A ideia de um estado culturalmente neutro é um mito. São inúmeros os modos em que as decisões governamentais têm um papel crucial na manutenção das culturas societárias. Isto não quer dizer que os governos apenas possam promover uma cultura societária. As políticas governamentais podem promover a manutenção de duas ou mais culturas societárias no seio de um mesmo país. De facto, como discutirei mais adiante, é precisamente isto que caracteriza os estados multinacionais. Todavia, considerando uma perspectiva histórica, virtualmente todas as democracias liberais tentaram num determinado momento estender uma única cultura societária por todo o seu território. Como discutirei mais adiante, isto não deveria ser visto unicamente como uma questão de imperialismo cultural ou de preconceito etnocêntrico. Este modelo de construção nacional responde a uma série de objectivos importantes e legítimos. Por exemplo, uma economia moderna requer uma força de trabalho móvel, educada e alfabetizada. A educação pública homologada numa língua comum é frequentemente considerada essencial para que todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades de trabalho nesta economia moderna. Por conseguinte, a participação numa cultura societária comum tem sido vista frequentemente como algo essencial para gerar solidariedade nos modernos estados democráticos. O tipo de solidariedade exigida pelo estado de bem-estar requer que os cidadãos tenham um forte sentido de identidade e pertença comum afim de que estejam dispostos a sacrificar-se uns pelos outros. Supõe-se que essa identidade comum necessita (ou deve ser facilitada por) uma língua e uma história comuns. A integração na cultura societária comum foi considerada essencial para a igualdade social e para a coesão política nos estados modernos.
Todos os estados se comprometeram com este processo de “construção nacional”, quer dizer, com um processo de promoção de uma língua comum, de um sentido de pertença comum e de um acesso igualitário às instituições sociais assentes sobre essa língua[1]. As decisões relativas às línguas oficiais, ao tronco curricular na educação e aos requisitos para adquirir a cidadania, foram feitos com a intenção explícita de difundir uma cultura particular baseada na participação nessa cultura societária. Uma vez que estes projectos de construção nacional não podem ser apenas considerados como um preconceito etnocêntrico, mas também como a extensão da liberdade e da igualdade a todos os cidadãos, nem sempre encontram resistência entre os grupos minoritários. Alguns grupos etnoculturais aceitaram a chamada à integração e, em alguns países, o resultado desses programas de “construção nacional” consistiu na extensão de uma cultura societária comum por todo o território estatal. Estes são os “estados nacionais” paradigmáticos; por exemplo, a França, a Inglaterra e a Alemanha. Contudo, noutros países as minorias territorialmente concentradas resistiram à sua integração na cultura societária dominante. Em “estados multinacionais” semelhantes, como a Bélgica, Canadá, Suiça e Espanha, uma ou mais das minorias nacionais, com as suas línguas próprias e instituições separadas, coexistem com a cultura societária dominante.
Por que será que alguns grupos minoritários resistiram à integração enquanto outros decidiram integrar-se? Como sublinhou Charles Taylor, o processo de construção nacional privilegia inevitavelmente os membros de uma cultura maioritária:
Se uma sociedade moderna possui uma língua “oficial”, no sentido pleno do termo, quer dizer, uma língua e uma cultura financiadas, inculcadas e definidas estatalmente nas quais funcionam a economia e o Estado, é óbvio que para quem quer que essa língua e culturas sejam as próprias, isso constituirá uma imensa vantagem. Os utilizadores de outras línguas encontrar-se-ão em clara desvantagem.[2]
Isto quer dizer que as culturas minoritárias se confrontam com uma alternativa. Se todas as instituições públicas utilizam uma outra língua, as minorias correm o perigo de ser marginalizadas pelas principais instituições económicas, académicas e políticas da sociedade. Para evitar a perpetuação da marginalização, as minorias devem ou integrar-se na cultura maioritária ou procurar o tipo de direitos e poderes de auto-governo necessários para manter a sua própria cultura societária, quer dizer, criar as suas próprias instituições económicas, políticas e educativas na sua língua.
Confrontados com esta alternativa, os grupos etnoculturais têm respondido de formas diversas. Alguns aceitaram a integração. Isto é particularmente verdade entre os grupos imigrantes. Pelo contrário, as minorias nacionais não-imigrantes têm resistido com força à integração e têm lutado pelo auto-governo. Por “minorias nacionais” entendo culturas historicamente fundadas, territorialmente concentradas e com formas prévias de auto-governo, cujo território foi incorporado num estado mais amplo. A incorporação destes grupos tem sido normalmente involuntária, devida à colonização, à conquista ou à transferência de território entre poderes imperiais, mas em alguns casos reflecte uma federação voluntária. Estes grupos incluem, por exemplo, os quebequianos e os porto-riquenhos da América do Norte e os flamengos, catalães e bascos na Europa[3].
Por que aceitarão os imigrantes a sua integração? Uma razão é que os imigrantes já haviam abandonado voluntariamente a sua própria cultura com a expectativa de se integrarem noutra sociedade nacional. É isto que significa tornar-se imigrante. Se tivessem considerado repugnante a ideia de integrar-se noutra cultura, não teriam escolhido tornar-se imigrantes. Para além disso, dado que os emigrantes são normalmente indivíduos ou famílias, e não comunidades inteiras, falta-lhes a concentração territorial ou as instituições corporativas necessárias para formar uma sociedade linguisticamente distinta e paralela à sociedade principal. Recriar uma tal sociedade paralela requer uma tremenda quantidade de apoio por parte da sociedade anfitriã, não só em matéria de direitos linguísticos, mas também de políticas de instalação e até algum tipo de redefinição das fronteiras internas com o fim de permitir alguma forma de auto-governo. Este é um apoio que nenhum governo anfitrião está disposto a oferecer. Por isso, a opção nacionalista não é desejável nem possível para os imigrantes, e de facto há muito poucos exemplos nas democracias ocidentais, se é que os há em absoluto, de que os grupos imigrantes formem movimentos nacionalistas para conseguir o auto-governo ou a secessão[4].
Os imigrantes raramente se opõem a imposição de uma língua comum, uma vez que decidiram deixar atrás de si a sua velha cultura e não é possível recriar uma sociedade culturalmente distinta junto da cultura nacional existente. Para as minorias nacionais, contudo, a imposição da língua maioritária ameaça a sua sociedade culturalmente distinta. A sua língua e relatos históricos encontram-se já incarnados em toda uma série de práticas sociais e instituições que abarcam todos os aspectos da vida social e que se vêem ameaçadas pela intenção da maioria difundir uma cultura societária comum. Estes grupos resistem à integração de forma quase inevitável e procuram o reconhecimento da sua linguagem e da sua cultura. Com efeito, Walker Connor chegou a sugerir que neste século só existem exemplos de grupos nacionais reconhecidos como tais que foram assimilados de forma voluntária por outra cultura, mesmo nos casos em que houve incentivos económicos substanciais e pressões políticas para o fazer[5].
Esta exigência de reconhecimento oficial não precisava assumir a forma de um movimento secessionista a favor de um estado próprio, mas pode assumir a forma de uma exigência a favor de alguma forma de autonomia local, possivelmente através de um sistema federal com um controlo local da educação, da língua e, talvez, da imigração. Mas qualquer que seja a forma exacta, implica normalmente a existência de direitos legais e poderes legislativos necessários para a assegurar a sobrevivência de uma sociedade culturalmente distinta junto da sociedade maioritária. Estes movimentos nacionalistas minoritários são um fenómeno claramente moderno, não só no sentido em que constituem uma concomitância natural com o projecto modernizador da construção nacional da maioria. Os nacionalistas do Quebéc ou da Catalunha acreditam na importância de difundir uma língua e uma cultura comuns na sua sociedade com o fim de promover a igualdade de oportunidades e a solidariedade política. Para isso empregam os mesmos instrumentos que usam a nação maioritária no seu programa de construção nacional, quer dizer, a educação pública homologada, as línguas oficias, bem como uma determinada qualificação linguística como requisito para a cidadania e o emprego na administração pública, etc..
Em resumo, entre a alternativa de integração e a alternativa da luta pela manutenção de uma cultura societária distinta, parece que os grupos imigrantes tendem a escolher a primeira opção, enquanto que as minorias tendem a escolher a segunda. Claro que simplifiquei o contraste entre ambas. O grau em que se permitiu ou incentivou os grupos de imigrantes a integrarem-se varia consideravelmente, como varia também a medida em que as minorias nacionais são capazes de manter uma cultura separada. Mas, regra geral, nas democracias ocidentais, as culturas dominantes têm tido menos êxito nas suas tentativas de integração de grupos nacionais do que com grupos de imigrantes. Nos estados multinacionais, as minorias nacionais têm resistido a integrar-se numa cultura comum e têm protegido a sua existência separada mediante a consolidação das suas próprias culturas societárias. Parece que a capacidade e a motivação para formar e manter um tal cultura distinta é característica dos grupos nacionais, não dos grupos de imigrantes[6].»
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[1] Sobre a ubiquidade deste processo, cfr. Ernest Gellner, Nations and nationalism, Oxford, Blackwell, 1983. Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflextions and the Origin and Spread of Nationalism, London, New Left Books, 1983.
[2] Charles Taylor, “Nationalism and Modernity”, in J. McMahan (ed.), The Ethics of Nationalism, Oxford, OUP.
[3] É importante enfatizar que as “nações”, seja o grupo nacional maioritário ou a minoria nacional, não precisam ser definidos em virtude da raça ou da descendência. Isto é de alguma forma óbvio no caso da sociedade anglófona maioritária tanto nos Estados Unidos como no Canadá. Em ambos os países têm-se verificado elevadas taxas de imigração durante os últimos cento e cinquenta anos, primeiro a partir do norte da Europa, depois a partir do sul e do leste europeus, e agora, na sua maioria, de África e da Ásia. Como resultado disso, os americanos e canadenses anglófonos de descendência exclusivamente anglosaxónica constituem uma minoria (em diminuição continua). De forma similar, as minorias nacionais são crescentemente multi-étnicas e multirraciais. Por exemplo, embora a imigração no Canadá francês tivesse sido baixa durante muitos anos, actualmente é quase tão alta como no Canadá inglês ou nos Estados Unidos, e o Québec procura activamente imigrantes da África Ocidental e do Caribe. Também se têm verificado taxas altas de casamentos entre povos indignas da América do Norte e das populações inglesa, francesa e espanhola. Como resultado disto, estas três minorias nacionais são racial e etnicamente híbridas. O número de franco-canadenses de descendência exclusivamente espanhola está a diminuir continuamente e, em última instância, converter-se-á em cada caso numa minoria. Por conseguinte, ao referir-me às minorias nacionais, não estou a falar de grupos raciais ou de descendência, mas de grupos culturais. As minorias citadas não são nações “étnicas”, no sentido em que restringem a pertença àqueles que partilham uma descendência étnica comum. Definem isso sim a pertença a questões de participação numa cultura comum.
[4] Deveria enfatizar que me estou a referir aqui a grupos de imigrantes em países democrático-liberais nos quais existe uma tradição de acolhimento de imigrantes e nos quais é mais fácil para os imigrantes converterem-se em cidadãos de pleno direito, independentemente da sua raça, religião ou origem étnica. Nestas circunstâncias, os grupos de imigrantes não exigiriam o tipo de auto-governo de grupo proporcionado pelo federalismo. Assim, em muitas partes do mundo, incluindo algumas democracias ocidentais, os imigrantes não são tão bem recebidos e é-lhes mais difícil adquirir a cidadania. Onde os imigrantes são objecto de graves preconceitos e de discriminação legal e, por isso, onde a igualdade plena no seio de uma sociedade principal é inacessível, existe maior probabilidade dos imigrantes tentarem criar uma sociedade separada e autónoma à margem da sociedade principal. Por exemplo, se o governo alemão persiste na sua recusa em conceder a cidadania aos residentes turcos (e aos seus filhos e netos), seria de esperar que os turcos exercessem pressão exigindo maiores poderes de auto-governo – talvez através de formas quasi-federais ou co-associativas de concessão de poderes – com o fim de criar e perpetuar uma sociedade separada e autónoma à margem da sociedade alemã, que lhes negou o acesso. Mas este não é o desejo dos turcos, cujo principal objectivo é, como os imigrantes noutras democracias liberais, tornarem-se membros plenos e iguais da sociedade alemã. Embora não possa deter-me neste ponto, creio que qualquer concepção plausível de justiça liberal insistirá que os imigrantes de longa duração devam ser capazes de adquirir a cidadania. Em resumo, os dados históricos sugerem que os grupos de imigrantes apenas procuram formas quasi-federais de auto-governo se enfrentam barreiras injustas para a sua integração e participação plena na sociedade principal.
[5] Walker Connor, “Nation building and Nation-Destroying” in World Politics, 24, 1972, pp. 350-51; “The Politics of Ethnononationalism”, in Journal of International Affairs, 27/1, 1973, p. 20. Para uma exploração mais recente dos conflitos etnonacionais no mundo que mostra claramente as importantes diferenças entre os grupos imigrantes e os grupos nacionais absorvidos, cfr. Ted Gurr, Minorities at Risk: A Global View of Ethnopolitical Conflict, Washington, Institute of Peace Press, 1993.
[6] Esta conexão é confirmada, por outro lado, pelos estudos sobre o nacionalismo. A maioria dos estudiosos do nacionalismo concluíram que o traço definidor das nações é o facto de serem “culturas penetrantes”, “culturas abrangentes” ou “culturas organizativas”; cfr. Anthony Smith, The Ethnic Origin of nations, Oxford, Blackwell, 1986, p. 2; Avishai Margalit e Joseph Raz, “National Self-Determination”, Journal of Philosophy, 87/9, 1990, p. 444; Yael Tamir, Liberal Nationalism, Princeton University Press, 1993, Em resumo, assim como as culturas societárias são quase invariavelmente culturas nacionais, as nações são quase sem excepção culturas societárias.
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