempre errado que os seres humanos tentem resistir às catástrofes naturais, ou aprimorar o que a natureza lhes deu. As pessoas fazem isso - sempre fizeram - o tempo todo. Qual é a diferença, afinal, entre inventar a penicilina e usar genes alterados pela engenharia e clonados para curar doenças ainda mais pavorosas do que as curadas pela penicilina? Qual é a diferença entre obrigar o seu filho a fazer exercícios extenuantes para ganhar ou perder peso e alterar os genes, ainda em embrião, com a mesma finalidade?
Não são perguntas retóricas. Devemos tentar responder-lhes, mas precisamos começar a alguma distância delas, na estrutura geral de nossa experiência moral e ética, pois essa estrutura depende, na essência, de uma diferença fundamental entre o que somos responsáveis nas nossas acções ou decisões, individual ou colectivamente, e o que nos é dado como pano de fundo para decidir ou agir, mas que não temos poder para modificar. Para os gregos, essa era a diferença entre eles mesmos e a sua sina ou destino, que estava nas mãos dos deuses. Para pessoas religiosas da maneira convencional, mesmo hoje em dia, é a diferença entre como Deus criou o mundo, inclusive a nossa situação natural dentro dele, e o âmbito do livre-arbítrio que Ele também criou. Pessoas mais eruditas empregam a linguagem da ciência com o mesmo resultado: para elas, a diferença fundamental está entre o que a natureza, incluindo-se nela a evolução, criou, por intermédio de partículas, energia e genes, e o que fazemos nesse mundo e com esses genes. Para todos, seja como for que a descrevam, a diferença traça uma linha entre quem e o que somos, pela qual se responsabiliza a vontade de Deus ou ninguém além de um processo cego, e o que fazemos com tal património, pelo qual somos, de facto, responsáveis, em separado ou em conjunto.
Esse limite fundamental entre acaso e escolha é a espinha dorsal da nossa ética e da nossa moralidade, e qualquer alteração profunda nessa fronteira é um deslocamento grave. A nossa percepção de vida bem-vivida, por exemplo, é fundamentalmente formada por supostos dados sobre os limites superiores da abrangência da vida humana. Se, repentinamente, fosse possível esperar que as pessoas vivessem dez vezes mais tempo do que vivemos hoje, teríamos de recriar todas as nossas opiniões sobre o que seria um tipo atraente de vida, e também sobre quais das atividades que representam risco de morte acidental para outras pessoas, tais como dirigir, são moralmente permissíveis. A histtória já oferece, no nosso próprio tempo, exemplos menos impressionantes, mesmo assim profundos, de como as mudanças científicas deslocam os valores de maneira radical. As convicções arraigadas sobre as responsabilidades que os líderes têm de proteger os próprios soldados na guerra, custe o que custar, mudaram quando os cientistas dividiram o átomo e aumentaram em muito a carnificina que tais convicções poderiam justificar. As convicções arraigadas relativas à eutanásia e ao suicídio mudaram, quando o tratamento das doenças terminais aumentou muitíssimo o poder que o médico tem de prolongar a vida para além do limite em que essa vida teria qualquer significado para o paciente. Em todos os casos, um período de estabilidade moral foi substituído pela insegurança moral, e é revelador o facto de que, em ambos os episódios, as pessoas recorreram à expressão "brincar de Deus", num caso para acusar os cientistas que haviam aumentado muitíssimo o nosso poder sobre a natureza, ao invadir um espaço que se pensava fundamental do de- sígnio divino, e no outro para criticar os pacientes moribundos por assumirem para si a decisão que os limites da medicina no passado tornavam fácil tratar como decisão que só competia a Deus.
A minha hipótese é que a ciência genética nos mostrou a possibilidade de um deslocamento moral semelhante e iminente, embora maior. Tememos a possibilidade de pessoas criarem outras pessoas porque tal possibilidade em si altera - de maneira muito mais marcante do que nesses outros exemplos - o limite entre a sorte e a escolha que estrutura todos os nossos valores, e tal deslocamento ameaça, não agredir nenhum dos nossos actuais valores, derivados ou independentes, mas, pelo contrário, tornar obsoleta uma grande parte deles. O nosso ser físico - o cérebro e o corpo que oferecem a cada um de nós o substrato material – é há muito o paradigma absoluto do que é importantíssimo para nós e, na sua condição inicial, está além de nosso poder de alterar e, por conseguinte, fora do âmbito da nossa responsabilidade, tanto individual quanto coletiva. A popularidade do termo "lotaria genética" já demonstra a centralidade da nossa convicção de que, essencialmente, o que somos é uma questão de sorte, e não de escolha. Não estou a dizer que a continuidade genética é o segredo do problema técnico e filosófico da identidade pessoal, embora alguns filósofos realmente pensem assim. O que pretendo é expor uma ideia psicológica: as pessoas pensam que a própria essência da diferença entre o que Deus ou a natureza oferecem e o que têm responsabilidade por fazer, ou sob que condicões, deve ser fisicamente definida, relativamente ao que existe dentro "dos genes" ou, numa metáfora que expressa a velha ciência, "no sangue".
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