A ideia fundamental da legitimidade democrática é a de que a autorização para exercer o poder estatal deve surgir das decisões colectivas dos membros da sociedade que são governados por tal poder[1]. Mais precisamente - e afirmado com referência ao carácter institucional da democracia -, a legitimidade emerge das discussões e decisões dos membros da sociedade, quando formuladas e expressas por meio de instituições sociais e políticas designadas para reconhecer sua autoridade colectiva. Este é um enunciado abstracto do conceito de democracia, e é-o deliberadamente. A democracia surge sob várias formas, e concepções mais determinadas de democracia dependem de uma razão de pertença no povo e, correspondentemente, do que nela importa para que uma decisão seja colectiva - formulada pelos cidadãos "enquanto um corpo”.
Considere-se uma comunidade política na qual a adesão a uma doutrina religiosa ou moral abrangente[2], talvez enraizada na tradição nacional, é uma condição de pertença plena. A autorização, então, exigirá uma congruência com essa concepção, e somente as decisões que exibirem tal congruência poderão ser apropriadamente julgadas "colectivas". Por essa razão, o teste para a legitimidade democrática será, em parte, substantivo - dependente do conteúdo dos resultados, e não simplesmente dos processos através dos quais estes são alcançados.
O que acontece, entretanto, quando a ideia de autorização colectiva é estabelecida contra um pano de fundo diferente, onde não existe uma concepção moral ou religiosa abrangente compartilhada, os membros são compreendidos como livres e iguais, e o projecto nacional, enquanto tal, envolve um compromisso de expressar essa liberdade e igualdade no arranjo das instituições e escolhas colectivas?[3] Será que essa mudança no pano de fundo nos conduz a uma visão inteiramente procedimental da democracia e da escolha colectiva? Não creio. Mas, antes de explicar porquê, quero dizer algo sobre o interesse da questão, e os termos em que é colocada.
A minha questão sobre as consequências de uma mudança no contexto é impulsionada pelo propósito de formular uma concepção de democracia condizente com o tipo de diferenciação humana capturada no "facto do pluralismo razoável"[4] - o facto de que há concepções de valor distintas, incompatíveis, cada uma razoável, segundo as quais as pessoas se sentem sob condições favoráveis para o exercício da sua razão prática. A boa-fé no exercício da razão prática por pessoas que estão razoavelmente preocupadas em viver com as outras segundo os termos que estas possam aceitar, não conduz à convergência numa filosofia de vida particular.
A tese do pluralismo razoável é sugerida pela divergência persistente sobre, por exemplo, os valores da escolha e da autodeterminação, a felicidade e o bem-estar, e a auto-realização; as disputas sobre os méritos relativos das vidas prática e contemplativa e a importância do compromisso pessoal e político; e as divergências sobre os panos de fundo filosófico e religioso dessas concepções valorativas. À parte o facto puro do desacordo, não existe qualquer tendência para a convergência gerada pelo exercício da razão prática; além disso, não temos uma teoria das operações da razão prática que nos permita prever a convergência entre moralidades abrangentes, nem consigo imaginar qualquer mecanismo social ou político marginal atraente que poderia gerar tal acordo.
Este facto do pluralismo razoável dá forma à concepção de cidadãos enquanto pessoas livres e iguais que constitui parte da concepção de democracia que quero aqui explorar. Dizer que os cidadãos são livres é dizer, entre outras coisas, que nenhuma visão moral ou religiosa abrangente fornece uma condição definidora de pertença à cidadania ou o fundamento da autorização para o exercício do poder político. Dizer que elas são iguais é dizer que cada uma delas é reconhecida como tendo as capacidades exigidas para participar na discussão em torno da autorização do exercício do poder.
Então, quais são as implicações do pluralismo razoável para uma concepção de democracia? É natural supor que ao excluir um consenso abrangente sobre valores, o facto do pluralismo razoável conduza a uma concepção procedimental de democracia. De acordo com esta concepção, o pedigree democrático subjacente à fonte de legitimidade pode ser estabelecido olhando exclusivamente para os processos através dos quais são tomadas as decisões colectivas e para os valores associados aos processos equitativos: por exemplo, valores de abertura, oportunidades iguais de apresentar alternativas e consideração plena e imparcial de todas as alternativas. O facto do pluralismo razoável parece exigir uma concepção procedimental porque nos priva de um pano de fundo de premissas morais ou religiosas compartilhadas que podem dar um determinado conteúdo à ideia de autorização popular ou restringir a substância de escolhas genuinamente colectivas. Sem esse pano de fundo, pode parecer que fiquemos sem qualquer base para o acordo sobre qualquer coisa a não ser os procedimentos equitativos - e talvez nem mesmo esta.
Acho que esta conclusão não está correcta, e esboçarei uma perspectiva que combina o pressuposto do pluralismo razoável com uma concepção mais substantiva de democracia. Além disso, argumentarei que esta combinação é o resultado natural de um modo particular de pensar sobre a democracia - uma compreensão "deliberativa" das decisões colectivas que constituem a governança democrática. Contudo, antes de discutir a concepção deliberativa, preciso fixar primeiro as preocupações relativas ao procedimento e à substância com precisão, distinguindo uma concepção deliberativa de uma concepção agregativa da democracia, e mostrar de que forma as concepções agregativas conduzem ao procedimentalismo.»
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* Quero agradecer a John Rawls, Charles Sabel, T. M. Scanlon, Cass Sunstein e lris Marion Young pelos seus esclarecedores comentários sobre versões anteriores do presente ensaio. A parte "Democracia deliberativa" baseia-se no meu ensaio "Deliberation and democratic legitimacy", in A. Harnlin e P. Pettit (eds.), The good polity, Oxford, Blackwell, 1989, p. 17- 34. A parte intitulada "Três princípios" tem por base a minha recensão do livro de R. Dahl, Democracy and its critics, New Haven, Yale University Press, 1989, publicada no Journal of Politics, v. 53, n. 1, 1991, p.221-225, bem como meu artigo "Pluralism and procedimentalism”: Chicago-Kent Law Review, vol. 69, n. 3, 1994, p. 589-618. Por último, a parte "A democracia realizada" baseia-se em J. Cohen,] J. Rogers, Democracy and association, Londres, Verso, 1995
* Quero agradecer a John Rawls, Charles Sabel, T. M. Scanlon, Cass Sunstein e lris Marion Young pelos seus esclarecedores comentários sobre versões anteriores do presente ensaio. A parte "Democracia deliberativa" baseia-se no meu ensaio "Deliberation and democratic legitimacy", in A. Harnlin e P. Pettit (eds.), The good polity, Oxford, Blackwell, 1989, p. 17- 34. A parte intitulada "Três princípios" tem por base a minha recensão do livro de R. Dahl, Democracy and its critics, New Haven, Yale University Press, 1989, publicada no Journal of Politics, v. 53, n. 1, 1991, p.221-225, bem como meu artigo "Pluralism and procedimentalism”: Chicago-Kent Law Review, vol. 69, n. 3, 1994, p. 589-618. Por último, a parte "A democracia realizada" baseia-se em J. Cohen,] J. Rogers, Democracy and association, Londres, Verso, 1995
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[1] Governados por "em vez de "atingidos por". A democracia refere-se à justificação da autoridade, e não à justificação da influência. Veja-se Michael Walzer, Spheres of Justice. New York: Basic Books, 1983; e Christopher McMahon, Authority and Democracy. Princeton: Princeton University Press, 1994. Dito de outro modo, a autorização deve surgir da vontade popular, onde "vontade popular" é entendida como indicando a autoridade última e a responsabilidade dos cidadãos como um corpo, não implicando uma classificação colectiva de alternativas que antecede as instituições e busca a expressão autêntica por meio delas. Veja-se William Riker, Liberalism against populism. San Francisco: W. H. Freeman, 1992.
[2] Sobre a noção de doutrina abrangente, veja-se John Rawls. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993, p.13.
[3] A identidade nacional americana é comummente vinculada a tal concepção, como na afirmação de Lincoln de que a nação foi concebida em liberdade e consagrada ao projecto de que todos os homens são criados iguais. Alguns consideram esta abstracta autodefinição nacional como sendo excepcionalmente americana. Considerando as condições conflituosas sob as quais se desenvolveu o nacionalismo, duvido que esta afirmação possa ser mantida sem qualificações substantivas. Afirmações sobre o conteúdo da identidade nacional - como todas as afirmações sobre identidades de grupos - são continuamente contestadas: são tanto movimentos nos conflitos políticos e sociais que buscam estabelecer a autoridade de uma compreensão nacionalista particular quanto manifestações intelectuais. Para cada pessoa que reivindicar que a concepção de pessoas enquanto livres e iguais é estranha à sua identidade nacional particular, podemos sempre encontrar alguém que compartilha a autodefinição nacional e negará a singularidade.
[4] Para uma discussão deste facto, veja-se Joshua Cohen,"Moral pluralism and political consensus”, in The idea of democracy, eds. David Copp, Jean Hampton e John Roemer. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 270-291; John Rawls, Political Liberalism; e Joshua Cohen, "A more democratic liberalism", Michigan Law Review, 92, n. 6, Maio 1994, p. 1502-1546.
[2] Sobre a noção de doutrina abrangente, veja-se John Rawls. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993, p.13.
[3] A identidade nacional americana é comummente vinculada a tal concepção, como na afirmação de Lincoln de que a nação foi concebida em liberdade e consagrada ao projecto de que todos os homens são criados iguais. Alguns consideram esta abstracta autodefinição nacional como sendo excepcionalmente americana. Considerando as condições conflituosas sob as quais se desenvolveu o nacionalismo, duvido que esta afirmação possa ser mantida sem qualificações substantivas. Afirmações sobre o conteúdo da identidade nacional - como todas as afirmações sobre identidades de grupos - são continuamente contestadas: são tanto movimentos nos conflitos políticos e sociais que buscam estabelecer a autoridade de uma compreensão nacionalista particular quanto manifestações intelectuais. Para cada pessoa que reivindicar que a concepção de pessoas enquanto livres e iguais é estranha à sua identidade nacional particular, podemos sempre encontrar alguém que compartilha a autodefinição nacional e negará a singularidade.
[4] Para uma discussão deste facto, veja-se Joshua Cohen,"Moral pluralism and political consensus”, in The idea of democracy, eds. David Copp, Jean Hampton e John Roemer. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 270-291; John Rawls, Political Liberalism; e Joshua Cohen, "A more democratic liberalism", Michigan Law Review, 92, n. 6, Maio 1994, p. 1502-1546.
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