sexta-feira, 27 de junho de 2008

Will Kymlicka, “Direitos Individuais e Direitos de Grupo na Democracia Liberal” (Parte VII)

«Direitos de grupo e direitos individuais

Podemos ver agora que a forma habitual de intitular o debate sobre os direitos de grupo é equívoco. Diz-se frequentemente que os estados liberais enfrentam uma escolha entre um modelo “não discriminatório” (ou um modelo de ”estado neutro”) e um modelo de “direitos de grupo”. Mas o que as pessoas chamam de “estado neutro” pode de facto ser visto como um sistema de “direitos de grupo” que apoia a linguagem, a história, a cultura e a agenda da maioria. Nos Estados Unidos, por exemplo, a política do governo induz sistematicamente todos a aprender inglês e a considerar as suas escolhas vitais vinculadas à participação em instituições linguisticamente anglófonas. Isto é um sistema de “não discriminação” no sentido em que os grupos minoritários não são discriminados relativamente à corrente principal de instituições da cultura maioritária, mas não é “neutra” no sentido da sua relação com as identidades culturais.

Ao contrário, o que as pessoas denominam de modelo de “direitos de grupo” pode de facto ser visto como uma forma mais robusta de discriminação. No fim de contas, os porto-riquenhos nos Estados Unidos ou os francófonos no Canadá que perseguem direitos linguísticos, não estão a pedir qualquer tipo de “direito de grupo” especial não concedido aos anglófonos. Estão apenas a pedir o mesmo tipo de direitos que a cultura maioritária dá como garantidos. Mas como se relaciona tudo isto com os direitos individuais? O reconhecimento de grupos na constituição é frequentemente percebido como uma questão de “direitos colectivos”, e muitos liberais temem que os direitos colectivos sejam, por definição, inimigos dos direitos individuais. Este ponto de vista foi popularizado no Canadá pelo antigo Primeiro-Ministro Pierre Trudeau, que explicou a sua oposição aos direitos colectivos para o Quebéc dizendo que acreditava na “primazia d indivíduo”[1].

Contudo, esta retórica dos direitos individuais contra os direitos colectivos é de pouca utilidade. Precisamos distinguir entre dois tipos de direitos colectivos que podem ser reclamados por um grupo. O primeiro deles implica o direito de um grupo relativamente aos seus próprios membros; o segundo implica o direito de um grupo relativamente ao resto da sociedade. Pode considerar-se que ambos os tipos de direitos colectivos protegem a estabilidade dos grupos nacionais, étnicos e religiosos. Não obstante, respondem a diferentes fontes de instabilidade. O primeiro tipo de direitos destina-se a proteger o grupo do impacto desestabilizador da dissidência interna (quer dizer, da decisão dos integrantes individuais de não observar práticas ou costumes tradicionais), enquanto que o segundo pretende proteger o grupo do impacto de pressões externas (quer dizer, das decisões económicas ou políticas da sociedade em que os incluem). Para distinguir entre estes dois tipos de direitos colectivos chamarei aos primeiros “restrições internas” e aos segundos “protecções externas”.

Ambos os tipos são rotulados como “direitos colectivos”, mas levantam questões bastante diferentes. As restrições internas conjugam as relações intragrupais (o grupo étnico ou nacional pode perseguir a utilização do poder estatal para restringir a liberdade dos seus próprios membros em nome da solidariedade de grupo). Isto levanta o perigo da opressão individual. Os críticos dos “direitos colectivos” invocam frequentemente a imagem de culturas teocráticas e patriarcais no interior das quais as mulheres são oprimidas e a ortodoxia religiosa é legalmente imposta como um exemplo do que pode acontecer quando se concede prioridade aos direitos de comunidade pretendidos relativamente os direitos do indivíduo.

É certo que todas as formas de governo e todo o exercício da autoridade política implicam a restrição da liberdade de quem está sujeito a essa autoridade. Em todos os países, independentemente do seu grau de liberdade ou democracia, exige-se que as pessoas paguem impostos com o fim de custear bens sociais. A maioria das democracias também exige que as pessoas participem na constituição de júris ou que prestem algum tipo de serviço militar ou comunitário. Inclusivamente em alguns países o voto é obrigatório (por exemplo, na Austrália). Todos os governos esperam, e às vezes exigem, um nível mínimo de responsabilidade cívica e de participação por parte dos seus cidadãos. Alguns grupos, contudo, procuram impor restrições muito maiores à liberdade dos seus membros. Uma coisa é exigir às pessoas a sua participação num júri ou em eleições, e outra muito diversa é obrigá-las a assistir a uma determinada cerimónia religiosa ou a desempenhar papéis tradicionais de género. As primeiras exigências pretendem apoiar os direitos liberais e as instituições democráticas. As segundas, restringir estes direitos em nome da tradição cultural ou da ortodoxia religiosa. Para os fins desta discussão empregarei a expressão “restrições internas” para me referir exclusivamente ao último caso, no qual se restringem as liberdades civis e políticas dos membros de um grupo[2].

As protecções externas concernem às relações entre grupos, quer dizer, o grupo étnico ou nacional pode procurar proteger a sua própria existência e particularidade limitando o impacto das decisões da sociedade mais ampla em que se inclui. Isto também comporta certos perigos, já não de opressão individual no interior do grupo, mas de injustiça entre os grupos. Um grupo pode ver-se marginalizado ou segregado em nome da preservação da especificidade de outro grupo. Os críticos dos “direitos colectivos” citam com frequência a este respeito o sistema de apartheid na África do Sul como um exemplo do que pode suceder quando os grupos minoritários exigem protecções especiais relativamente ao resto da sociedade.

Ainda assim, as protecções externas não precisam criar tal injustiça. A atribuição de direitos especiais de representação, de exigências territoriais ou de direitos linguísticos a uma minoria não a coloca necessariamente, e frequentemente não o faz, numa posição dominante face a outros grupos. Pelo contrário, esses direitos podem ser vistos como a colocação em pé de igualdade de diversos grupos entre si, ao reduzir o grau em que o grupo minoritário é vulnerável relativamente ao maioritário. É preciso recordar que as restrições individuais possam existir, e de facto existem, em países culturalmente homogéneos. As protecções externas, contudo, só podem surgir nos estados multinacionais e multi-étnicos, já que protegem um grupo étnico ou nacional particular do impacto desestabilizador das decisões do resto da sociedade[3]
..............
..............................................
[1] P. E. Trudeau, “The Values of a Just Society”, in Thomas Axworthy (ed.). Towards a Just Society, Toronto, Viking Press, 1990, pp. 363-4.
[2] Obviamente que os grupos são livres de exigir acções semelhantes no âmbito da participação em associações privadas e voluntárias. Uma organização caótica pode insistir na assistência à missa dos seus membros. Os liberais insistem em que quem quer que exerça o poder político no interior de uma comunidade deve respeitar os direitos civis e políticos dos seus membros, e qualquer tentativa de impor restrições internas que violem esta condição é ilegítima.
[3] Como discuti na secção anterior, existe um sentido em que o próprio Estado constitui uma protecção externa relativamente ao resto do mundo. Nesta secção, contudo, centrar-me-ei apenas nas exigências feitas pelos grupos étnicos e nacionais com o fim de se protegerem das decisões de outros grupos maiores no interior do mesmo Estado. Este tipo de exigências (ao contrário das restrições internas) apenas podem surgir num país pluralista.
.

Sem comentários: