«VI. A BASE DO VALOR
A Questão de Eutífron
Algumas linhas de pensamento tentam basear a ética ou o valor em fundamentos religiosos: o bem ou o que se pode valorar ou o que é moralmente exigido é o que Deus aprova, ou que quer façamos, ou o que ordena. Todas estas perspectivas enfrentam a questão apresentada pela primeira vez por Sócrates no diálogo de Platão Eutífron: Será alguma coisa boa porque Deus a aprova, ou aprová-la-á Deus porque é boa?
Se a base para a aprovação divina de uma coisa é o seu carácter de bondade (o qual não deriva nem é sinónimo de aprovação divina), se Deus aprova essa coisa em virtude da sua bondade, então existe uma noção independente ou padrão de bondade na qual o juízo de Deus se enquadra, mais do que cria. Neste caso, a atitude de Deus em relação a algo não seria a base da sua qualidade moral ou de valor; a verdade fundamental sobre a bondade, valor e a ética não seria teológica. Por outro lado, se algo é bom porque Deus o aprova, se se torna bom em virtude de ser aprovado por Deus, então o valor e a ética terão base divina. Porém, surgirá a questão de por que o aprova Deus – não, por hipótese, porque é bom – e a de se Deus poderia ter aprovado outra coisa qualquer, a situação oposta, e caso o tivesse feito, se isso teria sido considerado bom, em lugar disto. (John Calvin defendeu que a predestinação não era injusta, com base no facto de que a justiça não existe como um padrão independente de Deus, mas é criada e definida pelos actos de Deus.) A última alternativa, de que o bem poderia ter sido diferente e sê-lo-ia se Deus tivesse escolhido e decidido de modo diferente, o que poderia bem ter acontecido, é deveras de mau gosto. Poderíamos até imaginar a questão de Platão transformada numa com a qual Deus se preocupa. Imaginemos Deus a ter que enfrentar um dilema semelhante ao que fechou a secção anterior. Serão os próprios actos de Deus e a sua própria existência valoráveis? Caso o sejam, será que isto decorre de um padrão externo independente dele (e por isso Deus sente-se coagido por ele?), ou de um padrão que ele próprio cria ou legisla – nesse caso está Deus satisfeito ao juntar-se a um clube que ele próprio fundou, para o qual ele formulou as condições para se ser sócio?
Haverá outra alternativa para uma ética baseada em teologia? Haverá algum modo que possibilite a Deus fazer o seu bolo e poder também dele desfrutar? Consideremos algumas possibilidades. Primeiro, poderíamos considerar que embora não existam quaisquer padrões pré-existentes de bondade ou valor, a aprovação divina não é arbitrária. Ele aprova algo atendendo à característica C que essa coisa possui; o facto de algo ter C, esse algo ele próprio, é bom em resultado dessa aprovação. O elo entre facto e valor passa pela ideia de aprovação divina. “Poderia Deus discordar de C, ou aprovar a sua ausência, e nesse caso, seria C mau, ou pelo menos falharia em ser bom?” Não está claro quão voluntárias são as aprovações de Deus. Uma perspectiva teológica poderia sustentar que Deus não poderia consentir de outro modo (mas não pela razão que Deus é necessariamente bom, e por isso deve apenas consentir o bem, uma vez que temos em consideração que a característica C não é um bem pré-existente), e que um tecido desta natureza com característica C só poderia levar à aprovação – talvez pelo facto de devermos aprovar coisas no sentido em que se assemelham a ele. Outra ideia defenderia que Deus podia aprovar de outro modo, mas que não o faria, novamente por causa do tecido da sua natureza com a característica C que consente. O que precisamos é de uma explicação do consentimento ou aprovação de Deus, que não se baseie na bondade já existente no objecto, que a torna não arbitrária. (E um teólogo poderia defender que tal explicação existe, sem ser capaz de especificar qual.) Deste modo, algo bloqueia o passo para a ideia de que “Deus poderia ter ordenado ou consentido a matança de pessoas para comer os seus corações e cérebros, e se o tivesse feito, isso seria correcto, bom e de valor.” Como resposta, podemos dizer que o não consentimento de Deus nesta situação não é arbitrário e ele não daria a sua aprovação. Além disso, se Deus tivesse que o aprovar, então, num mundo possível mais próximo no qual ele de facto o aprova, a explicação não-arbitrária da sua desaprovação é desconsiderada. Todavia, se as leis ou princípios gerais subjacentes à real desaprovação continuam a ser verdadeiros nestes mundos que se encontram próximos, então outra coisa qualquer tem que ser diferente aí – o comportamento ou estado teriam um carácter diferente, para alterar a desaprovação de Deus de acordo com os princípios que regulam a sua resposta não-arbitrária. (Ou então, nesse mundo mais próximo onde Deus o consente, os princípios que regulam a sua aprovação teriam mudado; assim poderíamos ultrapassar a questão de saber se, nesse caso, essa coisa diferente seria boa.)
Parece que, neste sentido, um teísta pode continuar a manter uma base teológica para a ética e os valores, mesmo face aos argumentos explosivos da questão de Eutífron; pode manter que algo é bom porque Deus ainda o aprova, atendendo ao facto de que o que Deus aprova tem uma explicação não-arbitrária, é preciso evitar os conjuntivos indesejáveis.* Contudo, enquanto que esta perspectiva coloca os valores no nosso mundo, baseados na aprovação divina, coloca Deus numa situação desprovida de valor, incapaz de se ver a si mesmo e à sua existência como tendo valor. Depois, tal como outros, ele poderia ver o valor como dependente da sua aprovação, e dessa forma ver-se como algo com valor. Mas isto não lhe dirá mais do que ele consente sobre si mesmo, que ele é o tipo de coisa que ele tende a aprovar com segurança. Não poderá mesmo ver o seu consentimento ou aprovação como aspectos valoráveis independentes. Haverá algum modo de a perspectiva teológica atribuir algum grau de independência ao valor, de modo a colocar o valor dentro da existência de Deus, e não o deixar apenas como uma mera consequência derivativa da sua aprovação?
Deus poderia escolher que existam valores, que se criem valores. Verá Deus a existência de valores como sendo algo melhor, mais valorável? Ainda não, porque ainda não existem valores. Mas será melhor que existam, de acordo com os que então já o são. Desta feita Deus cria valores, segundo os quais a existência desses mesmos valores tem ela própria valor, o seu acto de criar valores é valorável, a sua subsequente adesão a esses valores é sujeita a uma apreciação de valor, a sua existência é valorável, e assim por diante. Os valores criados validam a sua própria criação; eles atribuem valor ao facto de Deus os criar. Os valores não resultam da mera aprovação divina; ele escolhe criar valores, criá-los como valores.
Poderia Deus ter criado coisas diferentes como valores, e se ele tivesse optado de modo diferente, seriam os valores diferentes? Vimos como uma perspectiva teológica defendeu que, dada a sua natureza, Deus não escolheria de modo diferente. Há outra ideia a considerar: a natureza do valor limita aquilo que pode ser criado como valor. Na primeira parte deste Capítulo, listámos várias condições, constituintes da natureza do valor, num projecto que visava unicamente especificar o valor. Só algo que satisfizesse essas condições poderia ser valor; se apenas uma dessas coisas o fizer, por exemplo, o grau de unidade orgânica, então só isso pode constituir valor. (Todavia, reforçamos a ideia que permaneceria a outra questão de por que constitui isso um valor, de por que existe valor de qualquer modo.) Se supusermos que o valor é assim especificado de forma única (embora as suas várias combinações não o sejam – recordemos a secção sobre o pluralismo), então embora Deus possa decidir sobre a existência (ou não) de valor, não podia escolher que outra coisa qualquer fosse valor. A existência de valor é com ele, mas o carácter do valor é independente, e não está sujeito ao seu controlo ou escolha.
Na relação de Deus com o valor (do seu ponto de vista) a sua autonomia é preservada, uma vez que é de sua vontade que exista valor, porém também há um padrão independente de valor de acordo com o qual a sua existência e escolhas são valoráveis, um padrão que não é simplesmente determinado pelas suas preferências ou aprovação. Embora ele seja o fundador do clube, as condições de associação não são determinadas por ele.»
A Questão de Eutífron
Algumas linhas de pensamento tentam basear a ética ou o valor em fundamentos religiosos: o bem ou o que se pode valorar ou o que é moralmente exigido é o que Deus aprova, ou que quer façamos, ou o que ordena. Todas estas perspectivas enfrentam a questão apresentada pela primeira vez por Sócrates no diálogo de Platão Eutífron: Será alguma coisa boa porque Deus a aprova, ou aprová-la-á Deus porque é boa?
Se a base para a aprovação divina de uma coisa é o seu carácter de bondade (o qual não deriva nem é sinónimo de aprovação divina), se Deus aprova essa coisa em virtude da sua bondade, então existe uma noção independente ou padrão de bondade na qual o juízo de Deus se enquadra, mais do que cria. Neste caso, a atitude de Deus em relação a algo não seria a base da sua qualidade moral ou de valor; a verdade fundamental sobre a bondade, valor e a ética não seria teológica. Por outro lado, se algo é bom porque Deus o aprova, se se torna bom em virtude de ser aprovado por Deus, então o valor e a ética terão base divina. Porém, surgirá a questão de por que o aprova Deus – não, por hipótese, porque é bom – e a de se Deus poderia ter aprovado outra coisa qualquer, a situação oposta, e caso o tivesse feito, se isso teria sido considerado bom, em lugar disto. (John Calvin defendeu que a predestinação não era injusta, com base no facto de que a justiça não existe como um padrão independente de Deus, mas é criada e definida pelos actos de Deus.) A última alternativa, de que o bem poderia ter sido diferente e sê-lo-ia se Deus tivesse escolhido e decidido de modo diferente, o que poderia bem ter acontecido, é deveras de mau gosto. Poderíamos até imaginar a questão de Platão transformada numa com a qual Deus se preocupa. Imaginemos Deus a ter que enfrentar um dilema semelhante ao que fechou a secção anterior. Serão os próprios actos de Deus e a sua própria existência valoráveis? Caso o sejam, será que isto decorre de um padrão externo independente dele (e por isso Deus sente-se coagido por ele?), ou de um padrão que ele próprio cria ou legisla – nesse caso está Deus satisfeito ao juntar-se a um clube que ele próprio fundou, para o qual ele formulou as condições para se ser sócio?
Haverá outra alternativa para uma ética baseada em teologia? Haverá algum modo que possibilite a Deus fazer o seu bolo e poder também dele desfrutar? Consideremos algumas possibilidades. Primeiro, poderíamos considerar que embora não existam quaisquer padrões pré-existentes de bondade ou valor, a aprovação divina não é arbitrária. Ele aprova algo atendendo à característica C que essa coisa possui; o facto de algo ter C, esse algo ele próprio, é bom em resultado dessa aprovação. O elo entre facto e valor passa pela ideia de aprovação divina. “Poderia Deus discordar de C, ou aprovar a sua ausência, e nesse caso, seria C mau, ou pelo menos falharia em ser bom?” Não está claro quão voluntárias são as aprovações de Deus. Uma perspectiva teológica poderia sustentar que Deus não poderia consentir de outro modo (mas não pela razão que Deus é necessariamente bom, e por isso deve apenas consentir o bem, uma vez que temos em consideração que a característica C não é um bem pré-existente), e que um tecido desta natureza com característica C só poderia levar à aprovação – talvez pelo facto de devermos aprovar coisas no sentido em que se assemelham a ele. Outra ideia defenderia que Deus podia aprovar de outro modo, mas que não o faria, novamente por causa do tecido da sua natureza com a característica C que consente. O que precisamos é de uma explicação do consentimento ou aprovação de Deus, que não se baseie na bondade já existente no objecto, que a torna não arbitrária. (E um teólogo poderia defender que tal explicação existe, sem ser capaz de especificar qual.) Deste modo, algo bloqueia o passo para a ideia de que “Deus poderia ter ordenado ou consentido a matança de pessoas para comer os seus corações e cérebros, e se o tivesse feito, isso seria correcto, bom e de valor.” Como resposta, podemos dizer que o não consentimento de Deus nesta situação não é arbitrário e ele não daria a sua aprovação. Além disso, se Deus tivesse que o aprovar, então, num mundo possível mais próximo no qual ele de facto o aprova, a explicação não-arbitrária da sua desaprovação é desconsiderada. Todavia, se as leis ou princípios gerais subjacentes à real desaprovação continuam a ser verdadeiros nestes mundos que se encontram próximos, então outra coisa qualquer tem que ser diferente aí – o comportamento ou estado teriam um carácter diferente, para alterar a desaprovação de Deus de acordo com os princípios que regulam a sua resposta não-arbitrária. (Ou então, nesse mundo mais próximo onde Deus o consente, os princípios que regulam a sua aprovação teriam mudado; assim poderíamos ultrapassar a questão de saber se, nesse caso, essa coisa diferente seria boa.)
Parece que, neste sentido, um teísta pode continuar a manter uma base teológica para a ética e os valores, mesmo face aos argumentos explosivos da questão de Eutífron; pode manter que algo é bom porque Deus ainda o aprova, atendendo ao facto de que o que Deus aprova tem uma explicação não-arbitrária, é preciso evitar os conjuntivos indesejáveis.* Contudo, enquanto que esta perspectiva coloca os valores no nosso mundo, baseados na aprovação divina, coloca Deus numa situação desprovida de valor, incapaz de se ver a si mesmo e à sua existência como tendo valor. Depois, tal como outros, ele poderia ver o valor como dependente da sua aprovação, e dessa forma ver-se como algo com valor. Mas isto não lhe dirá mais do que ele consente sobre si mesmo, que ele é o tipo de coisa que ele tende a aprovar com segurança. Não poderá mesmo ver o seu consentimento ou aprovação como aspectos valoráveis independentes. Haverá algum modo de a perspectiva teológica atribuir algum grau de independência ao valor, de modo a colocar o valor dentro da existência de Deus, e não o deixar apenas como uma mera consequência derivativa da sua aprovação?
Deus poderia escolher que existam valores, que se criem valores. Verá Deus a existência de valores como sendo algo melhor, mais valorável? Ainda não, porque ainda não existem valores. Mas será melhor que existam, de acordo com os que então já o são. Desta feita Deus cria valores, segundo os quais a existência desses mesmos valores tem ela própria valor, o seu acto de criar valores é valorável, a sua subsequente adesão a esses valores é sujeita a uma apreciação de valor, a sua existência é valorável, e assim por diante. Os valores criados validam a sua própria criação; eles atribuem valor ao facto de Deus os criar. Os valores não resultam da mera aprovação divina; ele escolhe criar valores, criá-los como valores.
Poderia Deus ter criado coisas diferentes como valores, e se ele tivesse optado de modo diferente, seriam os valores diferentes? Vimos como uma perspectiva teológica defendeu que, dada a sua natureza, Deus não escolheria de modo diferente. Há outra ideia a considerar: a natureza do valor limita aquilo que pode ser criado como valor. Na primeira parte deste Capítulo, listámos várias condições, constituintes da natureza do valor, num projecto que visava unicamente especificar o valor. Só algo que satisfizesse essas condições poderia ser valor; se apenas uma dessas coisas o fizer, por exemplo, o grau de unidade orgânica, então só isso pode constituir valor. (Todavia, reforçamos a ideia que permaneceria a outra questão de por que constitui isso um valor, de por que existe valor de qualquer modo.) Se supusermos que o valor é assim especificado de forma única (embora as suas várias combinações não o sejam – recordemos a secção sobre o pluralismo), então embora Deus possa decidir sobre a existência (ou não) de valor, não podia escolher que outra coisa qualquer fosse valor. A existência de valor é com ele, mas o carácter do valor é independente, e não está sujeito ao seu controlo ou escolha.
Na relação de Deus com o valor (do seu ponto de vista) a sua autonomia é preservada, uma vez que é de sua vontade que exista valor, porém também há um padrão independente de valor de acordo com o qual a sua existência e escolhas são valoráveis, um padrão que não é simplesmente determinado pelas suas preferências ou aprovação. Embora ele seja o fundador do clube, as condições de associação não são determinadas por ele.»
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* Eutífron acredita em muitos deuses, e Sócrates leva-o a reconsiderar a sua perspectiva sobre “o que é aprovado por todos os deuses”. Os agnósticos que mantêm que o mundo foi criado por uma outra divindade diferente de um deus pertencente a um universo mais circundante, se desejassem apresentar uma base teológica para a ética, teriam que decidir qual a aprovação divina usada para estabelecer o padrão ético.
* Eutífron acredita em muitos deuses, e Sócrates leva-o a reconsiderar a sua perspectiva sobre “o que é aprovado por todos os deuses”. Os agnósticos que mantêm que o mundo foi criado por uma outra divindade diferente de um deus pertencente a um universo mais circundante, se desejassem apresentar uma base teológica para a ética, teriam que decidir qual a aprovação divina usada para estabelecer o padrão ético.
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