«DISTRIBUIÇÃO DE RENDIMENTO, BEM-ESTAR E LIBERDADE
As nossas características físicas e sociais nos fazem criaturas imensamente diversas. Diferimos em idade, sexo, saúde física e mental, força física, capacidades intelectuais, circunstâncias climáticas, vulnerabilidade epidemiológica, ambientes sociais, e em muitos outros aspectos. Tais diversidades, contudo, podem ser difíceis de serem acomodadas adequadamente na estrutura estimativa habitual da avaliação da desigualdade. Como consequência, esta questão básica é frequentemente deixada sem um tratamento substancial na literatura sobre avaliação.
Um problema importante e frequentemente encontrado surge da concentração da discussão na desigualdade de rendimentos como o foco primário de atenção na análise da desigualdade. A extensão da desigualdade real de oportunidades com que as pessoas se defrontam não pode ser prontamente deduzida da magnitude da desigualdade de rendimentos, pois o que podemos ou não fazer, podemos ou não realizar, não depende somente dos nossos rendimentos, mas também da variedade de características físicas e sociais que afectam as nossas vidas e fazem de nós o que somos.
Para ilustrar de modo simples, a extensão da privação comparativa de uma pessoa fisicamente deficiente frente com outras não pode ser adequadamente julgada considerando-se o seu rendimento, pois a pessoa pode estar em grande desvantagem para converter o seu rendimento em realizações que valoriza[1]. O problema não surge apenas do facto de que a renda é somente um meio para fins a que na realidade visamos, mas (1) da existência de outros meios importantes, e (2) das variações interpessoais na relação entre meios e nossos vários fins.
Estas questões tenderam, no seu conjunto, a ser negligenciadas na literatura sobre a medição da desigualdade na economia. Por exemplo, considere-se a abordagem da construção de "índices de desigualdade" baseada na perda social de rendimento equivalente, feita em primeiro lugar por Atkinson (1970b)[2]. Esta abordagem tem sido, de muitas maneiras, notavelmente influente e produtiva na integração de considerações de desigualdade de rendimento com a avaliação global do bem-estar social[3]. A extensão da desigualdade é avaliada nesta abordagem usando-se a mesma função de resposta u(y) para todos os indivíduos, definida para rendimentos pessoais[4]. Esta estratégia de medição da desigualdade incorpora, desta forma, o traço restritivo de tratar os rendimentos de todas as pessoas simetricamente, não importando que dificuldades algumas pessoas têm, em comparação com outras, para converter o rendimento em bem-estar e liberdade[5].
É evidentemente verdade que o objectivo desta abordagem é avaliar a desigualdade especificamente na distribuição de rendimentos, não em níveis de bem-estar. Mas essa avaliação é feita à luz do que é realizado a partir da renda respectiva de uma pessoa, e essas realizações constituem o "bem-estar social" agregado. A desigualdade de rendimento é avaliada por Atkinson em termos da perda de bem-estar social (em unidades de rendimento agregado equivalente), como um resultado da desigualdade na distribuição do rendimento agregado[6]. Dada esta motivação, será em geral necessário introduzir os efeitos de outras influências sobre a vida e o bem-estar das pessoas para avaliar a própria desigualdade de rendimento[7]. Em geral, a medição da desigualdade tem que introduzir informação relativa a outros espaços - tanto (1) para o propósito de avaliar a desigualdade nesses mesmos espaços, como (2) para o de avaliar a desigualdade de rendimento num esquema mais amplo, considerando a presença de outras influências sobre o objectivo (no caso de Atkinson, o bem-estar social) - em termos dos quais a desigualdade de rendimento vai ser avaliada em última instância. Estas questões serão melhor examinadas no Capítulo 6.
A tendência para descartar as diversidades interpessoais pode ter origem não só na tentação pragmática de tornar simples e fácil o exercício de análise (como na literatura sobre a medição da desigualdade), mas também, como se discutiu anteriormente, da própria retórica da igualdade (por exemplo, "todos os homens são criados iguais"). A luz aprazível desta retórica pode-nos induzir a ignorar essas diferenças, "desconsiderando-as" ou "pressupondo-as como ausentes". Isso sugere uma transição aparentemente fácil entre um espaço e outro, por exemplo, de rendimentos para utilidades, de bens primários para liberdades, de recursos para bem-estar. E reduz - de novo, apenas aparentemente - a tensão entre diferentes abordagens da igualdade.
Mas o preço desse conforto é elevado. Como resultado dessa pressuposição, somos levados a ignorar as desigualdades substantivas de, digamos, bem-estar e liberdade que podem resultar directamente de uma igual distribuição de rendimento (dadas as nossas necessidades variáveis e circunstâncias pessoais e sociais díspares). Tanto os atalhos pragmáticos quanto a retórica grandiosa podem ser úteis para alguns propósitos e completamente inúteis e enganosos para outros.»
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As nossas características físicas e sociais nos fazem criaturas imensamente diversas. Diferimos em idade, sexo, saúde física e mental, força física, capacidades intelectuais, circunstâncias climáticas, vulnerabilidade epidemiológica, ambientes sociais, e em muitos outros aspectos. Tais diversidades, contudo, podem ser difíceis de serem acomodadas adequadamente na estrutura estimativa habitual da avaliação da desigualdade. Como consequência, esta questão básica é frequentemente deixada sem um tratamento substancial na literatura sobre avaliação.
Um problema importante e frequentemente encontrado surge da concentração da discussão na desigualdade de rendimentos como o foco primário de atenção na análise da desigualdade. A extensão da desigualdade real de oportunidades com que as pessoas se defrontam não pode ser prontamente deduzida da magnitude da desigualdade de rendimentos, pois o que podemos ou não fazer, podemos ou não realizar, não depende somente dos nossos rendimentos, mas também da variedade de características físicas e sociais que afectam as nossas vidas e fazem de nós o que somos.
Para ilustrar de modo simples, a extensão da privação comparativa de uma pessoa fisicamente deficiente frente com outras não pode ser adequadamente julgada considerando-se o seu rendimento, pois a pessoa pode estar em grande desvantagem para converter o seu rendimento em realizações que valoriza[1]. O problema não surge apenas do facto de que a renda é somente um meio para fins a que na realidade visamos, mas (1) da existência de outros meios importantes, e (2) das variações interpessoais na relação entre meios e nossos vários fins.
Estas questões tenderam, no seu conjunto, a ser negligenciadas na literatura sobre a medição da desigualdade na economia. Por exemplo, considere-se a abordagem da construção de "índices de desigualdade" baseada na perda social de rendimento equivalente, feita em primeiro lugar por Atkinson (1970b)[2]. Esta abordagem tem sido, de muitas maneiras, notavelmente influente e produtiva na integração de considerações de desigualdade de rendimento com a avaliação global do bem-estar social[3]. A extensão da desigualdade é avaliada nesta abordagem usando-se a mesma função de resposta u(y) para todos os indivíduos, definida para rendimentos pessoais[4]. Esta estratégia de medição da desigualdade incorpora, desta forma, o traço restritivo de tratar os rendimentos de todas as pessoas simetricamente, não importando que dificuldades algumas pessoas têm, em comparação com outras, para converter o rendimento em bem-estar e liberdade[5].
É evidentemente verdade que o objectivo desta abordagem é avaliar a desigualdade especificamente na distribuição de rendimentos, não em níveis de bem-estar. Mas essa avaliação é feita à luz do que é realizado a partir da renda respectiva de uma pessoa, e essas realizações constituem o "bem-estar social" agregado. A desigualdade de rendimento é avaliada por Atkinson em termos da perda de bem-estar social (em unidades de rendimento agregado equivalente), como um resultado da desigualdade na distribuição do rendimento agregado[6]. Dada esta motivação, será em geral necessário introduzir os efeitos de outras influências sobre a vida e o bem-estar das pessoas para avaliar a própria desigualdade de rendimento[7]. Em geral, a medição da desigualdade tem que introduzir informação relativa a outros espaços - tanto (1) para o propósito de avaliar a desigualdade nesses mesmos espaços, como (2) para o de avaliar a desigualdade de rendimento num esquema mais amplo, considerando a presença de outras influências sobre o objectivo (no caso de Atkinson, o bem-estar social) - em termos dos quais a desigualdade de rendimento vai ser avaliada em última instância. Estas questões serão melhor examinadas no Capítulo 6.
A tendência para descartar as diversidades interpessoais pode ter origem não só na tentação pragmática de tornar simples e fácil o exercício de análise (como na literatura sobre a medição da desigualdade), mas também, como se discutiu anteriormente, da própria retórica da igualdade (por exemplo, "todos os homens são criados iguais"). A luz aprazível desta retórica pode-nos induzir a ignorar essas diferenças, "desconsiderando-as" ou "pressupondo-as como ausentes". Isso sugere uma transição aparentemente fácil entre um espaço e outro, por exemplo, de rendimentos para utilidades, de bens primários para liberdades, de recursos para bem-estar. E reduz - de novo, apenas aparentemente - a tensão entre diferentes abordagens da igualdade.
Mas o preço desse conforto é elevado. Como resultado dessa pressuposição, somos levados a ignorar as desigualdades substantivas de, digamos, bem-estar e liberdade que podem resultar directamente de uma igual distribuição de rendimento (dadas as nossas necessidades variáveis e circunstâncias pessoais e sociais díspares). Tanto os atalhos pragmáticos quanto a retórica grandiosa podem ser úteis para alguns propósitos e completamente inúteis e enganosos para outros.»
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[1] A importância de procurar uma solução para casos desse tipo foi discutida extensivamente em OEI, cap. 1. Foi tratada aí principalmente como uma crítica do utilitarismo e do seu interesse exclusivo em somar utilidades. Não tenho nada a retirar àquela crítica, mas o problema é, de facto, muito mais disseminado do que sustentei então. Ficará claro, na medida em que analisarmos outras abordagens padronizadas, que quase todas elas tendem a falhar em fazer justiça ao problema que é ilustrado por este caso.»
[2] Esta abordagem da economia do bem-estar da avaliação da desigualdade é discutida com mais detalhe no capo 6, adiante.
[3] A abordagem é discutida extensivamente em OEI, cap. 3. Para exposições e avaliações esclarecedoras da literatura recente sobre a avaliação da desigualdade - incluindo a influência da abordagem de Atkinson sobre essa literatura - ver Blackorby & Donaldson (1978, 1984) e Foster (1985). Atkinson (1983) forneceu ele mesmo uma avaliação crítica daquela literatura e comentou algumas das questões que foram levantadas. Ver também Kolm (1969, 1976) sobre problemas afins.
[4] Esta função u tem sido usualmente interpretada como uma "função de utilidade". Mas u não precisa necessariamente ser vista como "utilidade"; sobre isso ver Atkinson (1983: 5-6). O bem-estar social é tomado como uma função adicional separável dos rendimentos individuais. As pequenas quantidades de bem-estar social, que dependem dos respectivos rendimentos das pessoas, são derivadas da mesma função para todos, e então somadas conjuntamente para produzir o bem-estar social agregado. Se u é tomada como utilidade (uma visão permissível, que fornece a mais simples - certamente a mais comum - interpretação), então a pressuposição da mesma função u para todos equivale à da mesma função de utilidade para cada um dos indivíduos. Mas, de modo mais geral, não importando qual interpretação de u(y) é escolhida, essa função deve ter a característica de ser a mesma para todos. Similarmente, na extensão da medida de Atkinson para um formato não necessariamente adicional separável, proposta em meu DEI (pp. 38-42), a pressuposição de uma função W agregada simétrica implica que o rendimento de cada um terá o mesmo impacto global. Embora formalmente tudo isso seja consistente com muitas histórias subjacentes diferentes, o argumento central é baseado na suposição da mesma relação de conversão (entre rendimento e realização) para diferentes pessoas. Sobre o problema geral da conversão, ver Fischer & Shell (1972), Sen (1979c) e Fischer (1987).
[5] Adoptar a mesma função de utilidade para todos, relacionando utilidade com rendimento (ou com rendimento e trabalho), também é quase o padrão em muitos outros ramos da alocação de recursos, por exemplo, na literatura sobre "taxação óptima", tendo John Mirrlees (1971) como pioneiro; Tuomala (1971) fornece uma proveitosa exposição dessa literatura. Isto aplica-se também à literatura sobre a análise do custo-benefício (ver a detalhada investigação crítica de Dreze & Stern, 1987).
[6] A abordagem (ver Atkinson 1970b, 1975, 1983) desenvolve uma linha de análise originalmente explorada por Dalton (1920), e reavivada também por Kolm (1969). As linhas principais da abordagem e a analítica subjacente são também discutidas em DEI.
[7] Para observações esclarecedoras sobre esta questão e outras relacionadas, ver Atkinson (1983: Parte I).
[3] A abordagem é discutida extensivamente em OEI, cap. 3. Para exposições e avaliações esclarecedoras da literatura recente sobre a avaliação da desigualdade - incluindo a influência da abordagem de Atkinson sobre essa literatura - ver Blackorby & Donaldson (1978, 1984) e Foster (1985). Atkinson (1983) forneceu ele mesmo uma avaliação crítica daquela literatura e comentou algumas das questões que foram levantadas. Ver também Kolm (1969, 1976) sobre problemas afins.
[4] Esta função u tem sido usualmente interpretada como uma "função de utilidade". Mas u não precisa necessariamente ser vista como "utilidade"; sobre isso ver Atkinson (1983: 5-6). O bem-estar social é tomado como uma função adicional separável dos rendimentos individuais. As pequenas quantidades de bem-estar social, que dependem dos respectivos rendimentos das pessoas, são derivadas da mesma função para todos, e então somadas conjuntamente para produzir o bem-estar social agregado. Se u é tomada como utilidade (uma visão permissível, que fornece a mais simples - certamente a mais comum - interpretação), então a pressuposição da mesma função u para todos equivale à da mesma função de utilidade para cada um dos indivíduos. Mas, de modo mais geral, não importando qual interpretação de u(y) é escolhida, essa função deve ter a característica de ser a mesma para todos. Similarmente, na extensão da medida de Atkinson para um formato não necessariamente adicional separável, proposta em meu DEI (pp. 38-42), a pressuposição de uma função W agregada simétrica implica que o rendimento de cada um terá o mesmo impacto global. Embora formalmente tudo isso seja consistente com muitas histórias subjacentes diferentes, o argumento central é baseado na suposição da mesma relação de conversão (entre rendimento e realização) para diferentes pessoas. Sobre o problema geral da conversão, ver Fischer & Shell (1972), Sen (1979c) e Fischer (1987).
[5] Adoptar a mesma função de utilidade para todos, relacionando utilidade com rendimento (ou com rendimento e trabalho), também é quase o padrão em muitos outros ramos da alocação de recursos, por exemplo, na literatura sobre "taxação óptima", tendo John Mirrlees (1971) como pioneiro; Tuomala (1971) fornece uma proveitosa exposição dessa literatura. Isto aplica-se também à literatura sobre a análise do custo-benefício (ver a detalhada investigação crítica de Dreze & Stern, 1987).
[6] A abordagem (ver Atkinson 1970b, 1975, 1983) desenvolve uma linha de análise originalmente explorada por Dalton (1920), e reavivada também por Kolm (1969). As linhas principais da abordagem e a analítica subjacente são também discutidas em DEI.
[7] Para observações esclarecedoras sobre esta questão e outras relacionadas, ver Atkinson (1983: Parte I).
Sen, Amartya (2001). Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Editora Record, pp. 41-68 (adaptado por Vítor João Oliveira)
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