«VIII O Uno e o Múltiplo
Uma crença, mais do que qualquer outra, é responsável pela matança de indivíduos nos altares dos grandes ideais históricos - justiça, progresso, a felicidade das futuras gerações, a missão ou emancipação sagrada de uma nação, raça ou classe, ou até a própria liberdade, que exige o sacrifício dos indivíduos para a liberdade da sociedade. Tal crença é a de que em algum lugar, no passado ou no futuro, na revelação divina ou na mente de um pensador individual, nas declarações da história ou da ciência, ou no coração simples de um homem bom não corrompido, existe uma solução final. Essa antiga fé baseia-se na convicção de que todos os valores positivos em que os homens têm acreditado devem afinal ser compatíveis, e talvez até uns originarem os outros. “A natureza une a verdade, a felicidade e a virtude numa cadeia indissolúvel", disse um dos melhores homens que já viveu e que falou em termos semelhantes de liberdade, igualdade e justiça[1].
Mas será isso verdade? É lugar-comum que nem a igualdade política, nem a organização eficiente, nem a justiça social são compatíveis com mais do que um pouco de liberdade individual, e certamente não são compatíveis com um laissez-faire irrestrito; que a justiça e a generosidade, as lealdades públicas e privadas, as disputas do génio e as reivindicações da sociedade podem entrar em violento conflito mútuo. E não é grande a distância disso para a generalização de que nem todas as coisas boas são compatíveis, muito menos todos os ideais da humanidade. Mas em algum lugar - é o que nos dirão - e de algum modo deve ser possível que todos esses valores coexistam, pois, se assim não for, o universo não é um cosmos, nem uma harmonia; se assim não for, os conflitos de valor podem ser um elemento intrínseco e inamovível na vida humana. Admitir que a realização de alguns dos nossos ideais é capaz, em princípio, de impossibilitar a realização de outros é dizer que a noção de realização humana total é uma contradição formal, uma quimera metafisica. (…)
Mas, se não temos uma garantia a priori da proposição de que uma harmonia total dos valores verdadeiros deve ser encontrada em algum lugar - talvez em algum reino ideal cujas características não podemos, no nosso estado finito, nem sequer conceber -, devemos voltar aos recursos comuns da observação empírica e do conhecimento humano comum. E esses não nos dão nenhuma justificativa para supor (ou até compreender o que significaria dizer) que todas as coisas boas ou, no caso, todas as coisas más são conciliáveis umas com as outras. O mundo que encontramos na experiência comum é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas, e a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras. Na verdade, é por causa dessa situação que os homens atribuem um valor tão imenso à liberdade de escolha; pois, se tivessem a certeza de que em algum estado perfeito, alcançável pelos homens na Terra, nenhum dos fins por eles procurados jamais entraria em conflito, a necessidade e a agonia da escolha desapareceriam, e com elas a importância central da liberdade de escolha. Qualquer método para tornar esse estado final mais próximo pareceria então plenamente justificado, não importa quanta liberdade fosse sacrificada para estimular o seu avanço.
Uma certeza dogmática desse tipo, não tenho dúvida, é que tem sido responsável pela convicção profunda, serena e inabalável, nas mentes de alguns dos mais impiedosos tiranos e perseguidores na história, de que os actos que praticaram eram plenamente justificados pelo seu propósito. Não afirmo que o ideal de perfeição própria - seja para indivíduos, nações, igrejas ou classes - deva ser condenado em si mesmo, nem que a linguagem usada na sua defesa tenha sido em todos os casos o resultado de um emprego confuso e fraudulento das palavras, ou a consequência de uma perversidade moral ou intelectual. Na verdade, tenho tentado mostrar que é a noção de liberdade no seu sentido "positivo" que se encontra no centro das disputas por um auto-governo nacional ou social que animam os movimentos públicos mais poderosos e moralmente justos do nosso tempo, e que não reconhecer tal coisa é compreender erradamente os factos e as ideias mais vitais da nossa era. Mas parece-me igualmente que a crença de que é em princípio possível encontrar alguma fórmula única, pela qual todos os diversos fins humanos possam ser harmoniosamente realizados, é demonstrativamente falsa. Se, como acredito, todos os fins humanos são muitos, e nem todos são em princípio compatíveis uns com os outros, então a possibilidade de conflito - e de tragédia - jamais pode ser inteiramente eliminada da vida humana, pessoal ou social. A necessidade de escolher entre reivindicações absolutas é, portanto, uma característica inevitável da condição humana.[…]»
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[1] Condorcet, de cujo Esquisse estas palavras são citadas (Esquisse d’un tableau historique dês progrès de l’esprit humais, ed. O. H. Prior e Y. Belaval, Paris, 1970, p. 228).
Uma crença, mais do que qualquer outra, é responsável pela matança de indivíduos nos altares dos grandes ideais históricos - justiça, progresso, a felicidade das futuras gerações, a missão ou emancipação sagrada de uma nação, raça ou classe, ou até a própria liberdade, que exige o sacrifício dos indivíduos para a liberdade da sociedade. Tal crença é a de que em algum lugar, no passado ou no futuro, na revelação divina ou na mente de um pensador individual, nas declarações da história ou da ciência, ou no coração simples de um homem bom não corrompido, existe uma solução final. Essa antiga fé baseia-se na convicção de que todos os valores positivos em que os homens têm acreditado devem afinal ser compatíveis, e talvez até uns originarem os outros. “A natureza une a verdade, a felicidade e a virtude numa cadeia indissolúvel", disse um dos melhores homens que já viveu e que falou em termos semelhantes de liberdade, igualdade e justiça[1].
Mas será isso verdade? É lugar-comum que nem a igualdade política, nem a organização eficiente, nem a justiça social são compatíveis com mais do que um pouco de liberdade individual, e certamente não são compatíveis com um laissez-faire irrestrito; que a justiça e a generosidade, as lealdades públicas e privadas, as disputas do génio e as reivindicações da sociedade podem entrar em violento conflito mútuo. E não é grande a distância disso para a generalização de que nem todas as coisas boas são compatíveis, muito menos todos os ideais da humanidade. Mas em algum lugar - é o que nos dirão - e de algum modo deve ser possível que todos esses valores coexistam, pois, se assim não for, o universo não é um cosmos, nem uma harmonia; se assim não for, os conflitos de valor podem ser um elemento intrínseco e inamovível na vida humana. Admitir que a realização de alguns dos nossos ideais é capaz, em princípio, de impossibilitar a realização de outros é dizer que a noção de realização humana total é uma contradição formal, uma quimera metafisica. (…)
Mas, se não temos uma garantia a priori da proposição de que uma harmonia total dos valores verdadeiros deve ser encontrada em algum lugar - talvez em algum reino ideal cujas características não podemos, no nosso estado finito, nem sequer conceber -, devemos voltar aos recursos comuns da observação empírica e do conhecimento humano comum. E esses não nos dão nenhuma justificativa para supor (ou até compreender o que significaria dizer) que todas as coisas boas ou, no caso, todas as coisas más são conciliáveis umas com as outras. O mundo que encontramos na experiência comum é um mundo em que somos confrontados com escolhas entre fins igualmente supremos e reivindicações igualmente absolutas, e a realização de algumas dessas escolhas e reivindicações deve envolver inevitavelmente o sacrifício de outras. Na verdade, é por causa dessa situação que os homens atribuem um valor tão imenso à liberdade de escolha; pois, se tivessem a certeza de que em algum estado perfeito, alcançável pelos homens na Terra, nenhum dos fins por eles procurados jamais entraria em conflito, a necessidade e a agonia da escolha desapareceriam, e com elas a importância central da liberdade de escolha. Qualquer método para tornar esse estado final mais próximo pareceria então plenamente justificado, não importa quanta liberdade fosse sacrificada para estimular o seu avanço.
Uma certeza dogmática desse tipo, não tenho dúvida, é que tem sido responsável pela convicção profunda, serena e inabalável, nas mentes de alguns dos mais impiedosos tiranos e perseguidores na história, de que os actos que praticaram eram plenamente justificados pelo seu propósito. Não afirmo que o ideal de perfeição própria - seja para indivíduos, nações, igrejas ou classes - deva ser condenado em si mesmo, nem que a linguagem usada na sua defesa tenha sido em todos os casos o resultado de um emprego confuso e fraudulento das palavras, ou a consequência de uma perversidade moral ou intelectual. Na verdade, tenho tentado mostrar que é a noção de liberdade no seu sentido "positivo" que se encontra no centro das disputas por um auto-governo nacional ou social que animam os movimentos públicos mais poderosos e moralmente justos do nosso tempo, e que não reconhecer tal coisa é compreender erradamente os factos e as ideias mais vitais da nossa era. Mas parece-me igualmente que a crença de que é em princípio possível encontrar alguma fórmula única, pela qual todos os diversos fins humanos possam ser harmoniosamente realizados, é demonstrativamente falsa. Se, como acredito, todos os fins humanos são muitos, e nem todos são em princípio compatíveis uns com os outros, então a possibilidade de conflito - e de tragédia - jamais pode ser inteiramente eliminada da vida humana, pessoal ou social. A necessidade de escolher entre reivindicações absolutas é, portanto, uma característica inevitável da condição humana.[…]»
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[1] Condorcet, de cujo Esquisse estas palavras são citadas (Esquisse d’un tableau historique dês progrès de l’esprit humais, ed. O. H. Prior e Y. Belaval, Paris, 1970, p. 228).
Berlin, I. (2000).The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays. London: Farrar, Straus & Giroux , pp. 191-241 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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