«O que a comunidade faz não é acidental ou mecânico, nem um subproduto das actividades discretas dos indivíduos, mas é consciente e intencional. A deliberação torna-se necessária entre os cidadãos que, por serem diferentes e autónomos, podem genuinamente discordar sobre a resposta à questão “Como devemos viver em conjunto?”. A coordenação entre agentes autónomos que discordam de forma genuína, mas que se respeitam mutuamente, é alcançada na avaliação pública dos assuntos de interesse comum. A avaliação política é, então, o exercício da capacidade de autonomia dos indivíduos enquanto membros de uma comunidade. Os princípios que são constitutivos do conceito de comunidade, são também constitutivos da forma de vida – ou da “constituição” no sentido Greco-romano – da comunidade em causa. […] Ao agirem, os cidadãos usam a sua capacidade de deliberar sobre assuntos de interesse comum. Os juízos que fazem são aqui cruciais e, uma vez que estão na base de todos os outros, são os que fornecem à comunidade de que são membros a sua identidade.
A cidadania assim concebida é difícil de alcançar no mundo moderno: aos potenciais cidadãos falta os recursos necessários para se envolverem na prática da cidadania; falta-lhes a oportunidade e falta-lhes a atitude necessária – por outras palavra, falta-lhes a motivação.
Os recursos têm sido encarados como a alavanca necessária para que os indivíduos se tornem agentes activos neste mundo. Para qualquer tipo de actividade, incluindo a prática da cidadania, são necessários certos recursos. Alguns destes relacionam-se com aquilo que o liberalismo político identifica como direitos civis, políticos e legais. Outros relacionam-se com recursos económicos e sociais. Por exemplo, sem saúde, sem educação e sem um rendimento razoável, os indivíduos não têm capacidade para serem agentes efectivos no mundo e as possibilidades e a prática da cidadania ficam excluídas. Estes direitos e recursos têm que ser assegurados para os cidadãos, uma vez que a cidadania é uma actividade igualitária.
A mera habilitação os cidadãos desta forma, embora seja necessária, não é, seguramente, suficiente para a prática da cidadania. O ambiente institucional tem que ser apropriado. Tem que haver espaços em que potencialmente todos possam tomar parte, possam fazer alguma coisa. No estado moderno, isto significa a descentralização de funções e tarefas políticas. Nem tudo o que é necessário ser feito para tornar a vida possível no mundo moderno pode ser descentralizado, mas muito mais pode considerar-se possível ou usualmente permitido – da mesma forma que menos do que é usualmente possível pode ser feito ao nível do estado-nação. O que se deve procurar é a criação e o alargamento de oportunidades para um auto-governo dos cidadãos. Não é necessário que esse auto-governo seja concebido em sentido político estrito, em que por “político” se quer dizer “o que produz efeito em qualquer membro de uma comunidade, e o que está aberto a alteração através da acção colectiva por parte dos seus membros”. O auto-governo pode referir-se a quaisquer tarefas e actividades públicas em que a comunidade se queira envolver. As iniciativas locais podem assim responder e atribuir-se a “públicos” particulares que são mais reduzidos em amplitude e dimensão do que o todo de qualquer comunidade.
Todavia, mesmo a habilitação e as oportunidades não são, em conjunto, suficientes para a prática da cidadania. É necessário encorajar uma atitude particular, uma atitude que não só disponha os indivíduos a reconhecer os seus deveres enquanto cidadãos, mas que também os motive para o seu cumprimento. O problema que se deve ultrapassar é o do “oportunista”. A variedade e a diversidade que dão vitalidade à comunidade política, não poderão ser verdadeiramente alcançadas se houver indivíduos que, por inclinação ou por egocentrismo, reneguem os seus deveres de cidadãos, o que destrói a “harmonia”. A solução é a educação. E aqui o republicanismo possui uma concepção mais ampla do que o individualismo liberal. Os cidadãos são aprendizes durante todas as suas vidas, e a educação, no sentido de formar o carácter apropriado para o empenhamento voluntário na prática da cidadania, nunca cessa. […]
[…] A viabilidade do republicanismo cívico depende dos “hábitos do coração”. Esta é a lição central da tradição do republicanismo cívico. A frase “hábitos do coração” pertence a Tocqueville, mas é o que Maquiavel queria dizer com boas leis, boa religião e bons exemplos; ou o que Rousseau queria dizer com moeurs; ou o que Hegel queria dizer com compreensão ética. Não há quantidade de participação política ou de democracia económica suficiente para a prática da cidadania numa comunidade política, se ou até que um acordo externo tenha sido interiorizado. É isto que o republicanismo reconhece.
[…] Não é possível que o estado-nação do mundo moderno possa vir a ser como a polis antiga - uma sociedade em que todos estão face a face e se conhecem, pelo menos de reputação. […] O tamanho, a complexidade e a heterogeneidade impedem essa possibilidade. Todavia, isto não significa que, usando as palavras de Oliver Wendell Holmes, em tempo de “perigos claros e actuais”, – como foram os casos da Grã-Bretanha de 1940, ou do E.U.A depois de Pearl Harbor – não possa emergir um senso de comunidade: a ideia de que todos possuem o mesmo atributo, e que o máximo que devem uns aos outros é tentar escapar à ameaça comum. Estes momentos são raros do ponto de vista do estado-nação.
Tamanho, complexidade e heterogeneidade, são obstáculos relativamente a qualquer tipo de consenso nacional, excepto em circunstâncias isoladas. Por outro lado, significam que vivemos em sociedade plurais. Os seres humanos podem ou não ser animais sociáveis; é um facto que vivem em sociedades compostas por grupos diversos que vão desde o tipo informal, como a família, até formas altamente organizadas, como um sindicato ou um partido político. Nenhum ser humano pode viver uma vida completamente satisfatória, uma vida verdadeiramente humana, sem os laços que o ligam a estes grupos. Nas sociedades modernas há diversos pontos de entrada para os indivíduos. Estes podem não existir em número suficiente ou não serem os adequados, mas é a sua variedade que caracteriza as sociedades modernas e que estas tornam possível. Nas sociedades como as nossas, é aí que se encontra a comunidade. Porquê?
A ideia de comunidade tem menos que ver com organizações formais do que com o sentimento de pertença ou de compromisso. E este existe para com aqueles que partilham interesses, ou posições, ou propósitos, e também é para com aqueles que, por qualquer razão, são incapazes de cuidar ou de perseguir os seus próprios interesses. Consiste na procura simultânea do bem dos outros e do bem próprio, ou mesmo na anulação deste em detrimento daquele. Trata-se de uma aproximação às relações sociais segundo o espírito aristotélico de “concórdia”. É isto que cria o senso de comunidade e é isto que cria os cidadãos.
O argumento é que se criamos os cidadãos, estamos a criar a comunidade. A cidadania, tal como concebida pelo republicanismo cívico, implica a comunidade. Se estiverem reunidas as condições para a prática da cidadania, então estarão reunidas as condições para a existência da comunidade. Há certos deveres que todos os cidadãos devem realizar, como, por exemplo, escolher os líderes políticos e fiscalizar a sua acção, pagar impostos e, sempre que for necessário, defender os arranjos políticos que, por criarem ordem, permitem alcançar outros propósitos e objectivos. Mas isto não esgota as áreas da vida pública em que os deveres de cidadania podem ser exercidos. Uma vez que as sociedades modernas são plurais e heterogéneas, os cidadãos que estão devidamente motivados descobrirão que há bastante mais para fazer. Em larga medida, os indivíduos ao escolher onde participar e quando o fazer de facto, estarão a criar uma comunidade. A comunidade encontra-se, por isso, não na organização formal, mas onde quer que haja indivíduos que levam a prática da cidadania a sério. O problema é gerar esse compromisso […].»
Adrian Oldfield, “Citizenship and Community: Civic Republicanism and the Modern World” in Shafir, Gerson (ed.) (1998). The Citizenship Debates – a reader. Minneapolis: University of Minnesota Press, pp. 76-89 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
A cidadania assim concebida é difícil de alcançar no mundo moderno: aos potenciais cidadãos falta os recursos necessários para se envolverem na prática da cidadania; falta-lhes a oportunidade e falta-lhes a atitude necessária – por outras palavra, falta-lhes a motivação.
Os recursos têm sido encarados como a alavanca necessária para que os indivíduos se tornem agentes activos neste mundo. Para qualquer tipo de actividade, incluindo a prática da cidadania, são necessários certos recursos. Alguns destes relacionam-se com aquilo que o liberalismo político identifica como direitos civis, políticos e legais. Outros relacionam-se com recursos económicos e sociais. Por exemplo, sem saúde, sem educação e sem um rendimento razoável, os indivíduos não têm capacidade para serem agentes efectivos no mundo e as possibilidades e a prática da cidadania ficam excluídas. Estes direitos e recursos têm que ser assegurados para os cidadãos, uma vez que a cidadania é uma actividade igualitária.
A mera habilitação os cidadãos desta forma, embora seja necessária, não é, seguramente, suficiente para a prática da cidadania. O ambiente institucional tem que ser apropriado. Tem que haver espaços em que potencialmente todos possam tomar parte, possam fazer alguma coisa. No estado moderno, isto significa a descentralização de funções e tarefas políticas. Nem tudo o que é necessário ser feito para tornar a vida possível no mundo moderno pode ser descentralizado, mas muito mais pode considerar-se possível ou usualmente permitido – da mesma forma que menos do que é usualmente possível pode ser feito ao nível do estado-nação. O que se deve procurar é a criação e o alargamento de oportunidades para um auto-governo dos cidadãos. Não é necessário que esse auto-governo seja concebido em sentido político estrito, em que por “político” se quer dizer “o que produz efeito em qualquer membro de uma comunidade, e o que está aberto a alteração através da acção colectiva por parte dos seus membros”. O auto-governo pode referir-se a quaisquer tarefas e actividades públicas em que a comunidade se queira envolver. As iniciativas locais podem assim responder e atribuir-se a “públicos” particulares que são mais reduzidos em amplitude e dimensão do que o todo de qualquer comunidade.
Todavia, mesmo a habilitação e as oportunidades não são, em conjunto, suficientes para a prática da cidadania. É necessário encorajar uma atitude particular, uma atitude que não só disponha os indivíduos a reconhecer os seus deveres enquanto cidadãos, mas que também os motive para o seu cumprimento. O problema que se deve ultrapassar é o do “oportunista”. A variedade e a diversidade que dão vitalidade à comunidade política, não poderão ser verdadeiramente alcançadas se houver indivíduos que, por inclinação ou por egocentrismo, reneguem os seus deveres de cidadãos, o que destrói a “harmonia”. A solução é a educação. E aqui o republicanismo possui uma concepção mais ampla do que o individualismo liberal. Os cidadãos são aprendizes durante todas as suas vidas, e a educação, no sentido de formar o carácter apropriado para o empenhamento voluntário na prática da cidadania, nunca cessa. […]
[…] A viabilidade do republicanismo cívico depende dos “hábitos do coração”. Esta é a lição central da tradição do republicanismo cívico. A frase “hábitos do coração” pertence a Tocqueville, mas é o que Maquiavel queria dizer com boas leis, boa religião e bons exemplos; ou o que Rousseau queria dizer com moeurs; ou o que Hegel queria dizer com compreensão ética. Não há quantidade de participação política ou de democracia económica suficiente para a prática da cidadania numa comunidade política, se ou até que um acordo externo tenha sido interiorizado. É isto que o republicanismo reconhece.
[…] Não é possível que o estado-nação do mundo moderno possa vir a ser como a polis antiga - uma sociedade em que todos estão face a face e se conhecem, pelo menos de reputação. […] O tamanho, a complexidade e a heterogeneidade impedem essa possibilidade. Todavia, isto não significa que, usando as palavras de Oliver Wendell Holmes, em tempo de “perigos claros e actuais”, – como foram os casos da Grã-Bretanha de 1940, ou do E.U.A depois de Pearl Harbor – não possa emergir um senso de comunidade: a ideia de que todos possuem o mesmo atributo, e que o máximo que devem uns aos outros é tentar escapar à ameaça comum. Estes momentos são raros do ponto de vista do estado-nação.
Tamanho, complexidade e heterogeneidade, são obstáculos relativamente a qualquer tipo de consenso nacional, excepto em circunstâncias isoladas. Por outro lado, significam que vivemos em sociedade plurais. Os seres humanos podem ou não ser animais sociáveis; é um facto que vivem em sociedades compostas por grupos diversos que vão desde o tipo informal, como a família, até formas altamente organizadas, como um sindicato ou um partido político. Nenhum ser humano pode viver uma vida completamente satisfatória, uma vida verdadeiramente humana, sem os laços que o ligam a estes grupos. Nas sociedades modernas há diversos pontos de entrada para os indivíduos. Estes podem não existir em número suficiente ou não serem os adequados, mas é a sua variedade que caracteriza as sociedades modernas e que estas tornam possível. Nas sociedades como as nossas, é aí que se encontra a comunidade. Porquê?
A ideia de comunidade tem menos que ver com organizações formais do que com o sentimento de pertença ou de compromisso. E este existe para com aqueles que partilham interesses, ou posições, ou propósitos, e também é para com aqueles que, por qualquer razão, são incapazes de cuidar ou de perseguir os seus próprios interesses. Consiste na procura simultânea do bem dos outros e do bem próprio, ou mesmo na anulação deste em detrimento daquele. Trata-se de uma aproximação às relações sociais segundo o espírito aristotélico de “concórdia”. É isto que cria o senso de comunidade e é isto que cria os cidadãos.
O argumento é que se criamos os cidadãos, estamos a criar a comunidade. A cidadania, tal como concebida pelo republicanismo cívico, implica a comunidade. Se estiverem reunidas as condições para a prática da cidadania, então estarão reunidas as condições para a existência da comunidade. Há certos deveres que todos os cidadãos devem realizar, como, por exemplo, escolher os líderes políticos e fiscalizar a sua acção, pagar impostos e, sempre que for necessário, defender os arranjos políticos que, por criarem ordem, permitem alcançar outros propósitos e objectivos. Mas isto não esgota as áreas da vida pública em que os deveres de cidadania podem ser exercidos. Uma vez que as sociedades modernas são plurais e heterogéneas, os cidadãos que estão devidamente motivados descobrirão que há bastante mais para fazer. Em larga medida, os indivíduos ao escolher onde participar e quando o fazer de facto, estarão a criar uma comunidade. A comunidade encontra-se, por isso, não na organização formal, mas onde quer que haja indivíduos que levam a prática da cidadania a sério. O problema é gerar esse compromisso […].»
Adrian Oldfield, “Citizenship and Community: Civic Republicanism and the Modern World” in Shafir, Gerson (ed.) (1998). The Citizenship Debates – a reader. Minneapolis: University of Minnesota Press, pp. 76-89 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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