terça-feira, 1 de julho de 2008

Thomas Christiano, “A Importância da Deliberação Pública” (Parte VII)

«Problemas de coerência na concepção justificatória

O procedimento deliberativo ideal é um modelo para as instituições de tomada de decisão colectiva; não é uma situação inicial na qual agentes idealizados definem os princípios para instituições justas da sociedade. As instituições democráticas reais são justificadas na medida em que se assemelham ou se aproximam do procedimento deliberativo ideal. Consequentemente, Cohen tenta reconhecer a divergência mesmo no procedimento deliberativo ideal. Isto é uma concessão apropriada à realidade básica da política, uma vez que um modelo ideal do processo democrático deve dizer-nos como decidir quando permanecem divergências. A discussão apenas elimina diferenças de opinião sobre questões de política. Frequentemente, produz mais divergência e diversidade de opinião, ainda que remova formas notórias de ignorância e de concepções de justiça arbitrárias. Há inúmeros problemas que surgem quando se tenta resolver o modo como a relação de aproximação ao modelo se deve realizar, mas não me concentrarei nisto aqui[1]. A minha preocupação agora é com o próprio ideal. Parece cair nalgum tipo de incoerência.

O principal enigma deste ideal pode ser expresso nas quatro proposições que são dadas na descrição que Cohen faz do procedimento deliberativo ideal:

1. Os resultados do procedimento deliberativo ideal são os termos politicamente justificados da associação aos seus membros.

2. Cada membro apresenta sugestões e decide com base no que acredita ser a explicação da justiça e do bem comum politicamente justificada para aquela associação.

3. No final, os membros divergem frequentemente sobre o que está politicamente justificado mesmo no caso ideal e devem concluir a sua deliberação através do voto da maioria.

4. Nada há de especialmente importante acerca da regra da maioria, excepto tratar-se de um meio para evitar o bloqueio total do sistema.

Estas proposições são todas expressas na descrição de Cohen e, contudo, parece que não podem ser todas verdadeiras. Pois se os cidadãos divergem quanto ao que está politicamente justificado e votam com base na regra da maioria, então aqueles que estão em minoria não podem considerar que o resultado escolhido pela maioria esteja politicamente justificado. A consequência disso é que os membros da minoria não podem considerar directamente o procedimento deliberativo ideal como definitivo para a justificação política. Eles devem avaliar o processo democrático em termos dos padrões que são independentes desse processo. Eles elaboram a sua própria concepção minoritária como uma explicação do que é politicamente justificado.

É claro que podemos demonstrar que esta conclusão é errada de uma das formas seguintes: ou o procedimento não determina o que está politicamente justificado (negação de 1); ou os membros não tentam alcançar concepções que sejam politicamente justificadas - isto deve ser deixado ao próprio procedimento (negação de 2); ou o procedimento deliberativo ideal deve acabar sempre num certo tipo de acordo que seja de alguma forma suficientemente convincente para legitimar os resultados, apesar da divergência (negação ou refinamento de 3); ou, finalmente, os membros vêem a regra da maioria como possuindo por si mesma algum tipo de função de legitimação, por exemplo, segundo as razões de uma explicação rousseauniana do valor epistêmico da regra da maioria (negação de 4).

Vamos assumir, por enquanto, que estamos a tentar chegar à noção de justificação política e que pelo menos um acordo forte quanto aos resultados é impossível. Assim, começaremos pela negação de 2. Podemos distinguir entre justificação e justificação política do seguinte modo. Os membros justificam as suas propostas entre si quando oferecem razões uns aos outros para as aceitarem. Não é necessário que as razões sejam conclusivas ou persuasivas; assim, quando um membro apresenta a outro uma razão a favor da sua proposta, este não precisa estar persuadido. A justificação política, pelo contrário, consiste no facto dos membros persuadirem sucessivamente outros membros acerca do valor das suas propostas através de uma argumentação racional. Posso considerar que uma política está justificada porque posso dar o que considero serem boas razões para essa política. No entanto, posso não achar que a política deva ser escolhida pela associação, a não ser que outros tenham sido persuadidos racionalmente da sua bondade, por outras palavras, a não ser que tenha sido politicamente justificada. Ao usar esta distinção, podemos ver que a minoria pode pensar que as suas propostas estão justificadas, mas não politicamente justificadas. E podem pensar que as suas políticas devem ser politicamente justificadas antes de serem aprovadas.

A questão que se levanta é a de saber quando é que as concepções da maioria estão politicamente justificadas. A maioria vê-se a si própria como estando justificada do mesmo modo que a minoria se vê a si própria como estando justificada. Contudo, ela não persuadiu a minoria. Segue-se que a maioria falhou na justificação política da sua posição. A minoria deve ver-se a si mesma como não participante do processo que resulta em justificação política. O único modo pelo qual uma política pode ser politicamente justificada à minoria é quando esta tiver sido racionalmente persuadida[2].

Uma segunda opinião é a de que o defensor da concepção justificatória pode negar ou refinar 3, e dizer que o procedimento deliberativo ideal deve conduzir a um consenso, mas de um tipo fraco, e que é em virtude desse consenso fraco que o processo resulta em justificação política[3]. Uma terceira opção é a de que o defensor pode dizer que a justificação política apenas exige que a maioria seja racionalmente persuadida e que seja feito algum esforço para persuadir os demais. Como uma quarta opção, o defensor pode apelar à necessidade como um meio de justificar a imposição de uma decisão sobre uma minoria discordante.»
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[1] Para uma crítica desta explicação, veja-se The Rule of the Many, cap. 1, pp. 37-43.
[2] Podemos aqui introduzir uma qualificação tendo em vista que, se a minoria não está persuadida porque é irracional ou irrazoável, então isto também não contará contra a justificação política. Ver Gerald Gaus, Justificatory liberalism: an essay in epistemology and politics. Oxford: Oxford University Press, 1996, para a defesa de uma qualificação deste tipo. Não penso que esta qualificação afecte o argumento que estou a oferecer.
[3] Gaus, em Justificatory liberalism, descreve o que chama de "justificação inconclusiva aninhada" na p. 189. Veja-se também Joshua Cohen, "Liberty, equality and democracy': conferências não publicadas proferidas na Universidade de Stanford, Agosto 1996, p. 26, 105. Veja-se também o texto de Cohen "Procedimento e substância na democracia deliberativa", neste volume.
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