Aqueles que oferecem estas respostas obstinam-se na defesa da singularidade. Não têm em conta a complexidade da sociedade humana, os inevitáveis conflitos que surgem entre obrigações e lealdades. É possível que seja este o motivo pelo qual não me parece atraente a possibilidade de existência de uma quinta resposta, que seja finalmente a correcta, à questão da vida boa. Todavia, esta quinta resposta existe e é a mais recente (ainda que se centre nos temas que foram cruciais para o pensamento social dos séculos XIX e XX). Segundo esta corrente, a vida boa só pode ser vivida no seio da sociedade civil, no âmbito do fragmentário e do conflito, mas também das solidariedades concretas e autênticas. É nela que cumprimos o mandato postulado por E. M. Foster: “conectamo-nos” e convertemo-nos em homens e mulheres comunitários. E isto é, de facto, o melhor que se pode ser. A imagem apresentada neste caso é a de pessoas que se associam livremente e que comunicam entre si, criando e recriando grupos, não para formar associações de um qualquer tipo particular (família, tribo, nação, religião, comuna, irmandade, grupo de interesse ou movimento ideológico), mas pelo mero prazer de exercer a sociabilidade. Porque somos seres sociáveis por natureza e já o éramos antes de sermos seres políticos ou económicos.
Quase me atreveria a dizer que a ideia de sociedade civil, mais do que acabar por ser uma quinta resposta, pode entender-se como uma correcção aplicável às outras quatro ideologias sobre a vida boa, em certa medida negando-as e incorporando-as. Apresenta um desafio à singularidade sem cair nessa mesma singularidade. O termo “ser social” descreve homens e mulheres que podem ser cidadãos, consumidores, produtores, membros de uma nação ou muitas outras coisas, mas que não são nenhuma delas “por natureza” ou porque sê-lo seja o melhor que se pode ser. É no âmbito da vida associativa da sociedade civil que se definem todos os argumentos sobre a vida boa e se põem à prova, acabando assim por serem todos elos parciais, incompletos e, em última análise, insatisfatórios. Pode ser que viver sobre estas bases seja algo bom em si; não há outro lugar onde viver. O certo é que a qualidade da nossa actividade política e económica, bem como da nossa cultura nacional, estão intimamente vinculados à força e vitalidade das nossas associações.
Idealmente considerada, a sociedade civil é, por sua vez, um cenário composto por cenários: todos eles incluídos no conceito, e não existe qualquer preferência por algum em particular. Este argumento é uma versão liberal que engloba as quatro respostas anteriores, aceitando-as a todas, mas fazendo finca-pé no facto de que cada uma delas deve deixar espaço para as outras. Portanto, não aceitando como única qualquer das soluções. O liberalismo aparece aqui como anti-ideologia e isto acaba por ser uma posição atraente para o mundo moderno. Quero sublinhar esta atracção ao explicar como pode a sociedade civil, de facto, integrar e negar as quatro respostas. Contudo, posteriormente, terei que mostrar que esta posição acaba ainda assim por ser tão suave e benigna que não deixa de levantar problemas.
Comecemos pela análise da forma conjunta da comunidade política e da economia cooperativa. Estas duas versões esquerdistas do que é a vida boa subvalorizam, de forma sistemática, toda a associação que não tenha sido integrada pelo demos ou pela classe trabalhadora. Os seus protagonistas são capazes de conceber a existência de conflitos entre comunidades políticas ou classes diversas, mas a coisa muda quando o possível conflito pode ser interno. Quer dizer, tendem a abolir ou transcender o particularismo e todas as divisões que este provoca. Pelo contrário, a liberdade de associação deve servir para legitimar todo o conjunto de regulações do mercado, embora estas não coincidam, necessariamente, com o tipo de regulação capitalista. Não há dúvida de que quanto mais o mercado esteja ancorado na rede de associações, quando maior for a pluralidade das formas de propriedade, mais se aproximará da conformação do económico à ideia de sociedade civil.
Este mesmo argumento serve para legitimar um tipo de Estado que acaba por ser mais liberal e progressista que o do republicanismo (e que não depende tão radicalmente da virtude dos cidadãos). De facto, como veremos, se queremos que surjam as associações, teremos que procurar um Estado assim.
Uma vez incorporadas à sociedade civil, nem a cidadania nem a produção podem voltar a ser protagonistas absolutos. Terão os seus partidários, mas não se converterão em modelos para nós. Em todo o caso, seriam modelos parciais, úteis para algumas pessoas em alguns momentos das suas vidas, mas não em outras. É possível que esta perspectiva pluralista tenha surgido como consequência do desaparecimento deste halo romântico que, em tempos, rodeou o trabalho, ou a partir das nossas experiências com as novas tecnologias produtivas e com o crescimento das economias dos serviços. Quando um número crescente de pessoas trabalha no sector de serviços, acaba por ser mais fácil elaborar uma visão geral da humanidade como um conjunto de animais sociais do que como um agrupamento de homoi faber. O que produz um enfermeiro, um professor primário, um assistente social, um reparador de televisores ou um funcionário? A economia actual não oferece às pessoas muitas possibilidades para serem criativas no sentido marxista. E nem Marx nem qualquer outro pensador socialista clássico teve muito que dizer sobre os homens e mulheres cuja principal actividade económica consista em conceder ajuda a outras pessoas. Estes, da mesma forma que as donas de casa, nunca foram assimilados pela classe trabalhadora.
Paralelamente, o Estado democrático contemporâneo não oferece a muitas pessoas a possibilidade de exercer a auto-determinação rousseauniana. Hoje em dia a cidadania, considerada em si mesma, supõe o desempenho de um papel basicamente passivo: os cidadãos são espectadores que votam. Entre eleições e eleições de funcionários brinda-os um serviço melhor ou pior. Não são como os heróis da mitologia republicana, os cidadãos da antiga Atenas, reunidos na assembleia apara decidir (e cometendo um erro ao fazê-lo, como demonstrarei depois) invadir a Sicília. Todavia, no interior das redes de associações da sociedade civil, nos sindicatos, partidos, movimentos, grupos de interesse, etc, estas mesmas pessoas participam na tomada de decisões menores e de alguma maneira influenciam as decisões que a alta política ou a economia adoptam noutros níveis. E, se existisse uma sociedade civil mais igualitária, mais densa e melhor organizada, seria possível que pudessem participar à vez em ambos os níveis de decisão.
Estes homens e mulheres socialmente comprometidos, chefes sindicais a tempo parcial, activistas de movimentos, simpatizantes de partidos, defensores dos consumidores, voluntários, membros das igrejas, chefes de família, não fazem parte dos cidadãos republicanos segundo a visão tradicional. Exercem a virtude apenas de forma intermitente, estão demasiado atrapalhados com o privado. Querem cumprir objectivos parciais e não globais. Actualmente (a não ser que os Estado lhes fique com o terreno), os cidadãos devem desempenhar uma multiplicidade de papéis (às vezes de forma contraditória) no âmbito do processo de tomada de decisão. De modo similar, a produção fraccionou-se numa multiplicidade de actividades (às vezes antagónicas) que acabam por ser socialmente úteis. Portanto, seria errado considerar a política e o trabalho como opostos. Não existe um cumprimento de objectivos ideal, como não há uma capacidade humana essencial. Precisamos de muitos cenários para poder viver diversos tipos de vida boa.
Sem dúvida que tudo o que foi dito antes não significa que devamos admitir a versão capitalista da divisão e da competitividade. Os teóricos que sustentam que a melhor contribuição para o desenvolvimento da vida boa é o mercado querem que este se converta num cenário a partir do qual se desenvolvam outros tantos aspectos da vida quantos venha a ser possível. O que surge assim é o imperialismo do mercado: para delimitar a sua posição relativamente à que é adoptada pelos estados democráticos que defendem a privatização e o laissez-faire. A sua sociedade ideal é aquela em que os empresários proporcionam aos consumidores todos os bens e serviços que precisam. Que alguns empresários fracassassem e muitos consumidores se sentissem indefesos seria o preço a pagar pela assunção dos sulcos da autonomia individual. Com efeito, já estamos a pagar esse preço: o mercado cria desigualdade em todas as sociedades capitalistas. Quanto maior for o êxito do imperialismo, maior a desigualdade. Contudo, onde o mercado está imbricado com a sociedade civil, é controlado politicamente e permanece aberto às iniciativas, tanto privadas como comunitárias, estes resultados não igualitários podem ser paliados. A natureza exacta dos limites dependeria da força e da densidade das redes associativas (incluindo, neste caso, a comunidade política).
A desigualdade levanta um problema porque não se trata unicamente de haver indivíduos mais capazes do que outros para realizar as suas preferências como consumidores. Não se trata apenas do facto de haver alguns indivíduos que vivam em casas melhores, conduzam automóveis mais potentes ou passem as suas férias em locais mais exóticos. Poderia pensar-se que estes resultados seriam o prémio justo para quem tivesse obtido êxito no mercado. O problema é que, em geral, a desigualdade acaba por se traduzir em dominação e em privações extremas. Efectivamente, neste caso, com o verbo “traduzir” estou a descrever-se um processo socialmente mediado, que se promove ou se limita segundo o modo de estruturação dessa mediação. Existe uma certa tendência para que os indivíduos dominados e pobres não se organizem, ainda que as famílias poderosas, as igrejas, os partidos políticos e as alianças étnicas não saibam ser pobres ou estar submetidos ao domínio durante muito tempo. Estas pessoas não sabem estar sós nem sequer no âmbito do mercado. Segundo a solução capitalista segue-se que, no caso da vida boa baseada na iniciativa empresarial e na livre escolha do consumidor, o protagonista é o indivíduo. Mas a sociedade civil engloba ou pode englobar um número importante de agentes do mercado: negócios familiares, empresas públicas ou privadas, comunidades de trabalhadores, associações de consumidores, organizações não lucrativas de diversos tipos, etc. Todas exercem a sua actividade no mercado ainda que a sua origem lhe seja exterior. E, da mesma forma que a democracia se vê promovida e reforçada graças à acção dos grupos que se inscrevem no Estado sem “ser Estado”, a livre escolha do consumidor vê-se reforçada e ampliada por grupos que fazem parte do mercado sem constituir a sua base originária.
Assim, às organizações que operam a partir do âmbito do Estado sem dele tomar parte, há que acrescentar as diversas organizações do mercado. Deste modo, existem organizações estatais que operam a partir do mercado sem dele tomarem parte. O argumento da sociedade civil relativiza as diferenças existentes entre as formações sociais. Isto significa que toda a formação social pode ser posta sob suspeita. Não se poderia, por exemplo, dizer que as organizações do mercado, na medida em que sejam eficazes, não têm razão para não serem democráticas; ou as empresas públicas, na medida em que exerçam um controlo democrático sobre o seu funcionamento, não devem ver a sua actuação limitada pelas normas gerais do mercado. Assim, é necessário discutir o carácter preciso da nossa vida associativa, e será no decorrer desta discussão que decidiremos o que considerar melhor relativamente às formas possíveis da democracia, à natureza do trabalho, à extensão e aos efeitos das desigualdades geradas pelo mercado, bem como a muitas outras questões.
A qualidade do nacionalismo também é algo que se determina no interior da sociedade civil, que é o lugar em que os grupos nacionais coexistem e se ocultam nas famílias e nas comunidades religiosas (dois tipos de formação social a que se tem prestado muito pouca atenção na altura de formular as respostas modernas à pergunta sobre a vida boa) e onde o nacionalismo se expressa nas escolas, movimentos organizados de ajuda mútua e sociedades de tipo histórico ou cultural. É precisamente o facto de que estes grupos se devem unir a outros similares, mas com objectivos diferentes, aquilo que permite manter viva a esperança de que, no seio da sociedade civil, se possa produzir um nacionalismo “domesticado”. Nos estados dominados por uma só nacionalidade, a multiplicidade de grupos pluraliza a política e a cultura nacional. Naqueles estados em que convivem mais uma nacionalidade, a densidade das redes permite prevenir uma polarização radical.
A sociedade civil, tal como a conhecemos hoje, tem a sua origem nas lutas pela liberdade religiosa. E, embora tenha adoptado frequentemente uma forma violenta, esta luta manteve em aberto a possibilidade da paz, Como escreveu John Locke, referindo-se à tolerância: “O seu estabelecimento acabaria com todo o motivo de queixa e com tumultos baseados em problemas de consciência”. A mim parece-me difícil imaginar queixas e tumultos sem fundamento, mas Locke acreditava (e em grande parte com razão) que a tolerância limaria muitas das asperezas do conflito religioso. Se se elimina o que está em jogo, as pessoas estarão menos dispostas a correr riscos. A sociedade civil não é mais do que esse lugar em que os riscos não são tão altos, e onde, pelo menos em princípio, a coacção se usa apenas para manter a paz e, em cujo seio, todas as associações são iguais perante a lei. Frequentemente, no mercado, a igualdade formal carece de entidade real, mas no âmbito da fé e da identidade, a igualdade é algo bastante real. Se é verdade que as nações não são capazes de encontrar adeptos do mesmo modo que o são (ocasionalmente) as associações de carácter religioso, a necessidade que ambas as organizações têm de dotar os seus membros da capacidade de livre associação obedece a motivos similares. Se são livres para celebrar as suas tradições, honrar os seus mortos e determinar (em parte) a educação dos seus filhos, serão provavelmente mais inofensivos do que se não fossem livres. Talvez Locke o tenha expresso de forma excessivamente brutal quando escreveu: “Só há uma coisa que faz as pessoas unirem-se para criar comoção e revolta, que é a opressão”. É claro que Locke se aproximou suficientemente da verdade para justificar a experiência da tolerância radical.
Mas, se a opressão é causa da revolta, o que causa a opressão? Não há dúvida que poderia contar uma história de carácter muito materialista, mas agradar-me-ia chamar a atenção para o papel aqui desempenhado pela teimosia ideológica: o universalismo intolerante das religiões (ou da maioria delas) e o exclusivismo das nações (ou de muitas delas). Onde há uma sociedade civil, a sua influência parece neutralizar os processos tendentes a gerar opressão. Com efeito, o seu protagonismo é tal que alguns observadores pensam que nem a fé religiosa nem a identidade nacional podem sobreviver num sistema em que exista uma rede de associações livres. Mas é certo que não sabemos até que ponto a identidade e a fé dependem da coacção. Não sabemos se estas associações são capazes de reproduzir-se em condições de total liberdade. Suspeito que estejam vinculadas a necessidades humanas tão profundas que sobreviveriam ao colapso dos seus modos de organização actuais. Em todo o caso, parece que vale a pena esperar e ver o que se passa.»
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