Até agora limitei-me a descrever as práticas históricas das democracias liberais relativamente aos grupos etnoculturais. Virtualmente todas as democracias ocidentais têm seguido o mesmo padrão: o grupo nacional maioritário procurou estender a sua língua e cultura através do território do estado. Os grupos minoritários aceitaram normalmente a integração nessa cultura comum, embora em geral as minorias nacionais lhe tenham resistido e tenham lutado para manter o seu estatuto como sociedade separada, autónoma e culturalmente distinta. Mas como encaixa este padrão histórico nos princípios democráticos liberais? Como se relacionam estas práticas com os compromissos fundacionais do liberalismo relativamente aos direitos e às liberdades individuais? Terá sido incorrecto por parte das culturas maioritárias o comprometimento com este tipo de projectos de construção nacional? Como poderão responder os estados liberais às exigências de auto-governo apresentadas pelas minorias?
Creio que o projecto histórico de construção nacional impulsionado pelo grupo maioritário em cada estado era compatível com os direitos liberais. Como defenderei mais adiante, os princípios liberais, em princípio, encontram o seu desenvolvimento mais idóneo no seio de unidades nacionais coesas, pelo que incentivar a integração numa cultura comum foi uma maneira legítima de promover valores liberais importantes. Contudo, pelas mesmas razões, os liberais deveriam igualmente reconhecer a realidade e legitimidade dos nacionalismos minoritários. Qualquer estado que contenha uma minoria nacional considerável deve aceitar a sua condição de estado multinacional. A existência de minorias nacionais deveria assim ser reconhecida e apoiada por acordos constitucionais e pelo debate político quotidiano.
Esta ideia não é nova. Pelo contrário, inúmeros teóricos liberais têm defendido que os princípios de liberdade individual, justiça social e democracia política, só podem ser alcançados no interior de unidades nacionais. Por exemplo, uma convicção compartilhada pelo liberalismo do século XIX foi que os direitos nacionais de auto-governo constituíam um complemento essencial dos direitos individuais, já que “a causa da liberdade tem a sua base e afirma as suas raízes na autonomia do grupo nacional”[1]. A promoção da autonomia nacional “oferece a realização de uma ‘área de liberdade’ ou, dito de outro modo, de uma sociedade livre para o homem livre”[2].
De modo semelhante, John Stuart Mill defendeu que as instituições livres são “quase impossíveis” se os cidadãos não compartilham de uma língua e de uma identidade nacional comum:
Entre gentes sem sentimento de companheirismo, especialmente se lêem e falam línguas distintas, a unidade de opinião pública necessária para o funcionamento das instituições representativas não pode existir […]. Em geral, é uma condição necessária para as instituições livres que as demarcações dos governos coincidam basicamente com as dos nacionalistas.[3]
Para liberais como Mill, a democracia é o governo “do povo”, mas o auto-governo só será possível se “o povo” é “um povo” (uma nação). Os membros de uma democracia devem compartilhar um sentimento de lealdade política, e a nacionalidade comum era considerada uma pré-condição dessa lealdade. Assim, T. H. Green defendeu que a democracia liberal só é possível se o povo se sente unido ao Estado por “vínculos derivados de um habitáculo comum e das suas associações, das recordações, tradições e costumes compartilhados e da forma comum de sentir e pensar que encarna uma língua comum e, mais ainda, uma literatura comum”[4]. Por conseguinte, muitos liberais sentiram que uma cultura comum era essencial para a liberdade individual e para a democracia. Não acreditavam que todas as nações deviam formar estados independentes, mas mantiveram que os grupos nacionais devem exercer algum grau de autonomia política no interior de um estado multinacional.
Qual a conexão exacta entre os valores liberais e a autonomia nacional? O compromisso liberal com a autonomia nacional assenta em parte sobre considerações puramente funcionais. Supõe-se que uma identidade nacional comum promove o tipo de confiança necessária para a cooperação democrática e o tipo de solidariedade que as pessoas precisam para aceitar os fardos da justiça liberal. Daí que as unidades políticas com base nacional tenham tido uma maior probabilidade de se dotarem de governos estáveis e eficientes[5]. Mas também existe uma razão mais profunda: a crença que a participação numa cultura nacional dá sentido à liberdade individual. Deste ponto de vista, a liberdade implica a escolha entre opções, e a nossa cultura societária não só proporciona essas opções, como também as constrói significativamente para nós.
A conexão entre a escolha individual e a pertença cultural é importante, embora difícil de articular. A ideia básica é a seguinte: as pessoas tomam decisões entre as práticas sociais que as rodeiam de acordo com as suas crenças sobre o valor dessas práticas. Crer no valor de uma prática é, em primeiro lugar, uma questão de compreensão dos significados a ela vinculados pela nossa cultura. Salientei anteriormente que as culturas societárias implicam “um vocabulário compartilhado de tradição e convenção” que subjaz a toda uma série de práticas sociais e institucionais[6]. Portanto, compreender o significado de uma prática social requer a compreensão desse “vocabulário compartilhado”, quer dizer, a compreensão da língua e da história que constituem esse vocabulário. Que uma trama de acção possua ou não esse significado para nós depende do facto da nossa língua nos plasmar vividamente o sentido dessa actividade e do modo como o faz. A forma como a língua nos plasma vividamente essas actividades é configurada pela nossa história, pelas nossas “tradições e convenções”. Compreender essas narrativas culturais é uma pré-condição para realizar juízos inteligentes sobre a forma de conduzir as nossas vidas. Neste sentido, para citar Ronald Dworkin, a nossa cultura não só nos garante opções, mas também “garante as lentes através das quais identificamos as experiências como valiosas”[7].
O que se segue disto tudo? De acordo com Dworkin, devemos proteger a nossa cultura do “enfraquecimento ou da degradação cultural”. A sobrevivência de uma cultura não está garantida, e quando se vê ameaçada pelo enfraquecimento ou pela degradação, devemos reagir para a proteger. As culturas não são valiosas por si mesmas, mas porque as pessoas só podem ter acesso a uma gama de opções plenas de significado através do acesso a uma cultura societária. Dworkin conclui a sua discussão afirmando que “herdamos uma estrutura cultural e temos um certo dever, por pura justiça, de legar essa estrutura pelo menos tão rica quanto a encontramos”[8].
Nesta passagem e em algumas outras, Dworkin fala de “estruturas culturais”. Este é um termo potencialmente equívoco, uma vez que sugere uma imagem excessivamente formal e rígida daquilo que é um fenómeno bastante difuso e indeterminado. As culturas não têm um centro fixo nem margens precisas. Contudo, a sua tese central é, na minha opinião, bastante coerente. A disponibilidade de opções significativas depende do acesso a uma cultura societária e a compreensão da história e a língua dessa cultura, do seu “vocabulário compartilhado de tradição e convenção”[9].
Por esta razão, o compromisso fundacional liberal com a liberdade individual pode estender-se para dar lugar a um profundo compromisso liberal com a viabilidade duradoura e o florescimento das culturas societárias. Nestes estados multinacionais, isto implicará inevitavelmente certos direitos de grupo para as minorias nacionais (por exemplo, direitos linguísticos e de auto-governo). Estes direitos e poderes garantem que as minorias nacionais sejam capazes de manter e desenvolver as suas culturas societárias num futuro indefinido.
Esta imagem da relação existente entre a liberdade individual e a pertença a uma cultura nacional pode encontrar-se em vários autores liberais. Por exemplo, Avishai Margalit e Joseph Raz defendem que a pertença a uma cultura societária é crucial para o bem-estar das pessoas, já que a pertença cultural proporciona opções com significado, no sentido em que “a familiaridade com uma cultura determina as margens do imaginável”. Daí que se uma cultura decai ou é discriminada, “as opções e oportunidades abertas aos seus membros diminuem, tornando-se menos atraentes pelo que será menor a probabilidade de que seja continuada”[10]. Por esta razão, os grupos nacionais têm prima facie direito ao auto-governo, embora não necessariamente a um estado independente. Outros teóricos liberais contemporâneos formularam argumentos similares vinculando a liberdade individual à autonomia nacional[11].
Outros autores liberais adoptam explicitamente uma posição similar. Por exemplo, John Rawls afirma:
Normalmente, abandonar a própria cultura é um passo importante: implica abandonar a sociedade e a cultura em que fomos educados, a sociedade e a cultura cuja língua usamos na fala e no pensamento para nos expressarmos e nos entendermos a nós próprios, as nossas ambições, objectivos e valores, a sociedade e a cultura de cuja história, costumes e convenções dependemos para encontrar o nosso lugar no mundo social. Em grande medida, afirmamos a nossa sociedade e a nossa cultura e temos dela um conhecimento íntimo e indizível, mesmo quando a podemos questionar em boa parte ou até rejeitá-la. Portanto, a autoridade do governo não pode ser livremente aceite se pensarmos que os vínculos da sociedade e da cultura, da história e da posição social de origem começam desde cedo a configurar a nossa vida e são normalmente tão fortes que o direito à imigração (correctamente regulado) não é suficiente para provocar a aceitação livre da sua autoridade, politicamente falando, da mesma forma que a liberdade de consciência é suficiente para provocar a aceitação livre da autoridade eclesiástica.[12]
Devido a esses laços com a “língua que usamos na fala e no pensamento para nos expressarmos e nos entendermos a nós próprios”, os vínculos culturais “são normalmente demasiado fortes para serem abandonados, e isto não é um facto deplorável”. Por isso, com o fim de desenvolver uma teoria da justiça, deveríamos assumir que as “pessoas nascem e esperam dela que leve uma vida completa” no seio da mesma “sociedade e cultura”[13].
Rawls apresenta isto como um argumento sobre a dificuldade para abandonar a própria comunidade política. Mas este argumento não repousa sobre o valor de vínculos especificamente políticos (por exemplo, os vínculos com o próprio governo e os concidadãos). Mas repousa isso sim sobre o valor dos vínculos culturais (por exemplo, dos vínculos com a própria língua e história) e os limites culturais não coincidem com os políticos. Por exemplo, alguém que trocasse a Alemanha de Leste pela Alemanha Ocidental em 1950 não estaria a abandonar os vínculos linguísticos e culturais enfatizados por Rawls, embora estivesse a cruzar fronteiras estatais. Contudo, um francófono que trocasse a cidade de Québec por Toronto ou um porto-riquenho que trocasse San Juan por Chicago estariam a quebrar esses vínculos, ainda que permanecessem no mesmo país.
Segundo Rawls, então, os vínculos pessoais com a cultura são, em geral, demasiado fortes para serem rescindidos, algo que não se deve lamentar[14]. Deveríamos operar com base na presunção de que as pessoas querem viver e trabalhar na sua própria cultura societária e que esta lhes proporcionará o contexto para exercerem a sua liberdade e escolha pessoal.
Em todos estes autores, o valor liberal básico da liberdade pessoal é visto em íntima relação com a pertença a uma cultura nacional. Dito de outro modo, o ideal liberal é uma sociedade de indivíduos livres e iguais. Mas qual será a “sociedade relevante”? Para a maioria das pessoas parece ser a sua nação. O tipo de liberdade e igualdade que mais valorizam e mais podem usar é a liberdade e a igualdade no interior da sua própria cultura societária, e estão dispostos a renunciar a uma maior liberdade e igualdade para assegurar a continuidade da existência da sua nação. Por exemplo, poucas pessoas apoiam um sistema de fronteiras abertas em que as pessoas podem cruzar livremente as fronteiras e fixar-se, trabalhar e votar em qualquer país que desejassem. Um tal sistema incrementaria drasticamente o âmbito em que as pessoas seriam tratadas como livres e iguais. Contudo, umas fronteiras abertas também tornariam mais provável que a própria comunidade nacional se visse superada pela afluência de membros de outras culturas e que as pessoas fossem incapazes de assegurar a sua sobrevivência como cultura nacional distinta. Por conseguinte, oferece-nos uma alternativa, por um lado, entre a maior mobilidade e um espaço mais amplo no qual as pessoas sejam livres e iguais e, por outro, uma mobilidade mais reduzida, embora com uma maior segurança de que as pessoas possam continuar a ser membros livres e iguais da sua própria cultura nacional. A maioria das pessoas nas democracias liberais apoia claramente a segunda opção. Preferem ser livres e iguais no interior da sua própria nação, mesmo que isso signifique menos liberdade para trabalhar e votar do que noutras partes, do que serem livres e iguais como cidadãos do mundo, se isto significa uma possibilidade menor de viver e trabalhar na sua própria língua e cultura.
A maioria dos teóricos da tradição liberal tem estado implicitamente de acordo com isto. Poucos teóricos importantes apoiaram a abertura de fronteiras ou consideraram-no seriamente. Em geral, aceitaram (de facto, deram frequentemente por adquirido) que o tipo de liberdade e de igualdade que mais importa às pessoas é a liberdade e a igualdade no interior da própria cultura societária. Como Rawls, assumem que “as pessoas nascem e esperam viver uma vida completa” no interior de uma mesma “sociedade e cultura” e que é isto que define o âmbito em que as pessoas devem ser livres e iguais[15].
Em resumo, os teóricos liberais aceitam em geral que as culturas ou nações são unidades básicas da teoria política liberal. Neste sentido, como salientou Yael Tamir, “a maioria dos liberais são nacionalistas liberais”, quer dizer, os objectivos liberais alcançam-se no seio e através de uma cultura societária ou nação liberalizada”[16].»
.....................................
.......................................................
[1] Ernest Baker, National Character and the Factors in its formation, London, Methuen, 1948, p. 248; cfr. Joseph Manzini, The Duties of Man and other Essays, London, J. M., 1907, pp. 51-2, 176-77.
[2] R. F. A. Hoernlé, South African Native Policy and the Liberal Spirit, City of Cabo, Lovedale Press, 1939, p. 181.
[3] J. S. Mill, Considerations on Representative Government, in Utilitarism, Liberty and Representative Government, H. Acton (ed.); J. M. Dent, 1972, pp. 230 e 233.
[4] T. H. Green, Lectures on the Principles of Political Obligation, London, Longman´s, 1941. pp. 130-1.
[5] Para uma exploração e uma defesa detalhada desta afirmação, veja-se David Miller, On Nationality, Oxford, OUP, 1995.
[6] Dworkin, Matter of Principle, p. 231.
[7] Ibid., pp. 228.
[8] Ibid., pp. 230-3.
[9] Ibid., pp. 228 e 231.
[10] Margalit e Raz, National Self-Determination, p. 449.
[11] Por exemplo, Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.
[12] John Rawls, Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1933, p. 222.
[13] Ibid., p. 277.
[14] Vale a pena recordar que, embora muitos imigrantes floresçam no seu novo país, existe um factor selectivo quanto a isso. Quer dizer, aqueles que decidem desenraizar-se são com maior probabilidade as pessoas que têm um vínculo psicológico mais frágil com a sua velha cultura e um maior desejo e determinação para triunfar em qualquer outro lado. Não podemos assumir a priori que representam a regra em termos de adaptabilidade cultural.
[15] Rawls, Political Liberalism, p. 27. É claro que se a existência nacional não estiver ameaçada, as pessoas favoreceram uma maior mobilidade, já que a capacidade para se mover e trabalhar noutras culturas é uma opção valiosa para algumas pessoas em determinadas circunstâncias.
[16] Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.
[1] Ernest Baker, National Character and the Factors in its formation, London, Methuen, 1948, p. 248; cfr. Joseph Manzini, The Duties of Man and other Essays, London, J. M., 1907, pp. 51-2, 176-77.
[2] R. F. A. Hoernlé, South African Native Policy and the Liberal Spirit, City of Cabo, Lovedale Press, 1939, p. 181.
[3] J. S. Mill, Considerations on Representative Government, in Utilitarism, Liberty and Representative Government, H. Acton (ed.); J. M. Dent, 1972, pp. 230 e 233.
[4] T. H. Green, Lectures on the Principles of Political Obligation, London, Longman´s, 1941. pp. 130-1.
[5] Para uma exploração e uma defesa detalhada desta afirmação, veja-se David Miller, On Nationality, Oxford, OUP, 1995.
[6] Dworkin, Matter of Principle, p. 231.
[7] Ibid., pp. 228.
[8] Ibid., pp. 230-3.
[9] Ibid., pp. 228 e 231.
[10] Margalit e Raz, National Self-Determination, p. 449.
[11] Por exemplo, Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.
[12] John Rawls, Political Liberalism, New York, Columbia University Press, 1933, p. 222.
[13] Ibid., p. 277.
[14] Vale a pena recordar que, embora muitos imigrantes floresçam no seu novo país, existe um factor selectivo quanto a isso. Quer dizer, aqueles que decidem desenraizar-se são com maior probabilidade as pessoas que têm um vínculo psicológico mais frágil com a sua velha cultura e um maior desejo e determinação para triunfar em qualquer outro lado. Não podemos assumir a priori que representam a regra em termos de adaptabilidade cultural.
[15] Rawls, Political Liberalism, p. 27. É claro que se a existência nacional não estiver ameaçada, as pessoas favoreceram uma maior mobilidade, já que a capacidade para se mover e trabalhar noutras culturas é uma opção valiosa para algumas pessoas em determinadas circunstâncias.
[16] Tamir, Liberal Nationalism. Elaborei e defendi esta posição em Multicultural Citizenship, cap. 5.
Sem comentários:
Enviar um comentário