terça-feira, 22 de abril de 2008

Harry Frankfurt, "A Igualdade como Ideal Moral" (Parte IV)

«IV
A análise anterior estabeleceu que uma distribuição igualitária pode não maximizar a utilidade agregada. Também demonstrou que, em virtude da incidência dos limiares de utilidade, há condições sob as quais uma distribuição igualitária minimiza a utilidade agregada
[1]. Assim, suponhamos que existe uma quantidade suficiente de um recurso particular (por exemplo, comida ou medicamentos) para permitir que alguns membros de uma população – embora não todos – sobrevivam. Digamos que o tamanho de uma população é de dez indivíduos, e que uma pessoa precisa pelo menos de cinco unidades do recurso em questão para viver, estando disponíveis quarenta unidades. Se algum membro desta população deve sobreviver, então alguns deverão receber mais do que outros. Uma distribuição igual, que outorgue a cada pessoa quatro unidades, conduz ao pior resultado possível, quer dizer, todos morrem. Claro que neste caso seria moralmente grotesco insistir na igualdade. Também seria pouco razoável sustentar que, sob condições específicas, a melhor situação de alguns seria justificável se beneficiasse os que estão em pior situação. Se os recursos disponíveis forem usados para salvar oito pessoas, a justificação para o fazer não pode ser, obviamente, que isso de alguma maneira beneficia os membros da população que se deixa morrer.
Uma distribuição igualitária produzirá quase seguramente uma perda clara da utilidade agregada sempre que implique que haja menos indivíduos que tenham, relativamente a alguma necessidade, o suficiente para se manter vivos; por outras palavras, sempre que faça falta que um número maior de indivíduos esteja abaixo do limiar de sobrevivência. É claro que também pode ocorrer uma perda de utilidade mesmo quando as circunstâncias incluam um limiar que não separe a vida da morte. Distribuir os recursos por igual reduzirá a utilidade agregada sempre que se exija que um número de indivíduos fique abaixo de qualquer limiar de utilidade sem que se produza um movimento compensatório que coloque uma outra quantidade adequada de indivíduos acima de algum limiar.
Então, em condições de escassez uma distribuição igualitária pode ser moralmente inaceitável. Outra resposta para a escassez é a distribuição dos recursos disponíveis de tal modo que o máximo de pessoas possível tenha o suficiente ou, por outras palavras, maximizar o impacto da suficiência. Esta alternativa é especialmente gratificante quando a quantidade de um recurso escasso que constitui o suficiente coincide com a quantidade que é indispensável para evitar algum dano catastrófico, como no exemplo que acabamos de considerar, no qual cair abaixo do limiar de comida ou de medicamentos suficientes significa a morte. Agora suponhamos que neste exemplo estão disponíveis não só quarenta unidades de recursos vitais, mas quarenta e uma. Então, maximizar o impacto da suficiência proporcionando o suficiente para cada uma das oito pessoas, deixa uma unidade por distribuir. O que fazer com a unidade sobrante?
Mostrou-se anteriormente que é um erro sustentar que onde as pessoas têm menos do que o suficiente, ninguém deverá ter mais do que os outros. Quando os recursos são escassos, de um modo que seja impossível que todos tenham o suficiente, uma distribuição igualitária pode conduzir ao desastre. Mas também se poderá fazer uma outra afirmação que parece razoável, mas que é errada: onde as pessoas têm menos do que o suficiente, ninguém deveria ter mais do que o suficiente. Se esta afirmação fosse correcta, no exemplo que estamos a analisar, a unidade sobrante deveria ir para as pessoas que nada tenham. Sem dúvida que uma unidade adicional do recurso em questão não melhorará a condição de uma pessoa que tenha nenhuma. Por hipótese, essa pessoa morrerá mesmo com uma unidade adicional. O que precisa não é de uma unidade, mas de cinco
[2]. Não pode dar-se como assente que a situação de uma pessoa que tenha uma certa quantidade de um recurso vital seja necessariamente melhor do que a da pessoa que tenha uma quantidade menor, pois a quantidade maior pode ainda assim ser demasiado pequena para servir um propósito útil. Possuir uma quantidade maior pode até piorar a situação de uma pessoa. Assim, é concebível que no caso em que uma dose de cinco unidades de algum medicamento seja terapêutica, receber uma dose de uma unidade, pelo contrário, não será melhor do que receber nenhuma, mas que na realidade até será tóxico. E ainda que uma pessoa que tenha uma unidade de comida possa viver um pouco mais do que alguém que não tem comida, talvez seja pior prolongar o processo de morrer de fome durante um período breve de tempo do que terminar rapidamente com a agonia da fome.
A afirmação de que ninguém devia ter mais do que o suficiente mesmo que alguém venha a ter menos do que o suficiente é, pelo menos em parte, verosímil, porque se baseia numa suposição, verosímil em si mesma, mas que é inequivocamente falsa, segundo a qual dar recursos a pessoas que tenham menos do que o suficiente significa necessariamente dar recursos a pessoas que precisam deles e, portanto, melhorar a sua situação. Sem dúvida, é mais razoável atribuir uma prioridade maior à melhoria da condição daqueles que precisam do que à melhoria da condição daqueles que não precisam. É claro que dar recursos adicionais às pessoas que têm menos que o suficiente desses recursos, e que, portanto, estão necessitadas, pode na realidade melhorar a sua situação. Aqueles que estão abaixo do limiar de utilidade não obtêm necessariamente um benefício se receberem recursos adicionais que os aproximem do limiar. Para eles, é crucial alcançar o limiar. O simples facto de aproximarem-se dele pode vir a ser uma ajuda, ou pode vir a ser uma desvantagem.
De forma alguma quero sugerir que quem está abaixo do limiar de utilidade não beneficia nunca – ou beneficia raramente – com a aproximação ao limiar. É claro que pode beneficiar com isso, ou porque aumenta a probabilidade de alcançar o limiar, ou porque, independentemente do limiar, os recursos adicionais proporcionam melhorias importantes de utilidade. Afinal de contas, um coleccionador pode desfrutar da ampliação da sua colecção embora saiba que é impossível completá-la. O que quero defender é apenas que os recursos adicionais não beneficiam necessariamente os que têm menos do que o suficiente. Os ganhos agregados podem ser demasiado pequenos para que tenham algum impacto. Portanto, pode ser moralmente aceitável que alguns tenham mais do que o suficiente de certo recurso ainda que outros tenham menos do que o suficiente desse mesmo recurso.»

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[1] N. Rescher, Distributive Justice, Indianapolis, Bobbs Merril, 1966, pp. 28.30, analisa este tipo de condições.
[2] Poderia ser correcto dizer que precisa de uma unidade se existir a possibilidade de conseguir mais quatro, já que, nesse caso, a unidade sobrante pode considerar potencialmente um constituinte integral do total de cinco que coloca a pessoa do outro lado do limiar de sobrevivência. Pelo contrário, se não há possibilidade de conseguir as cinco, adquirir essa única unidade não contribui a satisfazer qualquer necessidade.

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