O erro fundamental do igualitarismo radica na suposição de que é moralmente relevante o facto de umas pessoas terem menos do que outras sem que importe quanto tem cada uma delas. Este erro deve-se, em parte, a falsa suposição de que alguém cuja situação económica é pior ter necessidades insatisfeitas mais relevantes do que alguém cuja situação é melhor. De facto, as necessidades moralmente relevantes de ambos os indivíduos podem estar completamente satisfeitas ou igualmente satisfeitas. A questão de saber se uma pessoa tem mais dinheiro do que outra é totalmente extrínseca. Tem que ver com a relação entre os respectivos bens económicos das pessoas, a qual não é independente da quantidade dos seus bens e da quantidade de satisfação que podem obter deles, mas também das atitudes dessas pessoas relativamente a esses níveis de bens e de satisfação. A comparação económica não responde à questão de saber se alguma dessas pessoas comparadas tem alguma necessidade moral relevante insatisfeita, nem sequer a de saber se alguma está satisfeita com aquilo que tem.
Esta falha do igualitarismo aparece claramente na defesa que Thomas Nagel faz da posição. De acordo com Nagel:
A característica essencial de um sistema igualitário de prioridades é considerar que os ganhos de bem-estar daqueles que estão em pior situação são más urgentes que os ganhos de bem-estar daqueles que estão melhor. […] O que faz com que um sistema seja igualitário é a prioridade que se dá à reclamação daqueles que estão […] nos níveis inferiores. […] Cada indivíduo com uma reclamação mais urgente tem prioridade […] sobre qualquer outro indivíduo com uma reclamação menos urgente.[1]
Ao comentar o Princípio da Diferença de Rawls, ao qual adere, Nagel diz que este princípio “estabelece uma ordem de prioridades entre as necessidades e dá preferência às mais urgentes”[2]. É claro que a preferência que na realidade se atribui ao Princípio da Diferença não está a favor daqueles cujas necessidades são mais urgentes; está a favor daqueles cuja situação é pior. Nagel está a supor, sem fornecer qualquer fundamento para isso, que os indivíduos na pior situação têm necessidades urgentes. Na maioria das sociedades, as pessoas que estão em níveis económicos inferiores são, sem dúvida, extremamente pobres e têm, de facto, necessidades urgentes. É claro que esta relação entre posição económica baixa e necessidades urgentes é totalmente contingente. Pode estabelecer-se apenas com base em dados empíricos. Não existe uma conexão conceptual necessária entre a posição económica relativa de uma pessoa e a questão de saber se tem necessidades com algum grau de urgência[3].
É possível que aqueles que estão em pior situação não tenham necessidades ou exigências mais urgentes do que aqueles que estão em melhor situação, porque é possível que não tenham em absoluto necessidades ou exigências urgentes. A noção de urgência tem que ver com o que é relevante. Não é correcto interpretar que as necessidades ou os interesses vitais – que não têm qualquer relação significativa com ela – sejam de alguma forma urgentes ou se relacionem com a classe de reclamações moralmente exigentes que dão origem a uma urgência genuína. Mais ainda, a partir do facto de uma pessoa estar nos níveis inferiores de uma ordem económica, não pode sequer inferir-se que tenha alguma necessidade ou reclamação insatisfeitas. Afinal é possível que as condições dos níveis inferiores sejam bastante boas; o facto de serem as piores não implica em si mesmo que sejam más ou, de alguma forma, incompatíveis com vidas fracamente satisfatórias ou prazerosas.
Nagel defende que o que subjaz ao apelo da igualdade é um “ideal de aceitabilidade para cada indivíduo”[4]. Nos seus trabalhos, este ideal implica que uma pessoa razoável deva aceitar os desvios relativamente à igualdade apenas se estes resultarem no seu benefício, no sentido em que a sua situação seria pior sem elas. Todavia, uma pessoa razoável poderá muito bem considerar aceitável uma distribuição desigual mesmo sem supor que uma outra distribuição o beneficiasse menos. Isto porque pode acreditar-se que essa distribuição desigual proporcionou o suficiente; e seria razoável que estivesse inequivocamente conforme com ela, sem se preocupar com a possibilidade de um qualquer outro arranjo poder proporcionar mais. É gratuito supor que todas as pessoas razoáveis devam estar a procura de maximizar os benefícios que possam obter, o que requereria, num certo sentido, que estivessem continuamente interessadas em melhorar as suas vidas ou abertos a essa possibilidade. Certo desvio relativamente à igualdade poderia não resultar no benefício de alguém, porque poderia acontecer que, de facto, a sua situação fosse melhor sem ela. Contudo, sempre que não provoque um conflito com o seu interesse, ao obstruir a sua oportunidade de levar o tipo de vida que, para ele, é importante levar, o desvio relativo à igualdade pode ser bastante aceitável. Para estar completamente satisfeita com certa situação, não é necessário que uma pessoa razoável suponha que existe uma outra situação em que estaria melhor[5].
Nagel exemplifica a sua tese sobre o apelo moral da igualdade considerando uma família com dois filhos, um dos quais é “normal e bastante feliz” enquanto que o outro “sofre de uma deficiência dolorosa”[6]. Se esta família se instalasse na cidade, o filho com deficiência beneficiaria de oportunidades médicas e educativas inexistentes nos arredores, mas o filho saudável divertir-se-ia menos. Pelo contrário, se a família se instalasse nos arredores, o filho com deficiência estaria em desvantagem, mas o filho saudável divertir-se-ia mais. Nagel defende que seria mais vantajoso para o filho são a família instalar-se nos arredores do que para o filho com deficiência a família instalar-se na cidade: na cidade, o filho saudável encontraria uma vida indubitavelmente desagradável, ainda que o filho com deficiência não fosse infeliz, “mas apenas menos feliz”.
Dadas estas considerações, a decisão igualitária seria a família instalar-se na cidade, já que “seria mais urgente beneficiar o filho [com deficiência] embora o benefício decorrente fosse menor do que o que seria possível dar ao filho [saudável]”. Nagel explica que esta avaliação sobre a maior urgência de beneficiar o filho com deficiência “depende da pior posição do filho [com deficiência]. Uma melhoria da sua situação é mais importante que um ganho igual ou de alguma forma maior da situação do filho [normal]”. Todavia, parece-me que a análise de Nagel sobre este assunto é defeituosa porque comete um erro similar ao que atribui a Dworkin. O facto de ser preferível ajudar o filho com deficiência não se deve, como afirma Nagel, ao facto da sua situação ser pior do que a do outro. Deve-se ao facto de este filho, e não o outro, sofrer de uma deficiência dolorosa. A exigência do filho com deficiência é relevante porque a sua situação é má – significativamente indesejável – e não apenas porque é pior que a do seu irmão.
Assim, isto não implica que a avaliação de Nagel sobre o que deveria a família fazer seja má. Com toda a certeza que recusar o igualitarismo não significa sustentar que seja sempre meramente obrigatório maximizar os benefícios e que, portanto, a família deveria instalar-se nos arredores da cidade porque o filho normal sairia a ganhar mais com essa decisão do que ganharia o filho com deficiência se se instalassem na cidade. Contudo, a base mais convincente para a tese de Nagel a favor do filho com deficiência nada tem que ver com a suposta urgência de dar a uns tanto como a outros. Pertence efectivamente à urgência das necessidades das pessoas que não têm o suficiente[7].»
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[1] Th. Nagel, op. cit., p. 118.
[2] Ibid., p. 117.
[3] Oponho-me à afirmação que defende que quando se trata de justificar as tentativas de melhorar as circunstâncias daqueles cuja situação económica é a pior, uma boa razão para concretizar essa tentativa seja o facto de ser moralmente relevante que as pessoas alcancem a maior igualdade possível relativamente ao dinheiro. A única razão moral urgente para tratar de melhorar a situação dos que estão pior é, penso, que as suas vidas são, em certa medida, vidas más. O facto de algumas pessoas terem mais que o dinheiro suficiente sugerir uma forma em que se poderia fazer com aqueles que tivessem menos que o suficiente obtivessem mais, mas não é em si mesma uma boa razão para a redistribuição.
[4] Th. Nagel, op. cit., p. 123.
[5] Para uma análise mais detalhada, veja-se a secção VII a seguir.
[6] As citações da análise de Nagel sobre esta situação são de Mortal Questions, pp. 123.4.
[7] É claro que a questão da igualdade ou da suficiência que o exemplo de Nagel levanta não diz respeito à distribuição do dinheiro.
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