«Por ora, é o que basta dizer sobre a comparação entre os dois modelos de democracia que hoje dominam a discussão entre os assim chamados comunitaristas e os liberais, sobretudo nos Estados Unidos. O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como vantagem o facto de se firmar no sentido democrata radical de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos unidos comunicativamente, e não em fazer com que os fins colectivos sejam derivados somente de um arranjo entre interesses privados conflituantes. Como desvantagem, entendo o facto de ser bastante idealista e tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum. Mas a política não se constitui apenas - e nem sequer em primeira linha - de questões relativas à auto-compreensão ética dos grupos sociais. O erro reside num estreitamento ético dos discursos políticos.
Por certo, entre os elementos que formam a política são bastante importantes os discursos de auto-compreensão em que os envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mesmos se entendem enquanto membros de uma determinada nação, membros de um município ou de um Estado, habitantes de uma determinada região, ou ainda quanto a que tradições se deve dar continuidade, à maneira como se tratam entre si e como tratam as minorias ou os grupos marginalizados, ou quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas em situações de pluralismo cultural e social, também é frequente haver, por detrás de objectivos politicamente relevantes, interesses e orientações valorativas que de forma alguma são constitutivos da identidade da comunidade no seu conjunto, ou seja, para o todo de uma forma de vida partilhada intersubjectivamente. Esses interesses e orientações valorativas que permanecem em conflito no interior de uma mesma comunidade sem qualquer perspectiva de consenso, necessitam de um equilíbrio ou de um compromisso que não é possível alcançar-se mediante discursos éticos, mesmo que os resultados se sujeitassem à condição de não transgredir os valores básicos consensuais de uma cultura. A compensação de interesses realiza-se sob a forma do estabelecimento de um acordo entre partidos que se apoiam sobre potencialidades de poder e de sanções. Negociações desse tipo pressupõem seguramente uma disposição para a cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a observância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os partidos, mesmo que por razões diversas. Contudo, o estabelecimento do acordo não ocorre sob as formas de um discurso racional, neutralizador do poder e capaz de excluir toda acção estratégica. Na verdade, a equidade dos compromissos é medida por condições e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justificação racional (normativa) com respeito a se são ou não justos. Diversamente do que se dá com as questões éticas, as questões de justiça não se referem por si mesmas a uma dada colectividade. O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, tem pelo menos de estar em consonância com princípios morais que reivindiquem uma validação geral para além de uma comunidade jurídica concreta.
O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando levamos em conta a pluralidade de formas de comunicação nas quais a vontade comum pode formar-se, não apenas por uma auto-compreensão ética, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses e compromissos, mediante a escolha racional de meios com respeito a um fim, mediante justificações morais e exames de coerência jurídicos. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe num exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do outro e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas, podem sobrepor-se no campo das deliberações. Tudo depende, portanto, das condições de comunicação e dos procedimentos que conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito sugerir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político pode ter a presunção de gerar resultados racionais, porque nele o modo e o estilo da política deliberativa realizam-se em toda a sua amplitude.
Quando se faz do conceito procedimental da política deliberativa o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia, resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do Estado como uma comunidade ética, como em relação à concepção liberal do Estado como defensor de uma sociedade económica. Ao comparar os três modelos, tomo como ponto de partida a dimensão da política que nos ocupou até o momento: a formação democrática da opinião e da vontade que resulta em eleições gerais e em decisões parlamentares.
Segundo a concepção liberal, esse processo apenas tem resultados sob a forma de arranjos de interesses. As regras de formação de acordos desse tipo - às quais cabe assegurar a justiça e a equidade dos resultados através de direitos iguais e universais de voto e da composição representativa das corporações parlamentares, das suas leis orgânicas etc. - são fundamentadas a partir de princípios constitucionais liberais. Segundo a concepção republicana, por outro lado, a formação democrática da vontade cumpre-se sob a forma de uma auto-compreensão ética; nesse caso, a deliberação pode apoiar-se quanto ao conteúdo num consenso de fundo baseado no facto de que os cidadãos partilham de uma mesma cultura. Esse consenso renova-se através da reactualização ritualizada de um acto de fundação republicano. A teoria do discurso acolhe elementos de ambos os lados e integra-os na concepção de um procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões. Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-compreensão e discursos relativos a questões de justiça, para além de fundamentar a suposição de que, sob tais condições, se obtêm resultados racionais e equitativos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de argumentação que retiram o seu conteúdo normativo do fundamento da validade da acção orientada para o entendimento e, em última análise, portanto, da própria estrutura da comunicação linguística.»
Por certo, entre os elementos que formam a política são bastante importantes os discursos de auto-compreensão em que os envolvidos procuram obter clareza quanto à maneira como eles mesmos se entendem enquanto membros de uma determinada nação, membros de um município ou de um Estado, habitantes de uma determinada região, ou ainda quanto a que tradições se deve dar continuidade, à maneira como se tratam entre si e como tratam as minorias ou os grupos marginalizados, ou quanto ao tipo de sociedade em que querem viver. Mas em situações de pluralismo cultural e social, também é frequente haver, por detrás de objectivos politicamente relevantes, interesses e orientações valorativas que de forma alguma são constitutivos da identidade da comunidade no seu conjunto, ou seja, para o todo de uma forma de vida partilhada intersubjectivamente. Esses interesses e orientações valorativas que permanecem em conflito no interior de uma mesma comunidade sem qualquer perspectiva de consenso, necessitam de um equilíbrio ou de um compromisso que não é possível alcançar-se mediante discursos éticos, mesmo que os resultados se sujeitassem à condição de não transgredir os valores básicos consensuais de uma cultura. A compensação de interesses realiza-se sob a forma do estabelecimento de um acordo entre partidos que se apoiam sobre potencialidades de poder e de sanções. Negociações desse tipo pressupõem seguramente uma disposição para a cooperação, ou seja, a vontade de obter resultados mediante a observância de regras do jogo que sejam aceitáveis para todos os partidos, mesmo que por razões diversas. Contudo, o estabelecimento do acordo não ocorre sob as formas de um discurso racional, neutralizador do poder e capaz de excluir toda acção estratégica. Na verdade, a equidade dos compromissos é medida por condições e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justificação racional (normativa) com respeito a se são ou não justos. Diversamente do que se dá com as questões éticas, as questões de justiça não se referem por si mesmas a uma dada colectividade. O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, tem pelo menos de estar em consonância com princípios morais que reivindiquem uma validação geral para além de uma comunidade jurídica concreta.
O conceito de uma política deliberativa só ganha referência empírica quando levamos em conta a pluralidade de formas de comunicação nas quais a vontade comum pode formar-se, não apenas por uma auto-compreensão ética, mas também pela busca de equilíbrio entre interesses e compromissos, mediante a escolha racional de meios com respeito a um fim, mediante justificações morais e exames de coerência jurídicos. Assim, os dois tipos de político que Michelman contrapõe num exercício de tipificação ideal podem impregnar-se um do outro e complementar-se. A política dialógica e a instrumental, quando as respectivas formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas, podem sobrepor-se no campo das deliberações. Tudo depende, portanto, das condições de comunicação e dos procedimentos que conferem força legitimadora à formação institucionalizada da opinião e da vontade. O terceiro modelo de democracia que me permito sugerir baseia-se nas condições de comunicação sob as quais o processo político pode ter a presunção de gerar resultados racionais, porque nele o modo e o estilo da política deliberativa realizam-se em toda a sua amplitude.
Quando se faz do conceito procedimental da política deliberativa o cerne normativamente consistente da teoria sobre a democracia, resultam daí diferenças tanto em relação à concepção republicana do Estado como uma comunidade ética, como em relação à concepção liberal do Estado como defensor de uma sociedade económica. Ao comparar os três modelos, tomo como ponto de partida a dimensão da política que nos ocupou até o momento: a formação democrática da opinião e da vontade que resulta em eleições gerais e em decisões parlamentares.
Segundo a concepção liberal, esse processo apenas tem resultados sob a forma de arranjos de interesses. As regras de formação de acordos desse tipo - às quais cabe assegurar a justiça e a equidade dos resultados através de direitos iguais e universais de voto e da composição representativa das corporações parlamentares, das suas leis orgânicas etc. - são fundamentadas a partir de princípios constitucionais liberais. Segundo a concepção republicana, por outro lado, a formação democrática da vontade cumpre-se sob a forma de uma auto-compreensão ética; nesse caso, a deliberação pode apoiar-se quanto ao conteúdo num consenso de fundo baseado no facto de que os cidadãos partilham de uma mesma cultura. Esse consenso renova-se através da reactualização ritualizada de um acto de fundação republicano. A teoria do discurso acolhe elementos de ambos os lados e integra-os na concepção de um procedimento ideal de deliberação e de tomada de decisões. Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-compreensão e discursos relativos a questões de justiça, para além de fundamentar a suposição de que, sob tais condições, se obtêm resultados racionais e equitativos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de argumentação que retiram o seu conteúdo normativo do fundamento da validade da acção orientada para o entendimento e, em última análise, portanto, da própria estrutura da comunicação linguística.»
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