«As perversidades da clonagem
Primeiro, uma objecção formal importante: qualquer tentativa para clonar um ser humano constitui uma experiência anti-ética para a criança que irá nascer. Tal como indicam as experiências com animais (sapos e ovelhas), há risco grave de acidente e deformações. Mais do que isso, por causa do significado da clonagem, não podemos presumir que uma criança clonada no futuro venha a consentir em ser um clone, mesmo um que fosse saudável. Assim, de um ponto de vista ético, não sequer necessário saber se a clonagem humana é viável.
É claro que compreendo as dificuldades filosóficas de tentar comparar uma vida com deficiências com uma inexistente. Diversos bioeticistas, orgulhosos da sua clarividência filosófica, servem-se deste enigma para desvalorizar afirmações como as que podemos prejudicar uma criança na sua concepção, precisamente porque seria apenas graças a essa concepção que essa criança estaria viva para se queixar. Mas o senso comum diz-nos que não há razão para recear estes sofismas. Já que sabemos seguramente que as pessoas podem prejudicar ou até mutilar uma criança no próprio acto da sua concepção através, digamos, da transmissão materna do vírus da SIDA, ou da transmissão materna da dependência de heroína, ou, o que é mais discutível, por serem bastardos ou não possuírem qualquer capacidade para cuidar de si convenientemente. E nós acreditamos que fazê-lo intencionalmente, ou negligentemente, é injustificável e claramente anti-ético.
A objecção acerca da impossibilidade de presumir o consentimento pode até estender-se para além do aspecto óbvio e suficiente que o clone, se fosse depois questionado, poderia realmente lamentara sua condição. Em causa não estão só os benefícios e os danos, mas as dúvidas sobre a própria independência necessária para dar o adequado (mesmo retroactivo) consentimento, que é não só a capacidade para escolher, mas a disposição e a capacidade para escolher livremente e bem. Não é de forma alguma claro em que medida um clone seria um agente moral, pois, como veremos, no próprio facto da clonagem, e sobretudo na sua educação como clone, os seus produtores podem subverter a sua independência, começando com o aspecto que resulta de saber que seria uma surpresa imprevista, uma prenda para o mundo, em vez do resultado planeado do projecto engenhoso de alguém.
A clonagem cria problemas sérios de identidade e de individualidade. A pessoa clonada pode experienciar preocupações com a sua identidade particular, não porque o seu genótipo ou a sua aparência seriam idênticos ao de outro ser humano, mas neste caso, porque também poderia vir a ser gémea de uma pessoa que podia ser o seu “pai” ou “mãe” – se é que ainda seria possível chamar-lhes assim. Quais seriam os fardos psicológicos de vir a ser “filho” ou “pai” do seu gémeo? Para além disso, o indivíduo clonado carregaria um genótipo que já havia vivido. Não seria uma verdadeira surpresa para o mundo. As pessoas tenderiam a comparar permanente o desempenho da sua vida com a do seu alter ego. É verdade, a sua educação e as suas circunstâncias de vida seriam diferentes; genótipo não é destino. Ainda assim, podemos igualmente esperar a existência de esforços parentais ou outros para moldar a nova vida de acordo com o original - ou pelo menos para a estar sempre a comparar com a versão original. Se assim não fosse, por que razão clonariam a estrela do basquetebol, ou o matemático ou a rainha da beleza – ou mesmo o querido e velho pai?
Desde o nascimento da Dolly, que tem havido uma quantidade razoável de ambivalência relativamente à questão da identidade genética. Os especialistas têm-se apressado a garantir ao público que o clone nunca seria a mesma pessoa nem sentiria confusão quanto à sua identidade; como observei anteriormente, gostam de salientar que o clone do Mel Gibson não seria o Mel Gibson. É razoável. Todavia, está-se a esconder a verdade ao enfatizar a importância adicional do ambiente intra-uterino, da educação e do contexto social: é óbvio que o genótipo é bastante importante. Isso, afinal, é a única razão para clonar seres humanos ou ovelhas. A probabilidade do clone de Wilt Chamberlain vir a jogar na NBA são, presumo, infinitamente maiores do que as de clones de Robert Reich.
Curiosamente, esta conclusão apoia-se inadvertidamente numa ideia ética reafirmada pelos apoiantes da clonagem: não haverá clonagem sem o consentimento do dador. Embora se trate de um argumento liberal clássico, é seguramente bastante enigmático sobretudo por vir de pessoas (como Ruth Macklin) que insistem que o genótipo não é nem identidade nem individualidade e que negam que seja razoável que a criança possa vir a queixar-se do facto de ser uma cópia genética. Se o clone do Mel Gibson não seria o Mel Gibson, com base em quê poderia o Mel Gibson objectar contra a sua clonagem? Já se permite que os especialistas usem amostras de sangue e tecido para efeitos de investigação que não beneficiem as suas fontes: a minha queda de cabelo, a minha expectoração, a minha urina, e até os meus tecidos resultantes de biopsias não sou “eu” nem são meus. Os tribunais têm defendido que os benefícios ganhos através do uso que os cientistas fazem dos meus tecidos descartados já não me pertencem legalmente. Então por que não clonar sem consentimento – incluindo, presumo, clonar usando o corpo de alguém que já morreu? Que mal será feito ao dador, se o genótipo já não sou “eu”? Para dizer a verdade, a única justificação convincente para refutar é que o genótipo tem realmente algo a ver com a identidade, e todos sabem disso. Se assim não fosse, como poderia o Michael Jordan recusar que “o” clonassem, digamos, a partir de células retiradas de um pedaço “perdido” da sua pele? A insistência no consentimento do dador revela inadvertidamente o problema da identidade em toda a clonagem.
A peculiaridade genética simboliza não apenas a unicidade de cada vida humana e a independência dos pais que cada criança humana correctamente alcança. Também pode ser um apoio importante para viver uma vida valiosa e digna. Estes argumentos aplicam-se de forma consistente a replicação de indivíduos humanos em larga escola. Mas, na minha opinião, são suficientes até para refutar a primeira tentativa de clonar um ser humano. De forma alguma se deve esquecer que são seres humanos relativamente aos quais as nossas fantasias ou meras brincadeiras genéticas estão a ser realizadas.
Uma identidade (individualidade) psíquica perturbada, baseada na mais que evidente identidade (mesmidade) genética, ficará bastante pior em função da clara confusão da sua identidade social e dos seus laços familiares. Porque, como já salientei, a clonagem confunde radicalmente a linhagem e as relações sociais, tanto nos “filhos” como nos “pais”. Como salienta o bioeticista James Nelson, uma criança do sexo feminino clonada da sua “mãe” pode desenvolver um desejo de se relacionar com o seu “pai” e pode compreensivelmente procurar o pai da sua “mãe”, a qual é afinal a sua gémea biológica. Será que o “avô”, que havia pensado que os seus deveres parentais estavam terminados, ficaria contente ao descobrir que o seu clone o procurava para reclamar atenção e apoio?
A identidade social e os laços sociais de relacionamento e responsabilidade estão amplamente ligados e apoiados nas relações biológicas. Por todo o lado, os tabus sociais sobre o incesto (e o adultério) servem para manter claras as relações de parentesco (particularmente as relações entre pais e filhos), bem como para evitar confundir a identidade social de pai-e-filho (ou de irmão-e-irmã) com a identidade de amantes, esposos, ou da coparentalidade. É verdade que a identidade social é alterada pela adopção (mas apenas porque isso serve os melhores interesses de uma criança já nascida: não deliberamos para produzir uma criança para adopção). É verdade que a inseminação artificial e a fertilização in vitro com um dador de esperma, ou com a doação da totalidade do embrião, são já de algum modo formas de “adopção pré-natal” – o que não deixa de ser uma prática problemática. Todavia, mesmo aqui há em cada caso (tal como na reprodução sexual) um macho conhecido que doa o esperma e uma fêmea conhecida que doa o óvulo – um pai genético e uma mãe genética – se houver alguém interessado em sabê-lo (como acontece frequentemente com as crianças adoptadas) que seja geneticamente aparentado.
Contudo, no caso da clonagem só há um “progenitor”. A situação habitual e triste das crianças com “um só pai” é aqui deliberadamente planeada e de forma vingativa. No caso da auto-clonagem, a “descendência” é, antes do mais, um gémeo de si próprio; pelo que o resultado pavoroso do incesto – ser pai de um dos irmãos – é aqui deliberado, embora sem o acto do coito. Mais ainda, todas as outras relações serão confundidas. O que significará pai, avô, tia, primo e irmã? Quem transportará esses laços e obrigações? Que identidade social manterá com um dos lados – do “pai” ou da “mãe” – necessariamente excluídos? Não é resposta dizer que a nossa sociedade, com os seus elevados índices de divórcios, segundos casamentos, adopções, filhos fora do casamento, e tudo o mais, já confunde a linhagem, as relações de parentesco e as responsabilidades para com os filhos (e outros), a não ser que queríamos discutir que isto é, do ponto de vista dos filhos, uma estado de coisas preferível.
A clonagem humana também representará um passo gigantesco para transformar a humanidade num produto de engenharia, procriação e manufactura (literalmente em “artesanato”), um processo que já se iniciou com a fertilização in vitro e os testes genéticos com embriões. Com a clonagem, não é só o processo, mas a totalidade da impressão genética de um indivíduo clonado, que será seleccionado e determinado por artesãos humanos. Para que seja seguro, o desenvolvimento subsequente acontecerá de acordo com os processos naturais; e a descendência resultante ainda será reconhecidamente humana. Mas estaríamos a dar um passo gigantesco para transformar pura e simplesmente a própria humanidade em mais uma das suas produções. A natureza humana torna-se simplesmente na última parte da natureza a sucumbir ao projecto tecnológico, que transforma toda a natureza em matéria-prima à disposição do homem, para ser homogeneizada pela nossa racionalidade técnica em conformidade com os preconceitos da moda.
Em que difere a produção da humanidade? Na procriação natural, os seres humanos juntam-se, um macho e uma fêmea complementares, para dar existência a um outro ser que se formou, exactamente da mesma forma que nós, pelo que nós somos: vivendo, ora de forma perecível, ora de forma erótica, como seres humanos. Na reprodução através da clonagem, pelo contrário, e nas formas mais avançadas de manufactura a que inevitavelmente conduzirá, damos existência não pelo que somos, mas pelo que pretendemos e planeamos. Tal como acontece com qualquer produto da humanidade, por mais excelente que seja, o artífice está acima dele, não como igual mas como superior, transcendendo-o através da sua vontade e do seu processo criativo. Os cientistas que clonam animais deixam claro que estão empenhados numa tarefa instrumental; os animais são, desde o início, produzidos como meios ao serviço dos objectivos da racionalidade humana. Na clonagem humana, os cientistas e os futuros pais estariam a aplicar a mesma mentalidade tecnocrática às crianças humanas: elas seriam os seus artefactos.
Um tal arranjo é profundamente desumanizador, independentemente da qualidade do produto. A clonagem em massa do mesmo indivíduo torna este aspecto bastante claro, mas a violação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana está presente num único dos clones. A procriação desumanizada até à forma de manufactura é depois rebaixada à forma de mercantilização, o resultado inevitável de permitir a produção de crianças segundo os padrões comerciais. As companhias de biotecnologia genética e reprodutiva já são empresas em expansão, mas passarão para a órbita comercial logo que o Projecto Genoma Humano esteja concluído. O aumento da oferta provocará o aumento exponencial da procura. Mesmo antes de sermos capazes de clonar humanos, as empresas estabelecidas já terão investido na cultura de óvulos obtidos através de autópsias ou de cirurgias uterinas, práticas de manipulação genética de embriões, e iniciado o armazenamento de tecidos de futuros dadores. Através do pagamento a mães de aluguer e da compra e venda de tecidos e embriões, tabelados de acordo com o mérito do dador, a mercantilização das vidas humanas nascidas será imparável.
Finalmente e talvez mais importante, a prática da clonagem humana através da transferência do núcleo – tal como outras formas antecipadas de manipulação genética da geração seguinte – encerrará e agravará uma incompreensão profunda e danosa do significado de ter um filho e das relações pais-filhos. Quando um casal decide procriar, está a dizer sim à emergência de uma nova vida em toda a sua originalidade, está a dizer sim a não só a ter uma criança, mas a aceitar tacitamente o que ela venha a ser. Ao aceitar a nossa finitude e ao abrir-nos à nossa substituição, estamos a confessar tacitamente os limites do nosso controlo. Nesta forma omnipresente da natureza, acolher o futuro através da procriação significa precisamente que ao renunciar ao nosso poder, estamos a afirmar a nossa quota de esperança naquilo que pode vir a ser a imortalidade da vida e da espécie humana. Isto quer dizer que os nossos filhos não são nossos filhos: não são propriedade nossa, não os possuímos. Nem é suposto que vivam as nossas vidas por nós, ou a de qualquer outra pessoa a não ser a deles. Para que não haja dúvidas, procuramos orientá-los para que vivam à sua maneira, garantindo-lhes não só a vida, mas a educação, o amor, e um modo de vida; para que não haja dúvidas, transportam a nossa esperança de que vivam uma vida boa e próspera, permitindo-nos de alguma forma transcender as nossas limitações. Ainda assim, a sua originalidade e independência genética são a previsão natural da verdade profunda que têm uma vida própria e única. Emergem de um passado, mas estão lançados num futuro desconhecido.
Muito mal já foi feito pelos pais que tentam viver uma vida de faz de conta através dos seus filhos. Os filhos são frequentemente empurrados para concretizar os sonhos desfeitos de pais infelizes; o João Ninguém Júnior ou o João Ninguém Júnior III vivem o fardo de transportar o nome do seu ascendente. Ainda assim, se a maioria dos pais deposita esperança nos seus filhos, os pais de clones terão expectativas. Na clonagem, pais super-protectores dão no início um passo decisivo que contradiz o significado global da natureza aberta e projectada para o futuro das relações pais-filhos. É dado à criança um genótipo que já viveu, com a expectativa plena que a impressão digital da vida passada venha a controlar a vida a vir. A clonagem é inerentemente despótica, pois procura construir o filho de um dado indivíduo (ou o filho de outro indivíduo qualquer) a sua própria imagem (ou à imagem de quem se queira) e condicionar o seu futuro à sua vontade. Em alguns casos, o despotismo pode ser maleável e benevolente. Noutros, será prejudicial e absolutamente tirânico. Mas o despotismo – o controlo de um indivíduo, segundo a vontade de um outro – acontecerá inevitavelmente.»
Primeiro, uma objecção formal importante: qualquer tentativa para clonar um ser humano constitui uma experiência anti-ética para a criança que irá nascer. Tal como indicam as experiências com animais (sapos e ovelhas), há risco grave de acidente e deformações. Mais do que isso, por causa do significado da clonagem, não podemos presumir que uma criança clonada no futuro venha a consentir em ser um clone, mesmo um que fosse saudável. Assim, de um ponto de vista ético, não sequer necessário saber se a clonagem humana é viável.
É claro que compreendo as dificuldades filosóficas de tentar comparar uma vida com deficiências com uma inexistente. Diversos bioeticistas, orgulhosos da sua clarividência filosófica, servem-se deste enigma para desvalorizar afirmações como as que podemos prejudicar uma criança na sua concepção, precisamente porque seria apenas graças a essa concepção que essa criança estaria viva para se queixar. Mas o senso comum diz-nos que não há razão para recear estes sofismas. Já que sabemos seguramente que as pessoas podem prejudicar ou até mutilar uma criança no próprio acto da sua concepção através, digamos, da transmissão materna do vírus da SIDA, ou da transmissão materna da dependência de heroína, ou, o que é mais discutível, por serem bastardos ou não possuírem qualquer capacidade para cuidar de si convenientemente. E nós acreditamos que fazê-lo intencionalmente, ou negligentemente, é injustificável e claramente anti-ético.
A objecção acerca da impossibilidade de presumir o consentimento pode até estender-se para além do aspecto óbvio e suficiente que o clone, se fosse depois questionado, poderia realmente lamentara sua condição. Em causa não estão só os benefícios e os danos, mas as dúvidas sobre a própria independência necessária para dar o adequado (mesmo retroactivo) consentimento, que é não só a capacidade para escolher, mas a disposição e a capacidade para escolher livremente e bem. Não é de forma alguma claro em que medida um clone seria um agente moral, pois, como veremos, no próprio facto da clonagem, e sobretudo na sua educação como clone, os seus produtores podem subverter a sua independência, começando com o aspecto que resulta de saber que seria uma surpresa imprevista, uma prenda para o mundo, em vez do resultado planeado do projecto engenhoso de alguém.
A clonagem cria problemas sérios de identidade e de individualidade. A pessoa clonada pode experienciar preocupações com a sua identidade particular, não porque o seu genótipo ou a sua aparência seriam idênticos ao de outro ser humano, mas neste caso, porque também poderia vir a ser gémea de uma pessoa que podia ser o seu “pai” ou “mãe” – se é que ainda seria possível chamar-lhes assim. Quais seriam os fardos psicológicos de vir a ser “filho” ou “pai” do seu gémeo? Para além disso, o indivíduo clonado carregaria um genótipo que já havia vivido. Não seria uma verdadeira surpresa para o mundo. As pessoas tenderiam a comparar permanente o desempenho da sua vida com a do seu alter ego. É verdade, a sua educação e as suas circunstâncias de vida seriam diferentes; genótipo não é destino. Ainda assim, podemos igualmente esperar a existência de esforços parentais ou outros para moldar a nova vida de acordo com o original - ou pelo menos para a estar sempre a comparar com a versão original. Se assim não fosse, por que razão clonariam a estrela do basquetebol, ou o matemático ou a rainha da beleza – ou mesmo o querido e velho pai?
Desde o nascimento da Dolly, que tem havido uma quantidade razoável de ambivalência relativamente à questão da identidade genética. Os especialistas têm-se apressado a garantir ao público que o clone nunca seria a mesma pessoa nem sentiria confusão quanto à sua identidade; como observei anteriormente, gostam de salientar que o clone do Mel Gibson não seria o Mel Gibson. É razoável. Todavia, está-se a esconder a verdade ao enfatizar a importância adicional do ambiente intra-uterino, da educação e do contexto social: é óbvio que o genótipo é bastante importante. Isso, afinal, é a única razão para clonar seres humanos ou ovelhas. A probabilidade do clone de Wilt Chamberlain vir a jogar na NBA são, presumo, infinitamente maiores do que as de clones de Robert Reich.
Curiosamente, esta conclusão apoia-se inadvertidamente numa ideia ética reafirmada pelos apoiantes da clonagem: não haverá clonagem sem o consentimento do dador. Embora se trate de um argumento liberal clássico, é seguramente bastante enigmático sobretudo por vir de pessoas (como Ruth Macklin) que insistem que o genótipo não é nem identidade nem individualidade e que negam que seja razoável que a criança possa vir a queixar-se do facto de ser uma cópia genética. Se o clone do Mel Gibson não seria o Mel Gibson, com base em quê poderia o Mel Gibson objectar contra a sua clonagem? Já se permite que os especialistas usem amostras de sangue e tecido para efeitos de investigação que não beneficiem as suas fontes: a minha queda de cabelo, a minha expectoração, a minha urina, e até os meus tecidos resultantes de biopsias não sou “eu” nem são meus. Os tribunais têm defendido que os benefícios ganhos através do uso que os cientistas fazem dos meus tecidos descartados já não me pertencem legalmente. Então por que não clonar sem consentimento – incluindo, presumo, clonar usando o corpo de alguém que já morreu? Que mal será feito ao dador, se o genótipo já não sou “eu”? Para dizer a verdade, a única justificação convincente para refutar é que o genótipo tem realmente algo a ver com a identidade, e todos sabem disso. Se assim não fosse, como poderia o Michael Jordan recusar que “o” clonassem, digamos, a partir de células retiradas de um pedaço “perdido” da sua pele? A insistência no consentimento do dador revela inadvertidamente o problema da identidade em toda a clonagem.
A peculiaridade genética simboliza não apenas a unicidade de cada vida humana e a independência dos pais que cada criança humana correctamente alcança. Também pode ser um apoio importante para viver uma vida valiosa e digna. Estes argumentos aplicam-se de forma consistente a replicação de indivíduos humanos em larga escola. Mas, na minha opinião, são suficientes até para refutar a primeira tentativa de clonar um ser humano. De forma alguma se deve esquecer que são seres humanos relativamente aos quais as nossas fantasias ou meras brincadeiras genéticas estão a ser realizadas.
Uma identidade (individualidade) psíquica perturbada, baseada na mais que evidente identidade (mesmidade) genética, ficará bastante pior em função da clara confusão da sua identidade social e dos seus laços familiares. Porque, como já salientei, a clonagem confunde radicalmente a linhagem e as relações sociais, tanto nos “filhos” como nos “pais”. Como salienta o bioeticista James Nelson, uma criança do sexo feminino clonada da sua “mãe” pode desenvolver um desejo de se relacionar com o seu “pai” e pode compreensivelmente procurar o pai da sua “mãe”, a qual é afinal a sua gémea biológica. Será que o “avô”, que havia pensado que os seus deveres parentais estavam terminados, ficaria contente ao descobrir que o seu clone o procurava para reclamar atenção e apoio?
A identidade social e os laços sociais de relacionamento e responsabilidade estão amplamente ligados e apoiados nas relações biológicas. Por todo o lado, os tabus sociais sobre o incesto (e o adultério) servem para manter claras as relações de parentesco (particularmente as relações entre pais e filhos), bem como para evitar confundir a identidade social de pai-e-filho (ou de irmão-e-irmã) com a identidade de amantes, esposos, ou da coparentalidade. É verdade que a identidade social é alterada pela adopção (mas apenas porque isso serve os melhores interesses de uma criança já nascida: não deliberamos para produzir uma criança para adopção). É verdade que a inseminação artificial e a fertilização in vitro com um dador de esperma, ou com a doação da totalidade do embrião, são já de algum modo formas de “adopção pré-natal” – o que não deixa de ser uma prática problemática. Todavia, mesmo aqui há em cada caso (tal como na reprodução sexual) um macho conhecido que doa o esperma e uma fêmea conhecida que doa o óvulo – um pai genético e uma mãe genética – se houver alguém interessado em sabê-lo (como acontece frequentemente com as crianças adoptadas) que seja geneticamente aparentado.
Contudo, no caso da clonagem só há um “progenitor”. A situação habitual e triste das crianças com “um só pai” é aqui deliberadamente planeada e de forma vingativa. No caso da auto-clonagem, a “descendência” é, antes do mais, um gémeo de si próprio; pelo que o resultado pavoroso do incesto – ser pai de um dos irmãos – é aqui deliberado, embora sem o acto do coito. Mais ainda, todas as outras relações serão confundidas. O que significará pai, avô, tia, primo e irmã? Quem transportará esses laços e obrigações? Que identidade social manterá com um dos lados – do “pai” ou da “mãe” – necessariamente excluídos? Não é resposta dizer que a nossa sociedade, com os seus elevados índices de divórcios, segundos casamentos, adopções, filhos fora do casamento, e tudo o mais, já confunde a linhagem, as relações de parentesco e as responsabilidades para com os filhos (e outros), a não ser que queríamos discutir que isto é, do ponto de vista dos filhos, uma estado de coisas preferível.
A clonagem humana também representará um passo gigantesco para transformar a humanidade num produto de engenharia, procriação e manufactura (literalmente em “artesanato”), um processo que já se iniciou com a fertilização in vitro e os testes genéticos com embriões. Com a clonagem, não é só o processo, mas a totalidade da impressão genética de um indivíduo clonado, que será seleccionado e determinado por artesãos humanos. Para que seja seguro, o desenvolvimento subsequente acontecerá de acordo com os processos naturais; e a descendência resultante ainda será reconhecidamente humana. Mas estaríamos a dar um passo gigantesco para transformar pura e simplesmente a própria humanidade em mais uma das suas produções. A natureza humana torna-se simplesmente na última parte da natureza a sucumbir ao projecto tecnológico, que transforma toda a natureza em matéria-prima à disposição do homem, para ser homogeneizada pela nossa racionalidade técnica em conformidade com os preconceitos da moda.
Em que difere a produção da humanidade? Na procriação natural, os seres humanos juntam-se, um macho e uma fêmea complementares, para dar existência a um outro ser que se formou, exactamente da mesma forma que nós, pelo que nós somos: vivendo, ora de forma perecível, ora de forma erótica, como seres humanos. Na reprodução através da clonagem, pelo contrário, e nas formas mais avançadas de manufactura a que inevitavelmente conduzirá, damos existência não pelo que somos, mas pelo que pretendemos e planeamos. Tal como acontece com qualquer produto da humanidade, por mais excelente que seja, o artífice está acima dele, não como igual mas como superior, transcendendo-o através da sua vontade e do seu processo criativo. Os cientistas que clonam animais deixam claro que estão empenhados numa tarefa instrumental; os animais são, desde o início, produzidos como meios ao serviço dos objectivos da racionalidade humana. Na clonagem humana, os cientistas e os futuros pais estariam a aplicar a mesma mentalidade tecnocrática às crianças humanas: elas seriam os seus artefactos.
Um tal arranjo é profundamente desumanizador, independentemente da qualidade do produto. A clonagem em massa do mesmo indivíduo torna este aspecto bastante claro, mas a violação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana está presente num único dos clones. A procriação desumanizada até à forma de manufactura é depois rebaixada à forma de mercantilização, o resultado inevitável de permitir a produção de crianças segundo os padrões comerciais. As companhias de biotecnologia genética e reprodutiva já são empresas em expansão, mas passarão para a órbita comercial logo que o Projecto Genoma Humano esteja concluído. O aumento da oferta provocará o aumento exponencial da procura. Mesmo antes de sermos capazes de clonar humanos, as empresas estabelecidas já terão investido na cultura de óvulos obtidos através de autópsias ou de cirurgias uterinas, práticas de manipulação genética de embriões, e iniciado o armazenamento de tecidos de futuros dadores. Através do pagamento a mães de aluguer e da compra e venda de tecidos e embriões, tabelados de acordo com o mérito do dador, a mercantilização das vidas humanas nascidas será imparável.
Finalmente e talvez mais importante, a prática da clonagem humana através da transferência do núcleo – tal como outras formas antecipadas de manipulação genética da geração seguinte – encerrará e agravará uma incompreensão profunda e danosa do significado de ter um filho e das relações pais-filhos. Quando um casal decide procriar, está a dizer sim à emergência de uma nova vida em toda a sua originalidade, está a dizer sim a não só a ter uma criança, mas a aceitar tacitamente o que ela venha a ser. Ao aceitar a nossa finitude e ao abrir-nos à nossa substituição, estamos a confessar tacitamente os limites do nosso controlo. Nesta forma omnipresente da natureza, acolher o futuro através da procriação significa precisamente que ao renunciar ao nosso poder, estamos a afirmar a nossa quota de esperança naquilo que pode vir a ser a imortalidade da vida e da espécie humana. Isto quer dizer que os nossos filhos não são nossos filhos: não são propriedade nossa, não os possuímos. Nem é suposto que vivam as nossas vidas por nós, ou a de qualquer outra pessoa a não ser a deles. Para que não haja dúvidas, procuramos orientá-los para que vivam à sua maneira, garantindo-lhes não só a vida, mas a educação, o amor, e um modo de vida; para que não haja dúvidas, transportam a nossa esperança de que vivam uma vida boa e próspera, permitindo-nos de alguma forma transcender as nossas limitações. Ainda assim, a sua originalidade e independência genética são a previsão natural da verdade profunda que têm uma vida própria e única. Emergem de um passado, mas estão lançados num futuro desconhecido.
Muito mal já foi feito pelos pais que tentam viver uma vida de faz de conta através dos seus filhos. Os filhos são frequentemente empurrados para concretizar os sonhos desfeitos de pais infelizes; o João Ninguém Júnior ou o João Ninguém Júnior III vivem o fardo de transportar o nome do seu ascendente. Ainda assim, se a maioria dos pais deposita esperança nos seus filhos, os pais de clones terão expectativas. Na clonagem, pais super-protectores dão no início um passo decisivo que contradiz o significado global da natureza aberta e projectada para o futuro das relações pais-filhos. É dado à criança um genótipo que já viveu, com a expectativa plena que a impressão digital da vida passada venha a controlar a vida a vir. A clonagem é inerentemente despótica, pois procura construir o filho de um dado indivíduo (ou o filho de outro indivíduo qualquer) a sua própria imagem (ou à imagem de quem se queira) e condicionar o seu futuro à sua vontade. Em alguns casos, o despotismo pode ser maleável e benevolente. Noutros, será prejudicial e absolutamente tirânico. Mas o despotismo – o controlo de um indivíduo, segundo a vontade de um outro – acontecerá inevitavelmente.»
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