«É minha convicção que a tradição do republicanismo cívico merece atenção por duas razões importantes. A primeira é que é um teste à pertença total a uma comunidade política. Este teste, através do qual o indivíduo se torna cidadão, equivale ao desempenho de deveres que decorrem do exercício de cidadania. No republicanismo cívico, a cidadania é uma actividade ou uma prática e não um mero estatuto, de tal forma que o não empenhamento nessa actividade ou prática equivale de facto à negação da cidadania. Segundo, o republicanismo cívico reconhece que o empenhamento dos cidadãos só acontece se for apoiado. Mas isso não significa que a simples autorização ou a criação de oportunidades garanta, por si só, o desempenho dos deveres que são inerentes à prática da cidadania: significa apenas que os cidadãos devem sentir-se suficientemente motivados. O republicanismo cívico é uma escola de pensamento bastante exigente. Numa comunidade assim não há conforto acolhedor. Os cidadãos são convocados para trabalhar, para realizar tarefas rigorosas e importantes relacionadas com os próprios fundamentos da sua identidade. Pode e deve efectivamente haver um sentido de pertença, que pode não estar associado à paz interna, mas, mesmo que esteja, não é o tipo de paz que permita uma despreocupação privada e descontraída, muito menos um desdém pelas preocupações cívicas.
[…] [O meu] argumento será, tendo em conta a tradição do republicanismo cívico, que […] longe de destruir a autonomia privada, os apoios institucionais que motivam os indivíduos para que se envolvam na prática da cidadania tornam possível alcançar um grau de autonomia moral e política, que a perspectiva baseada nos direitos não consegue garantir. […] O republicanismo cívico […] defende que a vida política – a vida do cidadão – não é só a forma de convivência humana mais inclusiva, mas é a forma de vida mais elevada a que os indivíduos podem aspirar […].
O argumento que se segue não depende da alteração da natureza humana. A cidadania pode não ser uma prática natural para os seres humanos […], mas não é seguramente uma prática para a qual estejam congenitamente incapacitados. Para além disso e para o caso desta discussão parecer extravagante, se não irremediavelmente utópica, o que se está a defender é mais do que um ideal a que se pode aspirar: é um padrão para avaliar as instituições e as práticas das nossas sociedades, e para orientarmos as nossas próprias actividades políticas. É neste sentido que os conceitos “cidadão” e “comunidade” partilham características importantes com outros termos do discurso político, como, por exemplo, “justiça” e “liberdade”. Aspiramos a ser justos e livres, mesmo sabendo que nunca e chegaremos a ser perfeitamente. Mas esse conhecimento nunca nos faz abandonar os nossos ideais, nem nos leva a considerar esses conceitos como irrelevantes ou desajustados ao mundo em que vivemos. Julgamos o mundo em que vivemos pela justiça e pela liberdade que exibe. A sugestão que avançamos aqui é que também o devemos julgar em função do modo como realiza ou não os ideais de cidadania e de comunidade.
Numa comunidade política o que é partilhado é a identidade, que nasce em parte da autodeterminação e em parte da história e da língua comum ou da ocupação continuada de um território. A solidariedade e a coesão políticas resultam da igualdade de uma identidade partilhada, que é, pelo menos em parte, auto-determinada e escolhida. Por outras palavras, a solidariedade política e a coesão não decorrem da partilha de uma história e de uma língua, e assim sucessivamente. Quando dos descrevemos como americanos, canadianos, ingleses, portugueses ou alentejanos, não nos estamos a identificar politicamente. Podemos estar a dizer algo acerca das nossas raízes ou acerca da nossa herança cultural, mas na medida em que essas raízes são vividas de forma diferenciada e que as heranças culturais são diversamente interpretadas, nada estamos a dizer sobre o empenho envolvido na identidade política quando conscientemente reconhecida e assumida. É esta escolha da identidade política que dá origem à solidariedade e a coesão numa comunidade política. E é enquanto “cidadãos activos” que escolhemos.
É claro que é verdade que nascemos no interior de redes de relações sociais, económicas e políticas, que não escolhemos. E aí reside justamente parte da dificuldade de qualquer tentativa para tornar significativa a prática da cidadania numa comunidade política do mundo moderno. Contudo, ao longo dos últimos duzentos anos ou mais, muitas pessoas pensaram conseguir forjar – através de revoluções, rebeliões e guerras de independência – novas identidades par si, ou tentaram dar expressão política a identidades que já possuíam. Isto ocorreu em quase todos os países do mundo ocidental […]. Esta é uma das lições mais subversivas da história para o projecto da comunidade política. Mas não por causa das revoluções ou das guerras terem resultado, algumas vezes ou frequentemente, na prática da cidadania. Claramente não resultaram. É que a guerra e a revolução têm sido necessárias para a escolha de uma identidade política. Por isso, esta é igualmente uma das lições subversivas de muitos escritores da tradição do republicanismo cívico: por exemplo, é um aspecto bastante vincado tanto por Maquiavel como por Rousseau.»
[…] [O meu] argumento será, tendo em conta a tradição do republicanismo cívico, que […] longe de destruir a autonomia privada, os apoios institucionais que motivam os indivíduos para que se envolvam na prática da cidadania tornam possível alcançar um grau de autonomia moral e política, que a perspectiva baseada nos direitos não consegue garantir. […] O republicanismo cívico […] defende que a vida política – a vida do cidadão – não é só a forma de convivência humana mais inclusiva, mas é a forma de vida mais elevada a que os indivíduos podem aspirar […].
O argumento que se segue não depende da alteração da natureza humana. A cidadania pode não ser uma prática natural para os seres humanos […], mas não é seguramente uma prática para a qual estejam congenitamente incapacitados. Para além disso e para o caso desta discussão parecer extravagante, se não irremediavelmente utópica, o que se está a defender é mais do que um ideal a que se pode aspirar: é um padrão para avaliar as instituições e as práticas das nossas sociedades, e para orientarmos as nossas próprias actividades políticas. É neste sentido que os conceitos “cidadão” e “comunidade” partilham características importantes com outros termos do discurso político, como, por exemplo, “justiça” e “liberdade”. Aspiramos a ser justos e livres, mesmo sabendo que nunca e chegaremos a ser perfeitamente. Mas esse conhecimento nunca nos faz abandonar os nossos ideais, nem nos leva a considerar esses conceitos como irrelevantes ou desajustados ao mundo em que vivemos. Julgamos o mundo em que vivemos pela justiça e pela liberdade que exibe. A sugestão que avançamos aqui é que também o devemos julgar em função do modo como realiza ou não os ideais de cidadania e de comunidade.
Numa comunidade política o que é partilhado é a identidade, que nasce em parte da autodeterminação e em parte da história e da língua comum ou da ocupação continuada de um território. A solidariedade e a coesão políticas resultam da igualdade de uma identidade partilhada, que é, pelo menos em parte, auto-determinada e escolhida. Por outras palavras, a solidariedade política e a coesão não decorrem da partilha de uma história e de uma língua, e assim sucessivamente. Quando dos descrevemos como americanos, canadianos, ingleses, portugueses ou alentejanos, não nos estamos a identificar politicamente. Podemos estar a dizer algo acerca das nossas raízes ou acerca da nossa herança cultural, mas na medida em que essas raízes são vividas de forma diferenciada e que as heranças culturais são diversamente interpretadas, nada estamos a dizer sobre o empenho envolvido na identidade política quando conscientemente reconhecida e assumida. É esta escolha da identidade política que dá origem à solidariedade e a coesão numa comunidade política. E é enquanto “cidadãos activos” que escolhemos.
É claro que é verdade que nascemos no interior de redes de relações sociais, económicas e políticas, que não escolhemos. E aí reside justamente parte da dificuldade de qualquer tentativa para tornar significativa a prática da cidadania numa comunidade política do mundo moderno. Contudo, ao longo dos últimos duzentos anos ou mais, muitas pessoas pensaram conseguir forjar – através de revoluções, rebeliões e guerras de independência – novas identidades par si, ou tentaram dar expressão política a identidades que já possuíam. Isto ocorreu em quase todos os países do mundo ocidental […]. Esta é uma das lições mais subversivas da história para o projecto da comunidade política. Mas não por causa das revoluções ou das guerras terem resultado, algumas vezes ou frequentemente, na prática da cidadania. Claramente não resultaram. É que a guerra e a revolução têm sido necessárias para a escolha de uma identidade política. Por isso, esta é igualmente uma das lições subversivas de muitos escritores da tradição do republicanismo cívico: por exemplo, é um aspecto bastante vincado tanto por Maquiavel como por Rousseau.»
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