«Neste ensaio defenderei uma concepção complexa, imprecisa e, em alguns pontos cruciais, incerta de sociedade e de política. Não aspiro a elaborar uma teoria “simplista”, particularmente num momento histórico em que grande parte da oposição estável que se praticava a partir da vida política e intelectual sofreu um colapso. Talvez nem sequer deseje a simplicidade, uma vez que tenho a suspeita que um mundo que pudesse ser totalmente apreendido e claramente explicado pela teoria não seria um lugar agradável. Seguindo pois a ordem natural das coisas, as minhas ideias não seriam elegantes e, ainda que os argumentos “desfilassem” (sucedendo-se as frases umas às outras como num desfile militar), a rota seguida pelo meu desfile de hoje seria tortuosa e teria que andar em círculos. Começarei pela ideia de sociedade civil recentemente ressuscitada por intelectuais da Europa Central e de Leste, para logo continuar com o Estado, a economia, a nação e, posteriormente, retomar de novo as ideias de sociedade civil e de Estado. Estas são formações sociais cruciais em cujo seio se desenrola a nossa vida, mas neste momento não estamos satisfeitos com qualquer uma delas. Também não parece possível imaginar, utilizando algumas dessas teorias simplificadoras, uma forma de escolher entre essas formações sociais. Não parece, receio, que estejamos destinados a encontrar algum dia a melhor das formações sociais possíveis. Pelo contrário, queria argumentar contra a possibilidade dessa escolha, mas, ao mesmo tempo, também defenderei que a melhor maneira de entender esta ideia é a partir do próprio seio da sociedade civil.
Com as palavras “sociedade civil” faz-se referência tanto ao espaço coberto pelas associações humanas não coercivas como à rede de relações criadas para a defesa da família, da fé, dos interesses ou das ideologias que cobrem esse espaço. A dissidência na Europa Central e no Leste floresceu no seio de uma versão muito restritiva de sociedade civil, e, segundo nos dizem, a primeira tarefa empreendida pelas novas democracias criadas por estes dissidentes consistiu na reconstrução de redes: sindicatos, igrejas, partidos e movimentos políticos, cooperativas, associações de vizinhos, escolas de pensamento, sociedades para promover isto ou aquilo. Pelo contrário, no Ocidente, há muito que vivemos no interior de uma sociedade civil sem o sabermos. Ou melhor, desde a época da Ilustração escocesa, ou desde Hegel, que estas palavras eram conhecidas por aqueles que sabiam destas coisas, mas raramente serviram para chamar a atenção de mais alguém. Hoje, escritores da Hungria, Checoslováquia e Polónia, convidam-nos a pensar em fórmulas para assegurar e reforçar este tipo de formação social.
Temos as nossas próprias razões para aceitar este convite. Cada vez é mais evidente que a vida associativa corre perigo nos países capitalistas “avançados” com regimes social-democratas. Publicitários e comentadores advertem-nos para o facto da cooperação quotidiana e a amizade cívica estarem a decrescer a um ritmo constante. E desta vez é possível que não se estejam a comportar (como é usual) como tontos alarmistas. É certo que as nossas cidades são mais ruidosas e estão mais sujas do que antes. A solidariedade familiar, a assistência mútua, a afinidade política, tudo isto parece hoje menos real e substantivo. Outras gentes, estranhos nas ruas, parecem menos confiáveis que ontem. A concepção hobbesiana da sociedade parece cada vez mais plausível.
Esta imagem preocupante talvez seja consequência (apenas em parte, mas que outra coisa poderia um politólogo dizer?) de não se ter meditado o suficiente sobre a solidariedade e a confiança, de não se ter planificado o seu futuro. Temos estado a pensar demasiado em formações sociais diferentes, às vezes antagónicas, relativamente à sociedade civil. Por isso descuidamos essas redes através das quais se produz e reproduz o cívico. Imagine-se que, faz um ou dois séculos, se tinham colocado as seguintes questões aos politólogos e aos filósofos morais: qual é o melhor cenário, o ambiente mais adequado para o desenvolvimento da vida boa? Devemos trabalhar a favor de que tipo de instituições? A teoria social dos séculos XIX e XX oferece quatro respostas diferentes, que nesta altura nos são familiares. Pensemos nelas como quatro ideologias rivais, sendo que cada uma delas pretende ser omnicompreensiva e correcta. Todas têm um defeito importante. Nenhuma delas tem em conta o pluralismo que, necessariamente, deve verificar-se em toda a sociedade civil. Cada uma constrói-se a partir de uma hipótese que penso poder apresentar-se sob esta forma: que para este tipo de perguntas existe uma única resposta.»
Com as palavras “sociedade civil” faz-se referência tanto ao espaço coberto pelas associações humanas não coercivas como à rede de relações criadas para a defesa da família, da fé, dos interesses ou das ideologias que cobrem esse espaço. A dissidência na Europa Central e no Leste floresceu no seio de uma versão muito restritiva de sociedade civil, e, segundo nos dizem, a primeira tarefa empreendida pelas novas democracias criadas por estes dissidentes consistiu na reconstrução de redes: sindicatos, igrejas, partidos e movimentos políticos, cooperativas, associações de vizinhos, escolas de pensamento, sociedades para promover isto ou aquilo. Pelo contrário, no Ocidente, há muito que vivemos no interior de uma sociedade civil sem o sabermos. Ou melhor, desde a época da Ilustração escocesa, ou desde Hegel, que estas palavras eram conhecidas por aqueles que sabiam destas coisas, mas raramente serviram para chamar a atenção de mais alguém. Hoje, escritores da Hungria, Checoslováquia e Polónia, convidam-nos a pensar em fórmulas para assegurar e reforçar este tipo de formação social.
Temos as nossas próprias razões para aceitar este convite. Cada vez é mais evidente que a vida associativa corre perigo nos países capitalistas “avançados” com regimes social-democratas. Publicitários e comentadores advertem-nos para o facto da cooperação quotidiana e a amizade cívica estarem a decrescer a um ritmo constante. E desta vez é possível que não se estejam a comportar (como é usual) como tontos alarmistas. É certo que as nossas cidades são mais ruidosas e estão mais sujas do que antes. A solidariedade familiar, a assistência mútua, a afinidade política, tudo isto parece hoje menos real e substantivo. Outras gentes, estranhos nas ruas, parecem menos confiáveis que ontem. A concepção hobbesiana da sociedade parece cada vez mais plausível.
Esta imagem preocupante talvez seja consequência (apenas em parte, mas que outra coisa poderia um politólogo dizer?) de não se ter meditado o suficiente sobre a solidariedade e a confiança, de não se ter planificado o seu futuro. Temos estado a pensar demasiado em formações sociais diferentes, às vezes antagónicas, relativamente à sociedade civil. Por isso descuidamos essas redes através das quais se produz e reproduz o cívico. Imagine-se que, faz um ou dois séculos, se tinham colocado as seguintes questões aos politólogos e aos filósofos morais: qual é o melhor cenário, o ambiente mais adequado para o desenvolvimento da vida boa? Devemos trabalhar a favor de que tipo de instituições? A teoria social dos séculos XIX e XX oferece quatro respostas diferentes, que nesta altura nos são familiares. Pensemos nelas como quatro ideologias rivais, sendo que cada uma delas pretende ser omnicompreensiva e correcta. Todas têm um defeito importante. Nenhuma delas tem em conta o pluralismo que, necessariamente, deve verificar-se em toda a sociedade civil. Cada uma constrói-se a partir de uma hipótese que penso poder apresentar-se sob esta forma: que para este tipo de perguntas existe uma única resposta.»
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