«[…] [Será] verdade (…) que a igualdade básica, quando enriquecida na substância e objectivada nos direitos formais de cidadania, é consistente com as desigualdades de classe social? Vou sugerir que a nossa sociedade assume hoje que são ainda ambas compatíveis, tanto mais que a própria cidadania se tornou ela própria, em certos aspectos, no arquitecto da desigualdade social legítima. Continuará a ser verdade que a igualdade básica pode ser criada e preservada sem invadir a liberdade do mercado competitivo? Obviamente que não é verdade (…) mas é igualmente óbvio que o mercado continua a funcionar – dentro de limites. Parece que pode haver aqui princípios conflituantes que recomendam um exame. E, em terceiro lugar, que efeito terá no mercado uma mudança dos deveres para os direitos? Será esta uma característica inevitável da cidadania moderna – inevitável ou irreversível? Por último, (…) perguntarei se deve haver limites que a viragem moderna para a igualdade social não possa, ou não consiga, ultrapassar, e não estou a pensar nos custos económicos (deixarei essa questão vital para os economistas), mas nos limites inerentes aos princípios que inspiram essa viragem. Mas a viragem moderna para a igualdade social é, acredito, a derradeira fase de evolução da cidadania que tem estado em contínuo progresso há cerca de duzentos e cinquenta anos. A minha primeira tarefa, então, deve ser a d preparar o solo para atacar os problemas hodiernos escavando algum tempo no subsolo da história [inglesa].
O desenvolvimento da cidadania nos finais do século XIX
[…] [P]roponho que se divida a cidadania em três partes. Mas a análise é, neste caso, mais claramente ditada pela história do que pela lógica. Chamarei a estas três partes, ou elementos, civil, político e social. O elemento civil é composto pelos direitos necessários à liberdade individual – liberdade da pessoa; liberdade de expressão, pensamento, e culto; o direito à propriedade individual e a celebrar contratos válidos; e o direito à justiça. Este último é de uma ordem diferente dos outros, porque corresponde ao direito de defender e reclamar todos os direitos individuais em termos de igualdade relativamente aos outros e à aplicação devida da lei. Isto mostra-nos que as instituições mais directamente associadas aos direitos civis são os tribunais. Por elemento político entendo o direito de participação no exercício do poder político, como membro de um corpo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros desse corpo. As instituições correspondentes são o parlamento e os conselhos de governo local. Por elemento social entendo a totalidade do âmbito que abrange o direito a um nível de bem-estar e segurança mínimo e o direito a partilhar a totalidade da herança social e a viver uma vida civilizada em conformidade com os padrões sociais dominantes. As instituições que estão mais proximamente aparentadas com este elemento são o sistema educacional e os serviços sociais[1].
Nos primeiros tempos, estas três dimensões estavam reunidas numa única linha. Os direitos estavam misturados porque as instituições estavam amalgamadas. Maitland disse que “quanto mais recuamos na nossa história mais difícil se torna traçar linhas simples de demarcação entre as diversas funções do Estado: a mesma instituição é a assembleia legítima, o conselho de governo e o tribunal… Em todo o lado, à medida que passamos do antigo para o moderno, presenciamos aquilo que a filosofia em voga chama de diferenciação”[2]. Maitland está aqui a referir-se à fusão das instituições políticas e civis com os direitos. Mas os direitos sociais de um homem também faziam parte dessa mesma amálgama, e derivavam do mesmo estatuto que determinava o lugar e o tipo de justiça que podia obter, e o modo como podia participar na administração dos assuntos da comunidade a que pertencia. Mas este estatuto não era equivalente ao sentido moderno de cidadania. Nas sociedades feudais, o estatuto era a marca central de classe e a medida da desigualdade. Não havia uma colecção de direitos e deveres uniforme que todos os homens – nobres ou comuns, livres ou servos – possuíssem em virtude da sua pertença a uma sociedade. Não havia, neste sentido, um princípio de igualdade dos cidadãos para opor ao princípio da desigualdade de classe. Nas cidades medievais, por outro lado, podemos encontrar exemplos de genuína e igual cidadania. Mas os seus direitos e deveres específicos eram estritamente locais, enquanto que a história da cidadania que pretendo descrever é, por definição, nacional.
A sua evolução envolveu um processo duplo, de fusão e de separação. A fusão era geográfica, a separação era funcional. O primeiro passo decisivo foi dado no século XII, quando se estabeleceu a justiça real com poder efectivo para definir e defender os direitos civis do indivíduo – tal como eram então entendidos – baseados, não no costume local, mas na lei comum do país. As instituições dos tribunais embora especializadas, eram nacionais. Seguiu-se o Parlamento, que concentrou em si os poderes políticos do governo nacional acabando por conservar apenas numa quantidade residual as funções judiciais que pertenciam anterior e formalmente à Curia Regis, o “tipo de protoplasma constitucional a partir do qual evoluíram com o tempo os diversos conselhos da coroa, as casas do parlamento e os tribunais”[3]. Finalmente, os direitos sociais que se enraízam na pertença a aldeias, às cidades, às associações, foram gradualmente dissolvidos pelas mudanças económicas até que nada mais restou do que a Lei dos Pobres, uma vez mais uma instituição especializada que adquiriu uma fundação nacional, embora continuasse a ser localmente administrada.
Seguiram-se duas importantes consequências. Primeiro, quando as instituições de que os três elementos da cidadania dependiam se separaram, isso acabou por permitir que cada um corresse individualmente, à sua própria velocidade e em função dos seus próprios princípios. Muito aconteceu nesta corrida, e foi só neste século (…) que os três corredores se aproximaram entre si.
Segundo, as instituições nacionais e especializadas já não podiam pertencer tão intimamente à vida dos grupos sociais que serviam como as que possuíam um carácter local e geral. O distanciamento do parlamento deveu-se à mera dimensão do seu eleitorado; o distanciamento dos tribunais, ao tecnicismo da lei e dos seus procedimentos, o que obrigou que o cidadão a recorrer a especialistas na lei para aconselhamento quanto à natureza dos seus direitos e para o auxiliar a obtê-los. Tem sido reiteradamente sublinhado que, na Idade Média, a participação nos assuntos públicos era mais um dever do que um direito. Os homens deviam apelar e servir o tribunal apropriado à sua classe e ao seu bairro. O tribunal pertencia-lhes e eles ao tribunal, e tinham acesso a ele porque era necessário e porque conheciam as suas competências. Mas o resultado do processo simultâneo de fusão e separação foi que o dispositivo que permitia aceder às instituições de que dependiam os direitos de cidadania tinham que ser renovados. No caso dos direitos políticos, a história é a da concessão familiar e a da qualificação da pertença ao parlamento. No caso dos direitos civis, a questão liga-se a jurisdição dos diversos tribunais, aos privilégios da profissão legal, mas sobretudo à capacidade de pagar os custos da litigância. No caso dos direitos sociais, o centro do palco foi ocupado pela Lei da Transferência e da Expropriação[4] e pelas diversas formas intermédias de aplicação.
Quando os três elementos iniciaram a sua corrida individual, podemos dizer que foi por pouco tempo. Tão completo foi o seu divórcio que é possível, sem violentar demasiado o rigor histórico, identificar o seu estado embrionário em séculos diferentes – os direitos civis no século XVIII, os políticos no século XIX, e os sociais no século XX. É certo que estes períodos devem ser encarados com razoável elasticidade, e existem alguns sobreposições evidentes, especialmente no caso dos últimos dois.»
A sua evolução envolveu um processo duplo, de fusão e de separação. A fusão era geográfica, a separação era funcional. O primeiro passo decisivo foi dado no século XII, quando se estabeleceu a justiça real com poder efectivo para definir e defender os direitos civis do indivíduo – tal como eram então entendidos – baseados, não no costume local, mas na lei comum do país. As instituições dos tribunais embora especializadas, eram nacionais. Seguiu-se o Parlamento, que concentrou em si os poderes políticos do governo nacional acabando por conservar apenas numa quantidade residual as funções judiciais que pertenciam anterior e formalmente à Curia Regis, o “tipo de protoplasma constitucional a partir do qual evoluíram com o tempo os diversos conselhos da coroa, as casas do parlamento e os tribunais”[3]. Finalmente, os direitos sociais que se enraízam na pertença a aldeias, às cidades, às associações, foram gradualmente dissolvidos pelas mudanças económicas até que nada mais restou do que a Lei dos Pobres, uma vez mais uma instituição especializada que adquiriu uma fundação nacional, embora continuasse a ser localmente administrada.
Seguiram-se duas importantes consequências. Primeiro, quando as instituições de que os três elementos da cidadania dependiam se separaram, isso acabou por permitir que cada um corresse individualmente, à sua própria velocidade e em função dos seus próprios princípios. Muito aconteceu nesta corrida, e foi só neste século (…) que os três corredores se aproximaram entre si.
Segundo, as instituições nacionais e especializadas já não podiam pertencer tão intimamente à vida dos grupos sociais que serviam como as que possuíam um carácter local e geral. O distanciamento do parlamento deveu-se à mera dimensão do seu eleitorado; o distanciamento dos tribunais, ao tecnicismo da lei e dos seus procedimentos, o que obrigou que o cidadão a recorrer a especialistas na lei para aconselhamento quanto à natureza dos seus direitos e para o auxiliar a obtê-los. Tem sido reiteradamente sublinhado que, na Idade Média, a participação nos assuntos públicos era mais um dever do que um direito. Os homens deviam apelar e servir o tribunal apropriado à sua classe e ao seu bairro. O tribunal pertencia-lhes e eles ao tribunal, e tinham acesso a ele porque era necessário e porque conheciam as suas competências. Mas o resultado do processo simultâneo de fusão e separação foi que o dispositivo que permitia aceder às instituições de que dependiam os direitos de cidadania tinham que ser renovados. No caso dos direitos políticos, a história é a da concessão familiar e a da qualificação da pertença ao parlamento. No caso dos direitos civis, a questão liga-se a jurisdição dos diversos tribunais, aos privilégios da profissão legal, mas sobretudo à capacidade de pagar os custos da litigância. No caso dos direitos sociais, o centro do palco foi ocupado pela Lei da Transferência e da Expropriação[4] e pelas diversas formas intermédias de aplicação.
Quando os três elementos iniciaram a sua corrida individual, podemos dizer que foi por pouco tempo. Tão completo foi o seu divórcio que é possível, sem violentar demasiado o rigor histórico, identificar o seu estado embrionário em séculos diferentes – os direitos civis no século XVIII, os políticos no século XIX, e os sociais no século XX. É certo que estes períodos devem ser encarados com razoável elasticidade, e existem alguns sobreposições evidentes, especialmente no caso dos últimos dois.»
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[1] Por esta terminologia, o que os economistas por vezes chamam “ganhos decorrentes dos direitos civis” passará a ser chamado “ganhos decorrentes dos direitos sociais”. Cfr. H. Dalton, Some aspects of the inequality of incomes in modern communities (London: Routledge, 1920), part. 3, Capítulos 3 e 4.
[2] F. Maitland, Constitucional History of England (Cambridge; Cambridge University Press), p. 105.
[3] A. F. Pollard, Evolution of Parliament (London: Logmans, 1920), p. 25.
[4] No original “Law of Settlement and Removal” (Nota do tradutor).
[1] Por esta terminologia, o que os economistas por vezes chamam “ganhos decorrentes dos direitos civis” passará a ser chamado “ganhos decorrentes dos direitos sociais”. Cfr. H. Dalton, Some aspects of the inequality of incomes in modern communities (London: Routledge, 1920), part. 3, Capítulos 3 e 4.
[2] F. Maitland, Constitucional History of England (Cambridge; Cambridge University Press), p. 105.
[3] A. F. Pollard, Evolution of Parliament (London: Logmans, 1920), p. 25.
[4] No original “Law of Settlement and Removal” (Nota do tradutor).
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