«A Dolly, a ovelha favorita do planeta, nasceu a 5 de Julho, 1996, e morreu a 14 de Fevereiro, 2003 (RIP). Desde então, inúmeras objecções têm sido apresentadas à ideia de usar o processo de clonagem que a criou para criar seres humanos. Ainda que a clonagem humana reprodutiva possua provavelmente pouca relevância científica e, excepto em casos raros, possua um uso limitado enquanto tecnologia reprodutiva, as sugestões de que o uso da tecnologia da clonagem para criar humanos é em princípio anti-ético são inteiramente infundadas.
Quando o nascimento da Dolly foi relatado na Nature em 27 de Fevereiro, 1997, a surpresa pelo feito e a celebração da ciência foram ultrapassadas pela reacção compreensivelmente hostil à própria ideia de clonagem. Esta hostilidade conduziu ao que é de facto uma proibição planetária à clonagem reprodutiva. Mas será esta proibição justificável? Não acredito e o que vem a seguir explica porquê.
Sugiro que um princípio fundamental desta sociedade e de todas as democracias merecedoras desse nome, é que a liberdade humana não seja limitada a não ser que seja apresentada uma boa razão para isso. Acredito que deve ser perturbador para qualquer pessoa permitir que as nossas sociedades sejam empurradas à força para a oposição à clonagem humana por uma combinação do que só pode ser considerado histeria e preconceito.
Haverá algo de errado com a clonagem humana?
Há três tipos principais de argumentos contra a clonagem humana reprodutiva: afirma-se que não é segura; afirma-se que é prejudicial para a criança resultante; ou afirma-se que a duplicação de um dado genoma é de algum modo uma coisa má. Consideremos rapidamente estes argumentos.
Segurança
A questão da segurança, por não ser a mais importante, não nos deve ocupar demasiado. É claro que não devemos clonar humanos se isso não for seguro ou pelo menos não for suficientemente seguro. É importante salientar que este não é um argumento que oferece objecções centrais à clonagem. Trata-se de um argumento que seria bom contra a introdução de qualquer novo tipo de tecnologia. O apelo à segurança, por enquanto cogente, não pode justificar a histeria que referimos. Por exemplo, não exigimos leis globais contra as vacinas para a SIDA, embora, tanto quanto saibamos, ainda não esteja disponível qualquer vacina realmente segura (ou eficaz); nem nos manifestamos contra a perspectiva de permitir que os seres humanos deixem crescer asas, embora não saibamos se isso será algum dia seguro ou eficaz. Ainda que a segurança seja sempre uma preocupação legítima, em questão estão diferenças importantes ao nível da nossa preocupação em função do grau de segurança, ou da falta dela. Devemos recordar que dar à luz da forma normal não é um procedimento “seguro” nem para a mãe nem para a criança; como também não é seguro ela saber que um aborto prematuro é mais seguro do que um parto. Apesar disto, as preocupações de segurança não são habitualmente consideradas argumentos poderosos contra a procriação. Assim, quando a questão da segurança é invocada enquanto preocupação relativa a qualquer procedimento médico, quando temos realmente de escolher, é preciso colocar a questão concreta relativa aos graus de segurança e às possibilidades alternativas. A “segurança”, tout court, não é o argumento decisivo que se pensa ser. Para além disso, considerando que o grau de segurança é inaceitavelmente relativo quanto aos ganhos possíveis, não é um argumento contra a clonagem per se, mas contra todo e qualquer procedimento que possua um ratio custo-benefício desfavorável. É também por natureza contingente: uma vez resolvidos os problemas de segurança num grau satisfatório as objecções perderão consequência.
O bem-estar da criança
O segundo tipo de argumento contra a clonagem diz respeito ao bem-estar da criança clonada que possa vir a nascer. Todos os argumentos que não se referem à segurança referem-se aos fardos das expectativas que podem vir a sobrecarregar a criança, ou à ambiguidade do seu estatuto.
Expectativas
A maioria dos pais possui expectativas relativamente aos seus filhos. Com efeito, pode pensar-se que os pais que não possuem forte expectativas relativamente aos seus filhos são altamente irresponsáveis. É improvável que os pais que possuem fortes expectativas relativamente aos seus filhos se preocupem apenas com o desporto e com o treino físico, mas não se preocupem com a sua educação, e não cuidem de oferecer um ambiente disciplinado que requeira, por exemplo, educação musical, ou educação noutra arte qualquer. A mãe que passa horas ao piano com o seu filho ou o pai que controla ansioso o treino de hóquei ou de futebol da sua filha não são habitualmente vistos como ameaçadores para os seus filhos, embora possam estar motivados por expectativas e esperanças fortes.
Muitos pais têm filhos na expectativa de que estes venham a assegurar o futuro do negócio ou da quinta da família; outros podem muito bem ter em mente a perspectiva dos seus filhos virem a cuidar deles na reforma ou na doença. As expectativas parentais são normais e normalmente desproporcionadas. Mas não entramos em pânico por isso, nem procuramos regulamentação ou legislação para os controlar. Não há razão para supor que os pais de crianças clonadas sejam radicalmente diferentes dos actuais. É provável que eles, como a maioria dos pais, acabem por ver as suas expectativas e esperanças transformar-se em metal líquido no caldeirão da vida e a chocar contra a rocha da autonomia individual. Não há razão para supor que as crianças clonadas venham a ser menos rebeldes ou independentes do que as outras crianças, nem que os pais de tais filhos venham a conseguir lidar de forma mais formidável com a rebeldia e a independência natural do que a generalidade dos pais actuais. É claro que tem sido pressuposto que aqueles que se puderem clonar a si próprios serão particularmente desqualificados para serem pais talvez por causa das falsas expectativas que se presume possuírem e por causa da provável força neurótica dessas expectativas. Ambos os defeitos destes pais prováveis são possíveis, mas devemos salientar que não é habitual declarar alguém incapaz de ser pai baseado nas falsas expectativas que possui sobre a parentalidade ou relativamente às virtudes e capacidades prováveis da criança resultante. Nem examinamos a força das suas expectativas iniciais. Aqui, como em todos os casos em que se alega que os estados mentais dos pais são inaceitavelmente prejudiciais, mais do que a evidência de que tais estados mentais causam dano, torna-se, de facto, necessário que haja evidências quanto à probabilidade do dano ocorrer e quanto ao grau do dano, antes de correr atrás da regulação e do controlo.
Possuir ideias quanto à apropriada estrutura da mente para e a propósito da procriação, está longe da evidência de que aqueles que possuem outras ideias são de tal forma imorais que se deve impedir as suas escolhas procriativas através de legislação. Não devemos confundir os nossos ideais e preferências com princípios morais; nem devemos imaginar que, por estarmos fortemente convictos das nossas preferências, temos necessariamente o direito de as defender. A alegada “ambiguidade” das origens dos possíveis clones e os papéis dos seus “pais” podem ser razões válidas para nos preocuparmos, mas não para os condenarmos. Um adulto que se clone a si próprio provavelmente agirá como mãe da irmã gémea que criou; contudo, o cenário em que irmãos mais velhos agem como se fossem pais de irmãos mais novos é bastante comum e, embora não seja frequentemente o ideal, não é o tipo de coisa que cause o pânico e a indignação generalizada.
Onora O’Neill (2002) opera uma nova viragem em alguns dos velhos argumentos relativos à protecção da criança no contexto da Clonagem Humana Reprodutiva (Clonagem) e ao fazê-lo visa de alguma forma alguns dos meus textos sobre este assunto. Salientando que tenho defendido que a clonagem segura é moralmente aceitável, ela insiste que a clonagem é “algo que nenhuns pais responsáveis planeariam”. Ela Sugere:
Pais prováveis pela via da clonagem que usam tecido reprodutivo e material genético de si próprios ou dos seus familiares pretendem dar existência a uma criança com relações familiares confusas e ambíguas. As relações familiares são confusas quando diversos indivíduos desempenham o papel de um; são ambíguas quando um indivíduo desempenha o papel de muitos. (2002: 67-8)
Para O’Neill, essa confusão e ambiguidade é um anátema. É pouco claro porque está preocupada com a confusão e a ambiguidade. Evidências decorrentes do divórcio, adopção, famílias de acolhimento e reprodução assistida, sugerem que as crianças são capazes de lidar com uma grande quantidade de confusão e ambiguidade nas relações familiares sem que isso cause dano significativo[1].
Nas condições em que fosse racional julgar se um indivíduo não teria uma vida merecedora de ser vivida se ele ou ela viessem a nascer nessas circunstâncias particulares, então não só possuiríamos razões poderosas para não fazermos nós próprios essas escolhas, mas, se isso estivesse de facto ao nosso alcance, também possuiríamos razões poderosas para impedir que os outros as fizessem – se necessário através de legislação e regulamentação. Contudo, onde julgássemos que as circunstâncias de uma pessoa futura fossem inferiores às ideais, mas não tão más que as privassem de uma existência valiosa, então não haveria justificação moral para impor os nossos ideais aos outros. Isto é particularmente verdadeiro quando não há em absoluto qualquer evidência empírica de danos, mas apenas a sensação de que esses danos “poderiam acontecer”.
Há situações em que é difícil generalizar e o recurso a um exemplo pode ajudar-nos. Podemos concordar que a pobreza é uma excelente forma de antecipar más consequências para os filhos, e que, em circunstâncias ideais, os filhos deveriam ser criados num ambiente livre de pobreza e dificuldades. Podemos até pensar que se nós próprios fossemos bastante pobres, não quereríamos ter filhos, ou não teríamos justificação para os ter. Contudo, algo bem diferente seria defender que, por sermos pobres, não nos devia ser permitido ter filhos ou que devia ser-nos negada assistência na reprodução. Também não pareceria ser boa política permitir que aqueles que tivessem o poder o pudessem usar à sua discrição para negar assistência na reprodução com base nestes pressupostos gerais.
Sabemos que no caso da clonagem, a menos que essas tecnologias sejam usadas, a criança particular em questão nunca existirá (Burley & Harris, 1999: 2000a). Uma futura criança clonada racional encararia o risco ligeiro de confusão como o preço justo a pagar pela sua existência, a não ser, claro, que tal confusão transformasse de facto a sua vida num inferno.»
O problema da não-identidade
Este aspecto foi trazido à atenção filosófica por Derek Parfit (1984: cap. 16) e tem sido frequentemente chamado “o problema da não-identidade”. Nesta secção apresento alguns dos argumentos que desenvolvi em conjunto com Justine Burley (Burley & Harris, 1999).
Considere os dois casos seguintes. O primeiro é de Parfit e envolve uma possível mãe de 14 anos. Esta rapariga decide ter um filho. Por ser tão nova, acaba por dar à sua criança um mau princípio de vida. Embora isso vá ter efeitos negativos na vida da criança, a sua vida será, previsivelmente, valiosa. Se a rapariga tivesse esperado alguns anos, teria um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor (Parfit, 1984: 358).
Uma analogia com este caso será a seguinte: uma mulher decide ter um filho através da clonagem. Uma vez que escolhe conceber desta forma, dá à criança um mau princípio de vida. Embora isso vá ter efeitos negativos na vida da criança, a sua vida será, previsivelmente, valiosa. Se esta mulher tivesse escolhido procriar por meios alternativos, teria tido um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor.
Em ambos os casos, os dois cursos de acção estão abertos à mãe provável. Ao criticar o curso de acção destas mulheres na primeira opção disponível (a saber, respectivamente concepção aos 14 anos e clonagem reprodutiva) as pessoas poderiam defender que as decisões de ambas as mães seriam provavelmente piores para os seus filhos (Parfit, 1984: 359). Contudo, como refere Parfit, embora as pessoas possam afirmar isso quanto às decisões tomadas, não podem explicar o que há de objectável nelas. Falham na tentativa de explicar isto porque nenhuma decisão pode ser pior para cada uma das crianças nascidas; a alternativa para ambas seria não chegar a existir. Se a rapariga de 14 anos esperar para conceber, nascerá uma criança completamente diferente. Do mesmo modo, se a mulher escolher não clonar e em vez disso conceber através de meios de procriação natural, a criança a nascer seria completamente diferente. Assim as teses acerca da incorrecção de perseguir a primeira opção em ambos os casos anteriores não podem ser teses sobre o porquê destes filhos terem sido prejudicados. A possibilidade destas crianças viverem é melhor do que a possibilidade de não existirem.»
Quando o nascimento da Dolly foi relatado na Nature em 27 de Fevereiro, 1997, a surpresa pelo feito e a celebração da ciência foram ultrapassadas pela reacção compreensivelmente hostil à própria ideia de clonagem. Esta hostilidade conduziu ao que é de facto uma proibição planetária à clonagem reprodutiva. Mas será esta proibição justificável? Não acredito e o que vem a seguir explica porquê.
Sugiro que um princípio fundamental desta sociedade e de todas as democracias merecedoras desse nome, é que a liberdade humana não seja limitada a não ser que seja apresentada uma boa razão para isso. Acredito que deve ser perturbador para qualquer pessoa permitir que as nossas sociedades sejam empurradas à força para a oposição à clonagem humana por uma combinação do que só pode ser considerado histeria e preconceito.
Haverá algo de errado com a clonagem humana?
Há três tipos principais de argumentos contra a clonagem humana reprodutiva: afirma-se que não é segura; afirma-se que é prejudicial para a criança resultante; ou afirma-se que a duplicação de um dado genoma é de algum modo uma coisa má. Consideremos rapidamente estes argumentos.
Segurança
A questão da segurança, por não ser a mais importante, não nos deve ocupar demasiado. É claro que não devemos clonar humanos se isso não for seguro ou pelo menos não for suficientemente seguro. É importante salientar que este não é um argumento que oferece objecções centrais à clonagem. Trata-se de um argumento que seria bom contra a introdução de qualquer novo tipo de tecnologia. O apelo à segurança, por enquanto cogente, não pode justificar a histeria que referimos. Por exemplo, não exigimos leis globais contra as vacinas para a SIDA, embora, tanto quanto saibamos, ainda não esteja disponível qualquer vacina realmente segura (ou eficaz); nem nos manifestamos contra a perspectiva de permitir que os seres humanos deixem crescer asas, embora não saibamos se isso será algum dia seguro ou eficaz. Ainda que a segurança seja sempre uma preocupação legítima, em questão estão diferenças importantes ao nível da nossa preocupação em função do grau de segurança, ou da falta dela. Devemos recordar que dar à luz da forma normal não é um procedimento “seguro” nem para a mãe nem para a criança; como também não é seguro ela saber que um aborto prematuro é mais seguro do que um parto. Apesar disto, as preocupações de segurança não são habitualmente consideradas argumentos poderosos contra a procriação. Assim, quando a questão da segurança é invocada enquanto preocupação relativa a qualquer procedimento médico, quando temos realmente de escolher, é preciso colocar a questão concreta relativa aos graus de segurança e às possibilidades alternativas. A “segurança”, tout court, não é o argumento decisivo que se pensa ser. Para além disso, considerando que o grau de segurança é inaceitavelmente relativo quanto aos ganhos possíveis, não é um argumento contra a clonagem per se, mas contra todo e qualquer procedimento que possua um ratio custo-benefício desfavorável. É também por natureza contingente: uma vez resolvidos os problemas de segurança num grau satisfatório as objecções perderão consequência.
O bem-estar da criança
O segundo tipo de argumento contra a clonagem diz respeito ao bem-estar da criança clonada que possa vir a nascer. Todos os argumentos que não se referem à segurança referem-se aos fardos das expectativas que podem vir a sobrecarregar a criança, ou à ambiguidade do seu estatuto.
Expectativas
A maioria dos pais possui expectativas relativamente aos seus filhos. Com efeito, pode pensar-se que os pais que não possuem forte expectativas relativamente aos seus filhos são altamente irresponsáveis. É improvável que os pais que possuem fortes expectativas relativamente aos seus filhos se preocupem apenas com o desporto e com o treino físico, mas não se preocupem com a sua educação, e não cuidem de oferecer um ambiente disciplinado que requeira, por exemplo, educação musical, ou educação noutra arte qualquer. A mãe que passa horas ao piano com o seu filho ou o pai que controla ansioso o treino de hóquei ou de futebol da sua filha não são habitualmente vistos como ameaçadores para os seus filhos, embora possam estar motivados por expectativas e esperanças fortes.
Muitos pais têm filhos na expectativa de que estes venham a assegurar o futuro do negócio ou da quinta da família; outros podem muito bem ter em mente a perspectiva dos seus filhos virem a cuidar deles na reforma ou na doença. As expectativas parentais são normais e normalmente desproporcionadas. Mas não entramos em pânico por isso, nem procuramos regulamentação ou legislação para os controlar. Não há razão para supor que os pais de crianças clonadas sejam radicalmente diferentes dos actuais. É provável que eles, como a maioria dos pais, acabem por ver as suas expectativas e esperanças transformar-se em metal líquido no caldeirão da vida e a chocar contra a rocha da autonomia individual. Não há razão para supor que as crianças clonadas venham a ser menos rebeldes ou independentes do que as outras crianças, nem que os pais de tais filhos venham a conseguir lidar de forma mais formidável com a rebeldia e a independência natural do que a generalidade dos pais actuais. É claro que tem sido pressuposto que aqueles que se puderem clonar a si próprios serão particularmente desqualificados para serem pais talvez por causa das falsas expectativas que se presume possuírem e por causa da provável força neurótica dessas expectativas. Ambos os defeitos destes pais prováveis são possíveis, mas devemos salientar que não é habitual declarar alguém incapaz de ser pai baseado nas falsas expectativas que possui sobre a parentalidade ou relativamente às virtudes e capacidades prováveis da criança resultante. Nem examinamos a força das suas expectativas iniciais. Aqui, como em todos os casos em que se alega que os estados mentais dos pais são inaceitavelmente prejudiciais, mais do que a evidência de que tais estados mentais causam dano, torna-se, de facto, necessário que haja evidências quanto à probabilidade do dano ocorrer e quanto ao grau do dano, antes de correr atrás da regulação e do controlo.
Possuir ideias quanto à apropriada estrutura da mente para e a propósito da procriação, está longe da evidência de que aqueles que possuem outras ideias são de tal forma imorais que se deve impedir as suas escolhas procriativas através de legislação. Não devemos confundir os nossos ideais e preferências com princípios morais; nem devemos imaginar que, por estarmos fortemente convictos das nossas preferências, temos necessariamente o direito de as defender. A alegada “ambiguidade” das origens dos possíveis clones e os papéis dos seus “pais” podem ser razões válidas para nos preocuparmos, mas não para os condenarmos. Um adulto que se clone a si próprio provavelmente agirá como mãe da irmã gémea que criou; contudo, o cenário em que irmãos mais velhos agem como se fossem pais de irmãos mais novos é bastante comum e, embora não seja frequentemente o ideal, não é o tipo de coisa que cause o pânico e a indignação generalizada.
Onora O’Neill (2002) opera uma nova viragem em alguns dos velhos argumentos relativos à protecção da criança no contexto da Clonagem Humana Reprodutiva (Clonagem) e ao fazê-lo visa de alguma forma alguns dos meus textos sobre este assunto. Salientando que tenho defendido que a clonagem segura é moralmente aceitável, ela insiste que a clonagem é “algo que nenhuns pais responsáveis planeariam”. Ela Sugere:
Pais prováveis pela via da clonagem que usam tecido reprodutivo e material genético de si próprios ou dos seus familiares pretendem dar existência a uma criança com relações familiares confusas e ambíguas. As relações familiares são confusas quando diversos indivíduos desempenham o papel de um; são ambíguas quando um indivíduo desempenha o papel de muitos. (2002: 67-8)
Para O’Neill, essa confusão e ambiguidade é um anátema. É pouco claro porque está preocupada com a confusão e a ambiguidade. Evidências decorrentes do divórcio, adopção, famílias de acolhimento e reprodução assistida, sugerem que as crianças são capazes de lidar com uma grande quantidade de confusão e ambiguidade nas relações familiares sem que isso cause dano significativo[1].
Nas condições em que fosse racional julgar se um indivíduo não teria uma vida merecedora de ser vivida se ele ou ela viessem a nascer nessas circunstâncias particulares, então não só possuiríamos razões poderosas para não fazermos nós próprios essas escolhas, mas, se isso estivesse de facto ao nosso alcance, também possuiríamos razões poderosas para impedir que os outros as fizessem – se necessário através de legislação e regulamentação. Contudo, onde julgássemos que as circunstâncias de uma pessoa futura fossem inferiores às ideais, mas não tão más que as privassem de uma existência valiosa, então não haveria justificação moral para impor os nossos ideais aos outros. Isto é particularmente verdadeiro quando não há em absoluto qualquer evidência empírica de danos, mas apenas a sensação de que esses danos “poderiam acontecer”.
Há situações em que é difícil generalizar e o recurso a um exemplo pode ajudar-nos. Podemos concordar que a pobreza é uma excelente forma de antecipar más consequências para os filhos, e que, em circunstâncias ideais, os filhos deveriam ser criados num ambiente livre de pobreza e dificuldades. Podemos até pensar que se nós próprios fossemos bastante pobres, não quereríamos ter filhos, ou não teríamos justificação para os ter. Contudo, algo bem diferente seria defender que, por sermos pobres, não nos devia ser permitido ter filhos ou que devia ser-nos negada assistência na reprodução. Também não pareceria ser boa política permitir que aqueles que tivessem o poder o pudessem usar à sua discrição para negar assistência na reprodução com base nestes pressupostos gerais.
Sabemos que no caso da clonagem, a menos que essas tecnologias sejam usadas, a criança particular em questão nunca existirá (Burley & Harris, 1999: 2000a). Uma futura criança clonada racional encararia o risco ligeiro de confusão como o preço justo a pagar pela sua existência, a não ser, claro, que tal confusão transformasse de facto a sua vida num inferno.»
O problema da não-identidade
Este aspecto foi trazido à atenção filosófica por Derek Parfit (1984: cap. 16) e tem sido frequentemente chamado “o problema da não-identidade”. Nesta secção apresento alguns dos argumentos que desenvolvi em conjunto com Justine Burley (Burley & Harris, 1999).
Considere os dois casos seguintes. O primeiro é de Parfit e envolve uma possível mãe de 14 anos. Esta rapariga decide ter um filho. Por ser tão nova, acaba por dar à sua criança um mau princípio de vida. Embora isso vá ter efeitos negativos na vida da criança, a sua vida será, previsivelmente, valiosa. Se a rapariga tivesse esperado alguns anos, teria um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor (Parfit, 1984: 358).
Uma analogia com este caso será a seguinte: uma mulher decide ter um filho através da clonagem. Uma vez que escolhe conceber desta forma, dá à criança um mau princípio de vida. Embora isso vá ter efeitos negativos na vida da criança, a sua vida será, previsivelmente, valiosa. Se esta mulher tivesse escolhido procriar por meios alternativos, teria tido um filho diferente, ao qual daria um início de vida melhor.
Em ambos os casos, os dois cursos de acção estão abertos à mãe provável. Ao criticar o curso de acção destas mulheres na primeira opção disponível (a saber, respectivamente concepção aos 14 anos e clonagem reprodutiva) as pessoas poderiam defender que as decisões de ambas as mães seriam provavelmente piores para os seus filhos (Parfit, 1984: 359). Contudo, como refere Parfit, embora as pessoas possam afirmar isso quanto às decisões tomadas, não podem explicar o que há de objectável nelas. Falham na tentativa de explicar isto porque nenhuma decisão pode ser pior para cada uma das crianças nascidas; a alternativa para ambas seria não chegar a existir. Se a rapariga de 14 anos esperar para conceber, nascerá uma criança completamente diferente. Do mesmo modo, se a mulher escolher não clonar e em vez disso conceber através de meios de procriação natural, a criança a nascer seria completamente diferente. Assim as teses acerca da incorrecção de perseguir a primeira opção em ambos os casos anteriores não podem ser teses sobre o porquê destes filhos terem sido prejudicados. A possibilidade destas crianças viverem é melhor do que a possibilidade de não existirem.»
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[1] Há uma literatura vasta sobre os riscos de dano às crianças em virtude de diversos factores relativos às suas origens; a maioria parte dessa literatura é céptica quanto aos efeitos negativos da ambiguidade, confusão, uso de tecnologias reprodutivas, adopção, famílias de acolhimento, divórcio, etc. Ver a secção “Leituras futuras”.
[1] Há uma literatura vasta sobre os riscos de dano às crianças em virtude de diversos factores relativos às suas origens; a maioria parte dessa literatura é céptica quanto aos efeitos negativos da ambiguidade, confusão, uso de tecnologias reprodutivas, adopção, famílias de acolhimento, divórcio, etc. Ver a secção “Leituras futuras”.
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