«Uma abordagem mista do valor da deliberação pública
Considere uma situação na qual os indivíduos estão situados de forma desigual relativamente às condições cognitivas do processo de tomada de decisão. Isto ocorre numa sociedade democrática em que cada um tem um voto e na qual existe um processo de deliberação pública, embora alguns não possuam os meios ou o pano de fundo educacional necessários para a participação ou simplesmente não sejam ouvidos no processo de deliberação por razões que sejam irrelevantes quanto ao conteúdo do que têm a dizer. Estarão a ser tratados como inferiores. Isto também ocorre onde não exista a deliberação pública, mas onde as deliberações privadas dos cidadãos se baseiem em condições cognitivas desiguais. Ainda que cada um tenha um voto, alguns não têm a base sobre a qual tomar decisões informadas ou reflectidas, devido à pobreza ou a uma educação pobre. Também estes serão tratados como inferiores e os seus interesses não serão igualmente considerados no processo de discussão. A injustiça em situações de deliberações privadas tendo como referência o pano de fundo da desigualdade nas condições cognitivas é bastante similar àquela de uma sociedade em que há deliberação pública entre cidadãos situados desigualmente.
Agora, considere um cenário em que todos os cidadãos participem como iguais no processo de discussão. Cada um terá os recursos para fazer uma contribuição e outros estarão pelo menos disponíveis para ouvir o que cada um tem a dizer. Por enquanto, não entrarei na natureza deste direito igualitário[1]. O que pretendo defender aqui é que a igualdade no processo de discussão democrática possui dois méritos principais. Primeiro, como defendi acima, melhora a qualidade dos resultados do processo de tomada de decisão democrático. A deliberação pública melhora em geral a qualidade dos resultados, e a igualdade no processo de deliberação acentua esse efeito, uma vez que permite que os pontos de vista e os interesses de todos os participantes da sociedade devam ser ouvidos e harmonizados na medida em que o possam ser.
Um segundo mérito de tal processo é que trata todos os membros da sociedade como iguais. As instituições de discussão e deliberação afectam a distribuição das condições cognitivas de entendimento entre os cidadãos. É nessas instituições que o princípio da igualdade política se concretiza. As instituições igualitárias estão encarregues da tarefa de distribuir amplamente as condições cognitivas de entendimento, para que os indivíduos possuam os meios de aperfeiçoamento da compreensão dos seus interesses e de reflecção sobre os fundamentos e méritos das suas convicções morais politicamente relevantes e sobre o melhor meio de as realizar.
De que modo a ampla distribuição das condições de entendimento promove a igualdade? Aqueles que não sabem que políticas promoveriam os seus interesses ou a sua concepção do que é melhor, é provável que não tenham muito poder real relativamente àqueles que o sabem. Compare-se uma pessoa que não sabe como dirigir, mas que está ao volante de um automóvel, com alguém que tem um carro e sabe como dirigir. A primeira pessoa é impotente por causa da sua ignorância relativa ao modo de usar os recursos que tem ao seu dispor; a segunda, que dispõe dos mesmos recursos, tem o seu controlo. Isto assemelha-se à comparação entre aqueles que votam com base em alguma compreensão real da política e aqueles que têm pouca compreensão. Existe um diferencial de poder considerável, pois, embora o ignorante possa, algumas vezes, ser capaz de impedir o informado de conseguir o que prefere, o ignorante nunca conseguirá o que prefere, a não ser acidentalmente.
Além disso, as concepções confusas ou distorcidas dos interesses próprios ou as pretensões morais de uma pessoa podem minar a sua habilidade para promover fins. Compare-se a pessoa que tem um carro e que sabe como o usar, mas que tem apenas ideias confusas e contraditórias sobre aonde deseja ir, com a pessoa que sabe aonde deseja ir. A primeira pessoa vive uma desvantagem de poder considerável relativamente à segunda. Ela dirigiria em círculos erráticos sem alcançar qualquer fim, enquanto que a segunda pessoa seria capaz de alcançar qualquer fim que desejasse. Esta é uma diferença real de poder.
Por fim, uma pessoa cuja concepção de interesses e objectivos seja alcançada de forma mais ou menos arbitrária estaria em desvantagem em relação à pessoa que pensou sobre os seus objectivos e possui algum fundamento para perseguir seus fins. A pessoa que tem uma concepção muito pouco racional ou irreflectida sobre os seus interesses é uma pessoa que provavelmente não realizará algo valioso para si mesma. Ela estaria facilmente sujeita a confusões, mudanças arbitrárias de opinião, bem como à manipulação por outros. Uma vez que é importante promover os interesses de uma pessoa, bem como os objectivos moralmente valiosos, é importante para ela que tenha alguma compreensão racional dos seus interesses e objectivos.
Para resumir, as instituições democráticas e, em particular, as instituições de discussão e deliberação, têm um amplo impacto relativamente às oportunidades que os indivíduos possuem para reflectir sobre elas e chegar a uma melhor compreensão dos seus interesses e alcançar um ponto de vista mais racional. Portanto, a discussão pública e a deliberação contribuem significativamente para as instituições igualitárias e o princípio da igualdade fornece um argumento racional para a distribuição dos recursos a favor da deliberação igualitária.»
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[1] Veja-se o meu The Rule af the Many, cap. 2 e 8, para um exame extenso da natureza e importância da igualdade no processo de deliberação pública. Sobre outras discussões da igualdade no processo de deliberação, veja-se os ensaios de Jack Knight e James Johnson e de James Bohman em Deliberative Democracy, bem como o ensaio de Harry Brighouse em Social Theory and Practice, 1996, e Charles Beitz, Political Equality. Princenton: Princenton University Press, 1989, cap.8-9.
[1] Veja-se o meu The Rule af the Many, cap. 2 e 8, para um exame extenso da natureza e importância da igualdade no processo de deliberação pública. Sobre outras discussões da igualdade no processo de deliberação, veja-se os ensaios de Jack Knight e James Johnson e de James Bohman em Deliberative Democracy, bem como o ensaio de Harry Brighouse em Social Theory and Practice, 1996, e Charles Beitz, Political Equality. Princenton: Princenton University Press, 1989, cap.8-9.
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