«(…) Se entendemos a cidadania como uma identidade política, criada através da identificação com a respublica, toma-se possível uma nova concepção de cidadão. Primeiro, estamos agora a lidar com um tipo de identidade política, uma forma de identificação, e não simplesmente um estatuto legal. O cidadão não é, tal como sucede no liberalismo, um recipiente passivo de direitos específicos que goza da protecção da lei. Não é que esses elementos se tomem irrelevantes, mas a definição de cidadão altera-se porque agora a ênfase é colocada na identificação com a respublica. É uma identidade política comum de pessoas, que podem estar empenhadas em muitos empreendimentos com finalidades diferentes e com diversas concepções de bem, mas que, na procura da sua satisfação e na execução das suas acções, aceitam submeter-se às regras prescritas pela respublica. O que as liga é o reconhecimento de um conjunto de valores ético-políticos. Neste caso, a cidadania não é apenas uma identidade entre outras, tal como no liberalismo, ou a identidade dominante que se sobrepõe a todas as outras, como no republicanismo cívico. É um princípio articulador, que afecta as diferentes posições de sujeito do agente social (como demonstrarei quando falar da distinção entre o público e o privado), ao mesmo tempo que permite uma pluralidade de compromissos e o respeito pela liberdade individual.
No entanto, uma vez que estamos a tratar de política, haverá formas de identificação concorrentes ligadas a diferentes interpretações da respublica. Num regime democrático-liberal podemos conceber a respublica como sendo constituída pelos princípios políticos deste regime: igualdade e liberdade para todos. Se atribuirmos um tal conteúdo à noção de respublica de Oakeshott, poderemos afirmar que as condições a subscrever e a tomar em consideração na acção devem ser entendidas como a exigência de tratar os outros como pessoas livres e iguais. Isto está claramente aberto a interpretações potencialmente muito radicais. Por exemplo, uma interpretação democrática radical enfatizará as numerosas relações sociais onde existem relações de domínio, que terão de ser questionadas para que os princípios da liberdade e da igualdade possam aplicar-se. Levará a que grupos diferentes que lutam por uma extensão e radicalização da democracia reconheçam que têm um interesse comum e que na escolha das suas acções deverão submeter-se a determinadas regras de conduta; por outras palavras, conduzirá à construção de uma identidade política comum como cidadãos radicais democratas.
A criação de identidades políticas como cidadãos radicais democratas depende então de uma forma de identificação colectiva entre as exigências democráticas de uma diversidade de movimentos: mulheres, trabalhadores, negros, homossexuais, ecologistas, bem como de muitos outros «movimentos sociais novos». Esta é uma concepção de cidadania que, através de uma identificação comum com uma interpretação democrática radical dos princípios da liberdade e da igualdade, visa construir um «nós», uma cadeia de equivalências entre as suas exigências, de forma a articulá-Ias pelo princípio da equivalência democrática. Porque não se trata apenas de estabelecer uma mera aliança entre determinados interesses, mas de modificar realmente a própria identidade destas forças. Isto é algo que muitos liberais pluralistas não entendem, porque são cegos às relações de poder. Concordam quanto à necessidade de ampliar a esfera dos direitos, de forma a incluir grupos até aqui excluídos, mas encaram esse processo como um lento e progressivo processo de inclusão na cidadania. É a história típica contada por T. H. Marshall no seu famoso artigo «Citizenship and social class». O problema de tal abordagem é o facto de ignorar os limites impostos à extensão do pluralismo pelo facto de alguns dos direitos existentes terem sido constituídos à custa da própria exclusão ou subordinação de direitos de outras categorias. Essas identidades terão, em primeiro lugar, de ser decompostas, se quisermos reconhecer vários direitos novos.
Para tornar possível uma hegemonia das forças democráticas são, portanto, exigidas novas identidades, e eu defendo aqui urna identidade política comum como cidadãos democratas radicais. Por tal entendo uma identificação colectiva com uma interpretação demo- crática radical dos princípios do regime democrático-liberal: a liberdade e a igualdade. Tal interpretação pressupõe que estes princípios sejam entendidos de forma que se tomem em consideração as diferentes relações sociais e posições de sujeito em que são relevantes: género, classe, raça, etnia, orientação sexual, etc.
Uma tal abordagem só pode ser adequadamente formulada numa problemática que conceba o agente social, não como um sujeito unitário, mas como a articulação de um conjunto de posições de sujeito, construídas a partir de discursos específicos e sempre precária e temporariamente suturadas na intersecção dessas posições de sujeito. Só com uma concepção não essencialista do sujeito, que integra a visão psicoanalítica de que todas as identidades são formas de identificação, podemos colocar a questão da identidade política de maneira frutuosa. Uma perspectiva não essencialista é igualmente necessária no que diz respeito às noções de respublica, societas e comunidade política. Porque é fundamental encará-Ias, não como referentes empíricos, mas como superfícies discursivas. Se falharmos nisto, o tipo de política aqui proposto tornar-se-á completamente incompreensível.
Neste ponto, uma concepção democrática radical de cidadania liga-se aos debates actuais sobre a «pós-modernidade» e à crítica do racionalismo e do universalismo. A concepção de cidadania que proponho rejeita a ideia de uma definição universalista abstracta do público, oposto a um domínio do privado, entendido como o reino da especialidade e da diferença. Considera que, embora a ideia moderna de cidadão tenha sido realmente fundamental para a revolução democrática, constitui hoje um obstáculo à sua extensão. Como as teorizadoras feministas têm defendido, o domínio do público da cidadania moderna foi baseado na recusa da participação das mulheres. Esta exclusão era vista como indispensável para postular a generalidade e a universalidade da esfera pública. A distinção entre público e privado, fundamental como era para a afirmação da liberdade individual, conduziu também a uma identificação do privado com o doméstico e desempenhou um papel importante na subordinação das mulheres.
À ideia de que o exercício da cidadania consiste em adoptar um ponto de vista universal, tomado equivalente à razão e reservado aos homens, oponho a ideia de que esse exercício consiste numa identificação com os princípios ético-políticos da democracia moderna e de que pode haver tantas formas de cidadania quantas as interpretações desses princípios.
Nesta concepção, a distinção entre público e privado não é afastada, mas apenas reformulada. Mais uma vez, Oakeshott pode ajudar-nos neste ponto a encontrar uma alternativa às limitações do liberalismo. Segundo ele, a societas é uma condição civil em que todos os empreendimentos são «privados», embora nunca isentos das condições «públicas» especificadas na respublica. Numa societas «todas as situações são um encontro entre o 'privado' e o 'público', entre uma acção ou um discurso, para obter uma satisfação substantiva imaginada ou desejada e as condições de civilidade a subscrever na sua execução e nenhuma situação implica a exclusão de qualquer outra». Os desejos, as escolhas, as decisões, são privados, porque são da responsabilidade de cada indivíduo, mas os desempenhos são públicos, porque se exige que estejam sujeitos à condições especificadas na respublica. Como as regras da respublica não impõem, proíbem ou garantem acções ou discursos substantivos e não dizem aos agentes o que devem fazer, este modo de associação respeita a liberdade individual. Mas a pertença do indivíduo à comunidade política e a sua identificação com os respectivos princípios ético-políticos manifestam-se pela sua aceitação do interesse comum expresso na respublica. Fornece a «gramática» da conduta do cidadão.
No caso de um cidadão democrata radical, uma tal abordagem permite-nos visualizar a forma como uma preocupação de igualdade e liberdade deve informar as suas acções em todas as áreas da vida social. Nenhuma esfera é imune a estas preocupações e as relações de domínio podem ser sempre questionadas. No entanto, não estamos a lidar com um tipo de comunidade com um objectivo específico que afirma um único objectivo para todos os seus membros e a liberdade do indivíduo é preservada.
A distinção entre o privado (liberdade individual) e o público (respublica) é mantida, tal como a distinção entre o indivíduo e o cidadão, mas não correspondem a esferas discretas separadas. Não podemos dizer: aqui terminam os meus deveres como cidadão e começa a minha liberdade como indivíduo. Estas duas identidades existem numa tensão permanente, que nunca pode ser conciliada. Mas é precisamente a tensão entre a liberdade e a igualdade que caracteriza a democracia moderna. É a própria vida de um tal regime e qualquer tentativa para impor uma harmonia perfeita, para realizar uma «verdadeira» democracia, só pode conduzir à sua destruição. É por isso que um projecto de democracia plural e radical reconhece a impossibilidade de uma completa realização da democracia e a conquista final da comunidade política. O seu objectivo é utilizar os recursos simbólicos da tradição democrático-liberal para lutar pelo aprofundamento da revolução democrática, sabendo que se trata de um processo interminável. A minha tese é a de que o ideal de cidadania poderá contribuir significativamente para uma tal extensão dos princípios da liberdade e da igualdade. Conjugando o ideal dos direitos e do pluralismo com ideias de diligência pública e de preocupação ético-política, uma nova e moderna concepção democrática de cidadania poderá restituir a dignidade à política e facultar um meio para a construção de uma hegemonia democrática radical.”
Mouffe, Chantal (1996). O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, pp. 95-9 (Adaptado por Vítor João Oliveira)
No entanto, uma vez que estamos a tratar de política, haverá formas de identificação concorrentes ligadas a diferentes interpretações da respublica. Num regime democrático-liberal podemos conceber a respublica como sendo constituída pelos princípios políticos deste regime: igualdade e liberdade para todos. Se atribuirmos um tal conteúdo à noção de respublica de Oakeshott, poderemos afirmar que as condições a subscrever e a tomar em consideração na acção devem ser entendidas como a exigência de tratar os outros como pessoas livres e iguais. Isto está claramente aberto a interpretações potencialmente muito radicais. Por exemplo, uma interpretação democrática radical enfatizará as numerosas relações sociais onde existem relações de domínio, que terão de ser questionadas para que os princípios da liberdade e da igualdade possam aplicar-se. Levará a que grupos diferentes que lutam por uma extensão e radicalização da democracia reconheçam que têm um interesse comum e que na escolha das suas acções deverão submeter-se a determinadas regras de conduta; por outras palavras, conduzirá à construção de uma identidade política comum como cidadãos radicais democratas.
A criação de identidades políticas como cidadãos radicais democratas depende então de uma forma de identificação colectiva entre as exigências democráticas de uma diversidade de movimentos: mulheres, trabalhadores, negros, homossexuais, ecologistas, bem como de muitos outros «movimentos sociais novos». Esta é uma concepção de cidadania que, através de uma identificação comum com uma interpretação democrática radical dos princípios da liberdade e da igualdade, visa construir um «nós», uma cadeia de equivalências entre as suas exigências, de forma a articulá-Ias pelo princípio da equivalência democrática. Porque não se trata apenas de estabelecer uma mera aliança entre determinados interesses, mas de modificar realmente a própria identidade destas forças. Isto é algo que muitos liberais pluralistas não entendem, porque são cegos às relações de poder. Concordam quanto à necessidade de ampliar a esfera dos direitos, de forma a incluir grupos até aqui excluídos, mas encaram esse processo como um lento e progressivo processo de inclusão na cidadania. É a história típica contada por T. H. Marshall no seu famoso artigo «Citizenship and social class». O problema de tal abordagem é o facto de ignorar os limites impostos à extensão do pluralismo pelo facto de alguns dos direitos existentes terem sido constituídos à custa da própria exclusão ou subordinação de direitos de outras categorias. Essas identidades terão, em primeiro lugar, de ser decompostas, se quisermos reconhecer vários direitos novos.
Para tornar possível uma hegemonia das forças democráticas são, portanto, exigidas novas identidades, e eu defendo aqui urna identidade política comum como cidadãos democratas radicais. Por tal entendo uma identificação colectiva com uma interpretação demo- crática radical dos princípios do regime democrático-liberal: a liberdade e a igualdade. Tal interpretação pressupõe que estes princípios sejam entendidos de forma que se tomem em consideração as diferentes relações sociais e posições de sujeito em que são relevantes: género, classe, raça, etnia, orientação sexual, etc.
Uma tal abordagem só pode ser adequadamente formulada numa problemática que conceba o agente social, não como um sujeito unitário, mas como a articulação de um conjunto de posições de sujeito, construídas a partir de discursos específicos e sempre precária e temporariamente suturadas na intersecção dessas posições de sujeito. Só com uma concepção não essencialista do sujeito, que integra a visão psicoanalítica de que todas as identidades são formas de identificação, podemos colocar a questão da identidade política de maneira frutuosa. Uma perspectiva não essencialista é igualmente necessária no que diz respeito às noções de respublica, societas e comunidade política. Porque é fundamental encará-Ias, não como referentes empíricos, mas como superfícies discursivas. Se falharmos nisto, o tipo de política aqui proposto tornar-se-á completamente incompreensível.
Neste ponto, uma concepção democrática radical de cidadania liga-se aos debates actuais sobre a «pós-modernidade» e à crítica do racionalismo e do universalismo. A concepção de cidadania que proponho rejeita a ideia de uma definição universalista abstracta do público, oposto a um domínio do privado, entendido como o reino da especialidade e da diferença. Considera que, embora a ideia moderna de cidadão tenha sido realmente fundamental para a revolução democrática, constitui hoje um obstáculo à sua extensão. Como as teorizadoras feministas têm defendido, o domínio do público da cidadania moderna foi baseado na recusa da participação das mulheres. Esta exclusão era vista como indispensável para postular a generalidade e a universalidade da esfera pública. A distinção entre público e privado, fundamental como era para a afirmação da liberdade individual, conduziu também a uma identificação do privado com o doméstico e desempenhou um papel importante na subordinação das mulheres.
À ideia de que o exercício da cidadania consiste em adoptar um ponto de vista universal, tomado equivalente à razão e reservado aos homens, oponho a ideia de que esse exercício consiste numa identificação com os princípios ético-políticos da democracia moderna e de que pode haver tantas formas de cidadania quantas as interpretações desses princípios.
Nesta concepção, a distinção entre público e privado não é afastada, mas apenas reformulada. Mais uma vez, Oakeshott pode ajudar-nos neste ponto a encontrar uma alternativa às limitações do liberalismo. Segundo ele, a societas é uma condição civil em que todos os empreendimentos são «privados», embora nunca isentos das condições «públicas» especificadas na respublica. Numa societas «todas as situações são um encontro entre o 'privado' e o 'público', entre uma acção ou um discurso, para obter uma satisfação substantiva imaginada ou desejada e as condições de civilidade a subscrever na sua execução e nenhuma situação implica a exclusão de qualquer outra». Os desejos, as escolhas, as decisões, são privados, porque são da responsabilidade de cada indivíduo, mas os desempenhos são públicos, porque se exige que estejam sujeitos à condições especificadas na respublica. Como as regras da respublica não impõem, proíbem ou garantem acções ou discursos substantivos e não dizem aos agentes o que devem fazer, este modo de associação respeita a liberdade individual. Mas a pertença do indivíduo à comunidade política e a sua identificação com os respectivos princípios ético-políticos manifestam-se pela sua aceitação do interesse comum expresso na respublica. Fornece a «gramática» da conduta do cidadão.
No caso de um cidadão democrata radical, uma tal abordagem permite-nos visualizar a forma como uma preocupação de igualdade e liberdade deve informar as suas acções em todas as áreas da vida social. Nenhuma esfera é imune a estas preocupações e as relações de domínio podem ser sempre questionadas. No entanto, não estamos a lidar com um tipo de comunidade com um objectivo específico que afirma um único objectivo para todos os seus membros e a liberdade do indivíduo é preservada.
A distinção entre o privado (liberdade individual) e o público (respublica) é mantida, tal como a distinção entre o indivíduo e o cidadão, mas não correspondem a esferas discretas separadas. Não podemos dizer: aqui terminam os meus deveres como cidadão e começa a minha liberdade como indivíduo. Estas duas identidades existem numa tensão permanente, que nunca pode ser conciliada. Mas é precisamente a tensão entre a liberdade e a igualdade que caracteriza a democracia moderna. É a própria vida de um tal regime e qualquer tentativa para impor uma harmonia perfeita, para realizar uma «verdadeira» democracia, só pode conduzir à sua destruição. É por isso que um projecto de democracia plural e radical reconhece a impossibilidade de uma completa realização da democracia e a conquista final da comunidade política. O seu objectivo é utilizar os recursos simbólicos da tradição democrático-liberal para lutar pelo aprofundamento da revolução democrática, sabendo que se trata de um processo interminável. A minha tese é a de que o ideal de cidadania poderá contribuir significativamente para uma tal extensão dos princípios da liberdade e da igualdade. Conjugando o ideal dos direitos e do pluralismo com ideias de diligência pública e de preocupação ético-política, uma nova e moderna concepção democrática de cidadania poderá restituir a dignidade à política e facultar um meio para a construção de uma hegemonia democrática radical.”
Mouffe, Chantal (1996). O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, pp. 95-9 (Adaptado por Vítor João Oliveira)
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