«III
Esta concepção tem consequências para a compreensão da legitimação e da soberania popular. Segundo a concepção liberal, a formação democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. Os resultados das eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o governo tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o parlamento. Segundo a concepção republicana, a formação democrática da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a sociedade enquanto uma comunidade política e de manter viva a cada eleição a lembrança desse acto fundador. O governo não é apenas investido de poder para o exercício de um mandato sem maiores vínculos, por meio de uma eleição entre grupos de liderança concorrentes; ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado. Com a teoria do discurso, entra novamente em cena outra noção: o procedimento e os pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes sistemas de escoamento da racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei. A racionalização significa mais que mera legitimação, mas menos que a própria acção de constituir o poder. O poder administrativamente disponível modifica o seu estado de mero agregado desde que seja retroalimentado por uma formação democrática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente o controlo do exercício do poder político, mas que também o programe, de uma maneira ou de outra. Por causa disso, o poder político só pode "agir". É um sistema parcial especializado em decisões colectivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transformada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos não pode "dominar", mas apenas direccionar o uso do poder administrativo para determinados canais.
O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republicana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz de prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo. Rousseau transpôs esta figura do pensamento (proposta inicialmente por Bodin) à vontade do povo unificado, misturada com a ideia clássica do auto-domínio de indivíduos livres e iguais e sobre-assumida no conceito moderno de autonomia. Apesar desta sublimação normativa, o conceito de soberania permaneceu ligado à noção da sua corporificação no povo (presente inclusive de forma física, no início). Segundo a concepção republicana, o povo (pelo menos potencialmente presente) é portador de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admissível que, na sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar. O poder constituinte funda-se nas práticas de auto-determinação dos seus cidadãos, não dos seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a concepção mais realista de que no Estado de Direito democrático o poder estatal que nasce do povo só é exercido "em eleições e votações e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder executivo e da jurisdição" (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2° da Constituição da República Federal da Alemanha).
Estas duas concepções certamente oferecem uma alternativa entre aquelas premissas muito questionáveis de um projecto de Estado e de sociedade que toma como ponto de partida o todo e as suas partes - muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na democracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade descentralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião pública um cenário propício à constatação, identificação e tratamento de problemas pertinentes para a sociedade como um todo. Quando se sacrifica a formação do conceito ligado à filosofia do sujeito, a soberania não precisa concentrar-se no povo de forma concreta, nem exilar-se no anonimato das competências atribuídas pelo direito constitucional ao si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza e que desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de modo que os seus resultados falíveis guardem para si a suposição de racionalidade. Com isso, a intuição vinculada à ideia de soberania popular não é desmentida, mas intersubjectivamente interpretada. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anónima, só se abriga no processo democrático e na implementação jurídica dos seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por sinal, caso tenha por finalidade validar-se a si mesma enquanto poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exacto, essa validação provém das interacções entre a formação da vontade institucionalizada de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente mobilizadas, que da sua parte encontram uma base nas associações de uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.
De facto, a auto-compreensão normativa da política deliberativa exige para a comunidade jurídica um modo de colectivização social; esse mesmo modo de colectivização social, porém, não se estende ao todo da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira jurídico-estatal. Também na sua auto-compreensão, a política deliberativa continua a ser o elemento constitutivo de uma sociedade complexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distanciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo que determina a sua marca estrutural, mas sim um sistema de acção ao lado de outros. Como a política consiste numa espécie de lastro, reserva na solução de problemas que ameaçam a integração, ela certamente tem de poder comunicar através do direito com todos os demais campos de acção legitimamente ordenados, seja qual for a maneira como eles se estruturem ou direccionem. Se o sistema político, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema - como o desempenho fiscal do sistema económico, por exemplo -, isso não acontece num sentido meramente trivial; pelo contrário, a política deliberativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos convencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade, ou informalmente, nas redes da opinião pública, mantém uma relação interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho político que passam pelo filtro deliberativo dependem dos recursos do universo vital da cultura política libertadora, de uma socialização política esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formadoras de opinião -, recursos que se formam de maneira espontânea ou que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade, caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direccionamento político.»
Habermas, Jürgen (2002). Inclusion of the other. Cambridge: Polity Press, pp. 239-52 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Esta concepção tem consequências para a compreensão da legitimação e da soberania popular. Segundo a concepção liberal, a formação democrática da vontade tem exclusivamente a função de legitimar o exercício do poder político. Os resultados das eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o governo tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o parlamento. Segundo a concepção republicana, a formação democrática da vontade tem a função essencialmente mais forte de constituir a sociedade enquanto uma comunidade política e de manter viva a cada eleição a lembrança desse acto fundador. O governo não é apenas investido de poder para o exercício de um mandato sem maiores vínculos, por meio de uma eleição entre grupos de liderança concorrentes; ao contrário, ele está comprometido também programaticamente com a execução de determinadas políticas. Sendo mais uma comissão do que um órgão estatal, ele é parte de uma comunidade política que se administra a si própria, e não o topo de um poder estatal separado. Com a teoria do discurso, entra novamente em cena outra noção: o procedimento e os pressupostos comunicacionais da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como importantes sistemas de escoamento da racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei. A racionalização significa mais que mera legitimação, mas menos que a própria acção de constituir o poder. O poder administrativamente disponível modifica o seu estado de mero agregado desde que seja retroalimentado por uma formação democrática da opinião e da vontade que não apenas exerça posteriormente o controlo do exercício do poder político, mas que também o programe, de uma maneira ou de outra. Por causa disso, o poder político só pode "agir". É um sistema parcial especializado em decisões colectivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transformada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos não pode "dominar", mas apenas direccionar o uso do poder administrativo para determinados canais.
O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republicana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz de prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo. Rousseau transpôs esta figura do pensamento (proposta inicialmente por Bodin) à vontade do povo unificado, misturada com a ideia clássica do auto-domínio de indivíduos livres e iguais e sobre-assumida no conceito moderno de autonomia. Apesar desta sublimação normativa, o conceito de soberania permaneceu ligado à noção da sua corporificação no povo (presente inclusive de forma física, no início). Segundo a concepção republicana, o povo (pelo menos potencialmente presente) é portador de uma soberania que por princípio não se pode delegar: não é admissível que, na sua qualidade de soberano, o povo se deixe representar. O poder constituinte funda-se nas práticas de auto-determinação dos seus cidadãos, não dos seus representantes. A isso o liberalismo contrapõe a concepção mais realista de que no Estado de Direito democrático o poder estatal que nasce do povo só é exercido "em eleições e votações e por meio de organismos legislativos específicos, organismos do poder executivo e da jurisdição" (é o que se lê, por exemplo, no art. 20, § 2° da Constituição da República Federal da Alemanha).
Estas duas concepções certamente oferecem uma alternativa entre aquelas premissas muito questionáveis de um projecto de Estado e de sociedade que toma como ponto de partida o todo e as suas partes - muito embora o todo seja formado ou por um conjunto soberano de cidadãos ou por uma constituição. Ao conceito de discurso na democracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade descentralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião pública um cenário propício à constatação, identificação e tratamento de problemas pertinentes para a sociedade como um todo. Quando se sacrifica a formação do conceito ligado à filosofia do sujeito, a soberania não precisa concentrar-se no povo de forma concreta, nem exilar-se no anonimato das competências atribuídas pelo direito constitucional ao si-mesmo da comunidade jurídica que se organiza e que desaparece em formas de comunicação isentas de sujeitos, as quais regulam o fluxo da formação discursiva da opinião e da vontade de modo que os seus resultados falíveis guardem para si a suposição de racionalidade. Com isso, a intuição vinculada à ideia de soberania popular não é desmentida, mas intersubjectivamente interpretada. Uma soberania popular, mesmo que se tenha tornado anónima, só se abriga no processo democrático e na implementação jurídica dos seus pressupostos comunicacionais, bastante exigentes por sinal, caso tenha por finalidade validar-se a si mesma enquanto poder gerado por via comunicativa. Sendo mais exacto, essa validação provém das interacções entre a formação da vontade institucionalizada de maneira jurídico-estatal e as opiniões públicas culturalmente mobilizadas, que da sua parte encontram uma base nas associações de uma sociedade civil igualmente distante do Estado e da economia.
De facto, a auto-compreensão normativa da política deliberativa exige para a comunidade jurídica um modo de colectivização social; esse mesmo modo de colectivização social, porém, não se estende ao todo da sociedade em que se aloja o sistema político constituído de maneira jurídico-estatal. Também na sua auto-compreensão, a política deliberativa continua a ser o elemento constitutivo de uma sociedade complexa que no todo se exime de assumir um ponto de vista normativo como o da teoria do direito. Nesse sentido, a leitura da democracia feita segundo a teoria do discurso vincula-se a uma abordagem distanciada, própria às ciências sociais, e para a qual o sistema político não é nem o topo nem o centro da sociedade, nem muito menos o modelo que determina a sua marca estrutural, mas sim um sistema de acção ao lado de outros. Como a política consiste numa espécie de lastro, reserva na solução de problemas que ameaçam a integração, ela certamente tem de poder comunicar através do direito com todos os demais campos de acção legitimamente ordenados, seja qual for a maneira como eles se estruturem ou direccionem. Se o sistema político, no entanto, depende de outros desempenhos do sistema - como o desempenho fiscal do sistema económico, por exemplo -, isso não acontece num sentido meramente trivial; pelo contrário, a política deliberativa, realizada ou em conformidade com os procedimentos convencionais da formação institucionalizada da opinião e da vontade, ou informalmente, nas redes da opinião pública, mantém uma relação interna com os contextos de um universo de vida cooperativo e racionalizado. Justamente os processos comunicativos de cunho político que passam pelo filtro deliberativo dependem dos recursos do universo vital da cultura política libertadora, de uma socialização política esclarecida e sobretudo das iniciativas de associações formadoras de opinião -, recursos que se formam de maneira espontânea ou que, em todo caso, só podem ser atingidos com grande dificuldade, caso o caminho escolhido para se tentar alcançá-los seja o do direccionamento político.»
Habermas, Jürgen (2002). Inclusion of the other. Cambridge: Polity Press, pp. 239-52 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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