«Quando se diz que o homem não é um agente livre, não se está a compará-lo a um corpo que se move unicamente por um simples impulso causal: o homem contém nele próprio causas inerentes à sua existência; é movido por um órgão interno, que obedece a leis particulares e que é necessariamente determinado pelas representações que ele forma a partir das percepções que resultam das sensações que recebe dos objectos externos. Dado que desconhece o mecanismo destas sensações, destas percepções e do modo como as representações são gravadas no seu cérebro, e porque é incapaz de decifrar estes movimentos, por não ver a cadeia de operações na sua alma, ou o motivo principal que actua sobre ele, vê-se a si próprio como agente livre, o que, em tradução literal, significa que se move a si mesmo por si mesmo, que se determina sem causa, quando deveria dizer que ignora como e por que motivo age como age. É verdade que a alma goza de uma actividade peculiar para si mesma, mas é igualmente certo que esta actividade nunca seria visível se algum motivo ou causa não estivesse na sua origem; pelo menos, não se pretenderá que a alma possa amar ou odiar sem motivo, sem conhecimento dos objectos, sem alguma ideia acerca das suas qualidades. A pólvora tem inquestionavelmente uma actividade particular, mas esta nunca se exibirá por si mesma, a não ser que se aplique fogo, o que imediatamente a colocará em movimento.
É a grande complicação do movimento no homem, é a diversidade da sua acção, é a multiplicidade das causas que o movem, simultânea ou sucessivamente, que o persuade de que é um agente livre; se todos os seus movimentos fossem simples, se as causas que o movem se não confundissem entre si, se fossem distintas, se a sua máquina fosse menos complicada, compreenderia que todas as suas acções são necessárias, porque seria incapaz de regredir instantaneamente à causa que o fez agir. Um homem que está sempre obrigado a dirigir-se para oeste, irá sempre para esse lado; mas sentirá que ao fazê-lo nunca será um agente livre; se visse os seus sentidos, como as suas acções ou os seus movimentos, aumentados para seis, seria mais diverso e mais complexo, pelo que teria ainda mais razões para acreditar ser um agente mais livre do que com cincos sentidos.
É então por querer regredir às causas que o movem, por causa de ser capaz de analisar, por não ser competente para decompor os movimentos complexos da sua máquina, que o homem acredita ser um agente livre. É apenas sobre a sua própria ignorância que ele encontra a noção profunda, mas enganadora de que é um agente livre; que constrói aquelas opiniões que apresenta como provas irrefutáveis da sua pretensa liberdade de acção. Se, por um curto período de tempo, cada homem fosse capaz de examinar as suas acções particulares, de procurar os verdadeiros motivos para descobrir a sua conexão, ficaria convencido de que o sentimento que tem de ser naturalmente um agente livre não é mais do que uma quimera que a experiência deve rapidamente destruir.
Ainda assim, deve reconhecer-se que a multiplicidade e a diversidade de causas que actuam continuamente sobre o homem, frequentemente sem o seu conhecimento, tornam impossível ou pelo menos extraordinariamente difícil para ele remontar aos verdadeiros princípios das suas acções peculiares, quanto mais às dos outros; frequentemente dependem de causas tão fugazes, tão remotas relativamente aos seus efeitos, que, quando são superficialmente examinadas, parecem tão pouco aparentadas, com tão pouca relação entre si, que seria necessária uma sagacidade bastante singular para as esclarecer. É isto que torna o estudo do homem moral uma tarefa tão complexa; é esta a razão pela qual o seu coração é um abismo, no qual lhe é frequentemente impossível sondar a profundidade. Está então obrigado a contentar-se com o conhecimento das leis necessárias e gerais que regulam o coração humano; para os indivíduos da sua própria espécie estas leis são quase as mesmas, variando apenas em consequência da organização que é específica de cada indivíduo e da modificação que sofre; isto, contudo, não pode ser rigorosamente idêntico em quaisquer dois indivíduos. É suficiente saber que, em razão da sua essência, o homem tende a preservar-se e a tornar a sua existência feliz; garantido isto, sejam quais forem as suas acções, se recuar até ao primeiro princípio, até essa tendência geral e necessária da sua vontade, nunca poderá iludir-se relativamente aos seus motivos.»
Paul Henri D'Holbach, Excerto do Capítulo 11 ("Du Systême de la Liberté de l'Homme") da Parte 1 de Système de la Nature ou des Loix du Monde Physique et du Monde Moral (1770). Retirado de "Of the System of Man's Free Agency" in Pojman, Louis P. (2006). Philosophy: The Quest for Truth. 6.ª ed. Nova Iorque: Oxford University Press, pp. 350–354 (Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira)
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