A posição de que não há verdadeiramente conflito entre determinismo e livre-arbítrio — que o livre-arbítrio e o determinismo são compatíveis — é conhecida como compatibilismo. […] O compatibilismo tornou-se a mais popular doutrina da filosofia moderna porque fornece o que parece ser uma solução clara e simples para o problema do livre-arbítrio. Se não há realmente conflito entre livre-arbítrio e determinismo, como defendem os compatibilistas, então o velho problema do livre-arbítrio está definitivamente resolvido.
O compatibilismo foi defendido por alguns filósofos antigos, como os estóicos, e talvez também por Aristóteles, segundo alguns investigadores, mas popularizou-se durante o século XVII. Filósofos influentes da idade moderna, como Thomas Hobbes, John Locke, David Hume e John Stuart Mill, foram compatibilistas. Encaravam o compatibilismo como a via de reconciliação entre a experiência vulgar da liberdade e a visão científica do universo e dos seres humanos. O compatibilismo continua popular entre os filósofos e cientistas actuais por razões similares. Se os compatibilistas estão certos, podemos ser livres e determinados, e não precisamos de nos preocupar com a possibilidade de a ciência futura vir a destruir a nossa convicção comum de que somos agentes livres e responsáveis.
O compatibilismo foi defendido por alguns filósofos antigos, como os estóicos, e talvez também por Aristóteles, segundo alguns investigadores, mas popularizou-se durante o século XVII. Filósofos influentes da idade moderna, como Thomas Hobbes, John Locke, David Hume e John Stuart Mill, foram compatibilistas. Encaravam o compatibilismo como a via de reconciliação entre a experiência vulgar da liberdade e a visão científica do universo e dos seres humanos. O compatibilismo continua popular entre os filósofos e cientistas actuais por razões similares. Se os compatibilistas estão certos, podemos ser livres e determinados, e não precisamos de nos preocupar com a possibilidade de a ciência futura vir a destruir a nossa convicção comum de que somos agentes livres e responsáveis.
Este é um pensamento reconfortante. Mas será o compatibilismo viável?
[…]
2. Liberdade como ausência de constrangimento
O primeiro passo do argumento compatibilista é levar-nos a reflectir sobre o que queremos dizer habitualmente quando afirmamos que as acções ou escolhas são "livres". O que significa dizer que sou livre de apanhar o autocarro esta manhã? Não significa que realmente apanhei o autocarro, mas que posso escolher não o fazer. Eu sou livre para apanhar o autocarro, se tiver a capacidade ou o poder de o fazer, caso queira ou decida fazê-lo. A liberdade é, então, e em primeiro lugar, um poder ou uma capacidade de fazer alguma coisa, um poder que posso escolher ou não exercer.
Em segundo lugar, este poder ou esta capacidade, é a minha liberdade e implica que não há constrangimentos ou obstáculos que me impeçam de fazer o que quero. Não seria livre para apanhar o autocarro se houvesse impedimentos como, por exemplo, estar na prisão, ou se alguém me amarrasse (constrangimento físico); ou se alguém me estivesse a apontar uma arma, ordenando-me que não me movesse (coacção); ou se não houvesse autocarros hoje (falta de oportunidade); ou se a fobia a autocarros cheios me levasse a evitá-los (compulsão), e por aí adiante.
Organizando agora as ideias, podemos dizer que os compatibilistas defendem que para ser livre, como vulgarmente entendemos, é necessário
1) possuir o poder ou a capacidade de fazer o que se quer ou deseja fazer,
o que por sua vez implica
2) a ausência de constrangimentos ou obstáculos (tais como constrangimentos físicos, coacção, compulsão) que nos impeçam de fazer o que queremos.
Designamos a visão que define liberdade nos termos de 1 e 2 de "compatibilismo clássico". A maioria dos compatibilistas clássicos como Hobbes, Hume e Mill, eram-no neste sentido. Hobbes definiu sucintamente esta visão ao afirmar que um homem é livre quando "não é impedido de fazer o que tem vontade, desejo ou inclinação". E Hobbes acrescentou que se é isto o que significa a liberdade, então a liberdade é compatível com o determinismo. Porque, como defendeu, pode não haver constrangimentos ou obstáculos que impeçam as pessoas de fazer o que "querem ou desejam fazer" mesmo que se venha a verificar que o que querem ou desejam seja determinado pelo seu passado.
Mas não será que a liberdade requer ainda que existam cursos de acção alternativos e consequentemente a liberdade de agir de outra forma? Como encaram os compatibilistas clássicos a liberdade de agir de outra forma? Começam por definir liberdade de agir de outra forma em termos das mesmas condições 1 e 2. És livre de agir de outra forma que não apanhar o autocarro se 1) tens o poder ou a capacidade de evitar apanhá-lo, o que implica 2) que também não existam constrangimentos que te impeçam de não apanhar o autocarro, se assim o quisesses (por exemplo, se ninguém estiver a apontar-te uma pistola, forçando-te a apanhar o comboio).
Claro que a ausência de constrangimentos que te impeçam de agir de outra forma não significa que possas realmente agir de outra forma. Mas, para os compatibilistas clássicos, a liberdade de agir de outra forma significa que terias agido de outra forma (se nada te impedisse) se tivesses querido ou desejado fazê-lo. E afirmam que se a liberdade de agir de outra forma tem este significado condicional ou hipotético (terias… se quisesses), então a liberdade de agir de outro modo também seria compatível com o determinismo. Terias agido de outra maneira se quisesses, ainda que não tenhas de facto desejado agir de outra maneira, e ainda que o que quisesses fazer estivesse determinado.
3. Livre-arbítrio
Será a visão compatibilista clássica da liberdade plausível? Parece captar as liberdades superficiais[…]. As liberdade superficiais são aquelas liberdades comuns como a liberdade de comprar o que queremos, andarmos onde queremos, apanhar os autocarros que queremos, sem que alguma coisa nos impeça. Estas liberdades comuns parecem relacionar-se com 1) o poder ou capacidade de fazer o que se quer e deseja (e o poder de agir de outro modo, se quisermos) e 2) de o fazer sem constrangimentos ou obstáculos que se metem no caminho. Mas se a análise do compatibilismo clássico capta estas liberdades comuns de acção […], será que apreende o sentido "mais profundo" da liberdade, o livre-arbítrio?
O compatibilismo clássico responde a esta questão de duas formas. Primeiro, dizem:
"Tudo depende do que queiras dizer com "livre-arbítrio". Num certo sentido, livre-arbítrio possui um sentido bastante comum. Para a maioria de nós, significa liberdade de escolha ou de decisão. Mas a liberdade de escolha ou decisão pode ser analisada da mesma maneira que nós compatibilistas analisamos genericamente a liberdade de acção. És livre de escolher emprestar dinheiro a um amigo, por exemplo, se 1) tiveres o poder ou a capacidade de escolheres emprestar dinheiro no sentido de que 2) nenhum constrangimento te impede de realizar essa escolha, e se quisesses, em alternativa, nada te impediria de escolher diferentemente (escolher não emprestar dinheiro), se tivesses escolhido diferentemente."
Em suma, os compatibilistas dizem que as escolhas ou decisões livres podem ser tratadas como acções livres ou outros tipos, já que as escolhas ou decisões podem estar sujeitas a constrangimentos tal como outros tipos de acções; e quando as escolhas ou decisões estão sujeitas a constrangimentos, também não são livres. Por exemplo, podes ter sido sujeito a uma lavagem ao cérebro ou ter sido hipnotizado, de tal forma que não conseguirias escolher de outro modo (escolhido não emprestar dinheiro), mesmo se o quisesses. Condições como a lavagem ao cérebro ou a hipnose são dois tipos de constrangimento que podem tirar a liberdade, e por vezes tiram até a liberdade de escolher o que de outro modo teríamos desejado escolher. Quando a lavagem ao cérebro ou a hipnose fazem isto, tiram-nos o livre-arbítrio.
Estamos aqui perante outro exemplo de constrangimento das escolhas ou decisões. Se um homem aponta uma arma à tua cabeça e diz "O dinheiro ou a vida", está apresentar-te possibilidades de escolha. Podes escolher dar-lhe o dinheiro ou arriscar perder a vida. Mas noutro sentido, se acreditares que ele fala a sério, o homem não te deu nenhuma possibilidade real de escolha. A perspectiva de perderes a tua vida é tão horrível que não representa uma verdadeira escolha, pelo que a tua escolha de lhe entregar o dinheiro não é verdadeiramente livre. És coagido, e a coacção é um constrangimento da tua liberdade de escolha ou livre-arbítrio. A acção do ladrão impediu-te de fazer o que de facto querias, que era conservar o dinheiro e a vida.
Então a primeira resposta do compatibilista relativamente ao "livre-arbítrio" é afirmar que se o livre-arbítrio significa aquilo que habitualmente significa — liberdade de escolha e de decisão não constrangida — então o livre-arbítrio pode ser explicado pela análise compatibilista. Terás livre-arbítrio se nada te impedir de escolher ou escolher de outro modo se o desejasses; e se é isto o que livre-arbítrio significa, defendem, então o livre-arbítrio (assim como a liberdade de acção) é consistente com o determinismo.
4. Se o passado tivesse sido diferente
Mas os compatibilistas têm consciência de que muitas pessoas não ficaram satisfeitas com esta concepção de livre-arbítrio como mera escolha ou decisão não constrangida. Por isso dão uma segunda resposta:
"Se ainda não estás satisfeito com esta concepção de livre-arbítrio, então não há dúvida que estás a pensar no livre-arbítrio de uma forma que não a simples capacidade de escolher ou decidir como se quer sem constrangimento. Deves estar a pensar no livre-arbítrio como algo mais "profundo" […]. Como um tipo de controlo último sobre o que desejas ou queres em primeiro lugar: um controlo incompatível com a determinação da tua vontade por qualquer tipo de acontecimentos no passado relativamente aos quais não tens controle. Ora, os compatibilistas podem obviamente apreender este sentido profundo do livre-arbítrio, independentemente do que façamos, porque é incompatível com o determinismo. Mas, como compatibilistas, acreditamos que o tal sentido profundo de livre-arbítrio — ou qualquer tipo de livre-arbítrio que requer indeterminismo — é incoerente. Ninguém pode ter um livre-arbítrio neste sentido mais profundo."
Por que acreditam os compatibilistas que qualquer tipo de livre-arbítrio mais profundo que requeira indeterminismo tem de ser incoerente? Bem, se o determinismo significa (como significa), o mesmo passado, o mesmo futuro, então a negação do determinismo — o indeterminismo — deve significar: o mesmo passado, diferentes futuros possíveis. […] Mas se é isso que o indeterminismo significa — o mesmo passado, diferentes futuros possíveis — o indeterminismo tem consequências estranhas relativamente às escolhas livres. Considere-se […] o caso da Molly a deliberar sobre se deve integrar uma firma de advogados de Dallas ou de Austin. Depois de muito pensar, digamos, Molly decide que a firma de Dallas é o melhor meio para concretizar os seus planos e escolhe-a. Ora, se a sua escolha foi indeterminada, significa que podia ter escolhido outra coisa (poderia ter escolhido a firma de Austin) dado o mesmo passado — uma vez que é isso o que o indeterminismo exige: o mesmo passado, diferentes futuros possíveis. Mas note-se o que esta exigência significa no caso da Molly: exactamente a mesma deliberação prévia, os mesmos processos mentais, as mesmas crenças, os mesmos desejos e outros motivos (nem a mínima diferença!) que conduziram Molly a preferir e a escolher a firma de Dallas, poderiam tê-la conduzido igualmente e em alternativa a escolher a firma de Austin.
Este cenário não faz sentido, afirmam os compatibilistas. Seria absurdo e irracional a Molly escolher a firma de Austin dados exactamente os mesmos motivos e o processo de raciocínio prévio que a conduziram de facto a acreditar que a firma de Dallas era a melhor solução para a sua carreira. Afirmar que a Molly "poderia ter escolhido diferentemente" nestas circunstâncias deve querer dizer outra coisa qualquer, dizem os compatibilistas — outra coisa como: se a Molly tivesse tido crenças e desejos diferentes, ou se tivesse raciocinado de maneira diferente, ou se outros pensamentos tivessem entrado na sua mente antes de ter escolhido a firma de Dallas, então talvez tivesse decidido a favor da firma de Austin e a tivesse escolhido. Mas esta interpretação mais sensível de "poderia ter agido de outra forma", dizem os compatibilistas, significa apenas que a Molly teria agido de outra forma, se as coisas tivessem sido diferentes — se o passado tivesse de alguma forma sido diferente. E esta afirmação, insistem, não entra em conflito com o determinismo. Com efeito, esta interpretação de "poderia ter agido de outra forma" encaixa perfeitamente na análise condicional ou hipotética do compatibilismo clássico — "Molly poderia ter escolhido de outra forma" significa "Ela teria escolhido de outra forma, se o tivesse desejado (se os seus processos mentais tivessem sido de alguma forma diferentes)". E tal hipotética interpretação de "poderia ter agido de outra forma" é, como vimos, compatível com o determinismo.
O primeiro pensamento relativamente a este argumento é que deve haver uma certa forma de avaliar a conclusão de que a escolha da Molly é indeterminada, e devia ser capaz de escolher de outra forma "dadas as mesmas circunstâncias passadas". Mas o que se passa é que não é fácil evitar esta conclusão. O indeterminismo, que é a negação do determinismo, significa "diferentes futuros possíveis, dado o mesmo passado." […] Se a Molly é realmente livre de escolher diferentes opções, ela deve ser capaz de escolher qualquer uma das possibilidades (a firma de Dallas e a firma de Austin), dadas as mesmas circunstâncias passadas até ao momento em que escolhe.
Não nos podemos enganar aqui sugerindo que se o passado tivesse sido ligeiramente diferente, então a Molly poderia ter escolhido diferentemente (escolhido a firma de Austin). Os deterministas e os compatibilistas podem dizer isto: porque insistem que a Molly poderia ter racionalmente escolhido diferentemente apenas se o passado tivesse de alguma forma sido diferente (por mais pequena que fosse a diferença). Mas aqueles que acreditam que as escolhas livres não podem ser determinadas têm de dizer que a Molly poderia ter escolhido diferentemente futuros possíveis, dado o mesmo passado no momento exacto em que escolheu. E isto faz parecer arbitrário e irracional escolher de outra forma nas mesmas circunstâncias.
Em síntese: os compatibilistas têm uma dupla resposta à objecção de que a sua visão apreende a liberdade de acção, mas não o livre-arbítrio. Por outro lado, dizem, se "o livre-arbítrio" significa o que habitualmente entendemos por escolhas e decisões livres (do tipo que não são coagidas ou constrangidas), então o livre-arbítrio pode ser apreendido por uma análise compatibilista e pode então ser entendido como compatível com o determinismo. Por outro lado, se "o livre-arbítrio" tem um significado mais profundo — refere-se a um certo tipo de liberdade "mais profunda" da vontade que não é compatível com o determinismo — então a liberdade "mais profunda" da vontade é incoerente e é algo que, de qualquer forma, não podemos ter.
5. Constrangimento, controle, fatalismo e mecanicismo
Até agora o argumento compatibilista diz-nos que as pessoas acreditam que o determinismo entra em conflito com o livre-arbítrio porque possuem ideias confusas sobre a liberdade. Mas os argumentos compatibilistas sobre a liberdade de acção e o livre-arbítrio são apenas metade da posição compatibilista. Também defendem que as pessoas acreditam erradamente que o determinismo e o livre-arbítrio entram em conflito porque têm ideias confusas sobre o determinismo. O determinismo, insistem os compatibilistas, não é a coisa assustadora que pensamos que é. As pessoas acreditam que o determinismo é uma ameaça à liberdade, porque habitualmente confundem determinismo com um conjunto de outras coisas que são ameaças à liberdade. Mas, de acordo com os compatibilistas, o determinismo não implica estas outras coisas ameaçadoras. Dizem, por exemplo:
Até agora o argumento compatibilista diz-nos que as pessoas acreditam que o determinismo entra em conflito com o livre-arbítrio porque possuem ideias confusas sobre a liberdade. Mas os argumentos compatibilistas sobre a liberdade de acção e o livre-arbítrio são apenas metade da posição compatibilista. Também defendem que as pessoas acreditam erradamente que o determinismo e o livre-arbítrio entram em conflito porque têm ideias confusas sobre o determinismo. O determinismo, insistem os compatibilistas, não é a coisa assustadora que pensamos que é. As pessoas acreditam que o determinismo é uma ameaça à liberdade, porque habitualmente confundem determinismo com um conjunto de outras coisas que são ameaças à liberdade. Mas, de acordo com os compatibilistas, o determinismo não implica estas outras coisas ameaçadoras. Dizem, por exemplo:
1. "Não confundam determinismo com constrangimento, coacção ou compulsão". A liberdade é o oposto de constrangimento, coacção e compulsão, insistem os compatibilistas, mas não é o oposto de determinismo. Constrangimento, coacção e compulsão actuam contra a nossa vontade, impedindo-nos de escolher ou fazer o que queremos. Em contraste, o determinismo não actua necessariamente contra a nossa vontade, nem nos impede sempre de fazer o que queremos. O determinismo causal, para ser exacto, significa que todos os eventos actuais decorrem de eventos anteriores de acordo com leis invariáveis da natureza. Mas, dizem os compatibilistas, é um erro pensar que as leis da natureza nos constrangem. De acordo com A. J. Ayer (um reconhecido compatibilista do século XX), muitas pessoas pensam que a liberdade é incompatível com o determinismo, porque possuem a imagem errada de que somos dominados por causas naturais ou pelas leis da natureza, que nos forçam contra as nossas vontades. Mas, de facto, a existência de leis da natureza diz-nos apenas que certos acontecimentos decorrem de outros acontecimentos de acordo com padrões regulares. Ser governado por leis da natureza não significa viver acorrentado.
2. "Não confundam causalidade com constrangimento". Os compatibilistas também insistem que são constrangimentos e não meras causas de um tipo especial, que ameaçam a liberdade. Os constrangimentos são causas, mas são causas de um tipo especial: impedimentos ou obstáculos relativamente ao que queremos fazer, tal como estar acorrentado ou paralisado. Nem todas as causas são impedimentos à liberdade neste sentido. De facto, algumas causas, como a força muscular ou a força de vontade interior, incitam-nos realmente a agir de acordo com o que queremos. É um erro pensar que as acções não são livres simplesmente porque são causadas. Independentemente de as acções serem ou não livres, dependem do tipo de causas que têm: algumas causas potenciam a nossa liberdade, enquanto que outras (constrangimentos, por exemplo) impedem a nossa liberdade.
Há ainda um outro erro, dizem os compatibilistas, que é o de pensar que, quando agimos ou escolhemos livremente de acordo com a nossa vontade, as nossas acções são totalmente incausadas. Pelo contrário, as nossas acções livres são causadas pelo nosso carácter e motivos, e este estado de coisas é bom. Se as acções não fossem causadas pelo nosso carácter e pelos nossos motivos, não poderíamos ser responsabilizados pelas nossas acções. Não seriam as nossas acções. Este ponto foi defendido numa passagem conhecida de David Hume, talvez o compatibilista clássico mais influente:
"Sempre que as acções procedem não de alguma causa como o carácter e disposição da pessoa que a realizou, não podem servir para as honrar, nem para as censurar, se forem más […] A pessoa não será responsável por elas; e como não procedem de algo delas que seja durável e constante […] é impossível que ela possa ser por si objecto de punição ou vingança."
Os compatibilistas clássicos seguiram Hume defendendo que as acções responsáveis não poderiam ser incausadas; estas acções devem ter o tipo certo de causas — causas que vem do interior dos nossos eus e que expressam os nossos carácteres e motivos, em vez de causas impostas sobre as nossas vontades. É um erro pensar que o livre-arbítrio e o determinismo não são compatíveis porque as acções livres têm de ser incausadas. As acções livres são não constrangidas, e não incausadas.
3. "Não confundam determinismo com controlo de outros agentes". Os compatibilistas podem aceitar (e amiúde aceitam) que ser controlado ou manipulado por outras pessoas funciona de facto contra a nossa liberdade. É por isso que nas utopias da ficção científica, como Admirável Mundo Novo ou Walden II, em que as pessoas são controladas por engenheiros comportamentais ou neurocientistas, parece acontecer uma destruição da liberdade humana. Mas os compatibilistas insistem que o determinismo em si não implica necessariamente que quaisquer outras pessoas ou agentes estejam a controlar o comportamento ou a manipular-nos.
A natureza "não nos controla", diz o compatibilista Daniel Dennett, uma vez que a natureza não é um agente da acção. O que é questionável no controlo de outros agentes, afirma Dennett — sejam engenheiros comportamentais ou de outro tipo — é que as outras pessoas nos estejam a usar como meios para os seus fins, assenhorando-se de nós e acomodando-nos aos seus desejos. Rejeitamos este tipo de interferência. Mas o facto de sermos determinados não implica que quaisquer outros agentes estejam a interferir ou a usar-nos neste sentido. Então os compatibilistas podem rejeitar os cenários de Admirável Mundo Novo e de Walden II, afirma Dennett, sem desistir da sua crença que o determinismo é consistente com a liberdade e com a responsabilidade.
4. "Não confundam determinismo com fatalismo". Esta é uma das confusões mais comuns no debate sobre o livre-arbítrio. O fatalismo é a visão de que o que quer que venha a acontecer, acontecerá, independentemente do que possamos fazer. O determinismo por si não implica esta consequência. O que decidimos e o que fazemos — quase sempre e bastante — influenciam o modo de vir a ser das coisas, mesmo que o determinismo seja verdade. Esta ideia fundamental foi apresentada por outro influente compatibilista clássico:
"Um fatalista acredita […] não só que o que está para acontecer é o resultado infalível das causas que o precederam [que é aquilo que os deterministas acreditam], mas que não adianta lutar contra isso; o que tiver de acontecer, acontecerá por mais que resistamos […] [Assim, os fatalistas acreditam que num homem] o carácter é formado para ele, mas não por ele; pelo que se os seus desejos fossem diferentes, tal seria irrelevante, pois não têm o poder de alterar o carácter. […]"
O determinismo, afirma Mill, não implica que não tenhamos influência sobre o modo como se desenvolvem os acontecimentos, incluindo a formação do nosso carácter. Temos obviamente essa influência, e o determinismo por si só não o determina. Ao contrário, acreditar no fatalismo pode ter consequências fatais. Um homem doente pode desculpar-se por não procurar um médico dizendo: "Se chegar a minha hora, nada haverá a fazer". Ou um soldado pode usar uma frase familiar para justificar o facto de não se ter precavido: "Há por aí uma bala com o meu nome. Quando chegar, não serei capaz de o evitar, faça eu o que fizer." O que Mill está a dizer é que estas afirmações fatalistas não se seguem do determinismo por si só. Pensar que sim é "um grande erro".
As afirmações do homem doente e do soldado são alguns exemplos concretos daquilo que os filósofos antigos designavam de "sofisma preguiçoso" (significando "sofisma" falácia). As respostas adequadas ao homem doente e ao soldado seriam, "Ter ou não chegado a hora depende em grande parte de vir a procurar um médico; e haver ou não uma bala com o seu nome depende das precauções que vier a tomar. Por isso, em vez de ficar sentado sem fazer nada, vá consultar um médico ou tome precauções". Esta seria a resposta que os compatibilistas, como Mill, dariam ao "sofisma preguiçoso". Acreditar que o determinismo é compatível com a liberdade, diriam, não fazem de si um fatalista. Esta crença deve convencê-lo de que a sua vida está, até certo ponto, nas suas mãos, uma vez que o modo como deliberar pode vir no futuro a fazer diferença, ainda que o determinismo seja verdadeiro.
5. "Não confundam determinismo com mecanicismo". Outra confusão comum, de acordo com os compatibilistas, é pensar que se o determinismo é verdadeiro, então todos seríamos máquinas, trabalhando mecanicamente como relógios, robôs ou computadores. Ou, em alternativa, seríamos como amibas ou insectos ou outro tipo de criaturas inferiores que respondem automaticamente, em função de um conjunto fixo de respostas aos estímulos do nosso ambiente. Mas, insistem os compatibilistas, nenhuma destas consequências se segue do determinismo.
Suponha-se que defendemos que o mundo é determinado. Ainda assim haveria uma enorme diferença entre os seres humanos, por um lado, e as amibas e insectos, ou máquinas e robôs, pelo outro. Ao contrário dos mecanismos (mesmo os mais complexas como os computadores) ou robôs, nós possuímos emoções e vida interior consciente, e reagimos ao mundo em função disso. Ao contrário das amibas, dos insectos e outras criaturas deste tipo, não reagimos ao ambiente de forma meramente instintiva e automática. Raciocinamos e deliberamos, questionamos os nossos motivos, reflectimos sobre os nossos valores, fazemos planos para o futuro, reformamos os nossos caracteres, e fazemos promessas uns aos outros que depois nos sentimos obrigados a cumprir.
O determinismo não recusa estas capacidades, defendem os compatibilistas, e são estas capacidades que nos tornam seres livres e responsáveis, capazes de acções morais — de uma forma que os mecanismos e os insectos não são. O determinismo não implica comportamento mecânico, inflexível, ou até automático. O determinismo é consistente com todo o espectro de complexidade e flexibilidade do comportamento dos seres vivos, desde os mais simples como as amibas até aos seres humanos. A complexidade e os graus de liberdade das criaturas do mundo, das amibas aos seres humanos, podem diferir incrivelmente, mas ainda assim estas propriedades podem ser determinadas.»
Kane, Robert (2005). A Contemporary Introduction to Free Will. New York: Oxford University Press, pp. 12-22 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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