sábado, 12 de junho de 2010

Será a clonagem de seres humanos moralmente permissível? Porquê?

O presente ensaio tem como objectivo a resposta à questão: “Será a clonagem de seres humanos moralmente permissível? Porquê?”, fornecida após o esclarecimento do conceito de “clonagem” e exposição de vários argumentos favoráveis e contrários a esta prática.
Espero conseguir fornecer uma resposta concreta e justificada a esta questão tão discutida, tendo em conta os argumentos filosóficos seguidamente apresentados.
Antes de mais, importa esclarecer que por clonagem se entende o “processo de obtenção de indivíduos ou populações por reprodução vegetativa ou assexual de um único indivíduo” ou ainda a “introdução de informação genética numa célula de modo a repetir essa informação” (Dicionário da Língua Portuguesa, 2004: p. 369).
Leon R. Kass considera a clonagem eticamente reprovável e, para provar a sua tese, recorre, essencialmente, a dois conjuntos argumentos. O primeiro refere que a clonagem é má em si mesma, pois é um fenómeno que cria, transversalmente, sentimentos como a revolta e repulsa. Parece, então, que Kass ingressará no domínio das emoções, mas ele próprio defende que apesar de o seu argumento ser de ordem racional, é justificado. Tal como qualquer pessoa toma como repugnantes e condena certos actos praticados em privado (por exemplo, o incesto, o canibalismo ou a violação de alguém), também assim considera a clonagem de seres humanos. Diz Kass que “sentimos repulsa pela possibilidade de clonar seres humanos (…) porque intuímos e sentimos imediatamente sem necessidade de argumentos, a violação de coisas que consideramos e bem serem preciosas.” (Leon Kass, 2002: p. 1)
De seguida, Kass disserta sobre a “profundidade do sexo”, que ele aponta como sendo algo divino e transcendente. A reprodução sexual implica, então, duas pessoas de sexo diferente, tratando-se de um acto natural, onde o objectivo primordial é a geração, a criação de um indivíduo. Pelo contrário, a clonagem visa a produção de um dado sujeito, logo, é errada, pois perverte a natureza da reprodução sexual, que, em última análise é uma forma de fugir à mortalidade, pois um filho carrega o legado dos seus ascendentes.
Kass apresenta também argumentos de natureza consequencialista, uma vez que avalia eticamente a clonagem, tendo em conta as suas consequências que, sendo más, também a tornam má, reprovável. O autor começa por afirmar que “qualquer tentativa para clonar um ser humano constitui uma experiência anti-ética para a criança que irá nascer” (Leon Kass, 2002: p. 5), ou seja, a clonagem é má para o clone, pois, para além dos riscos de deformações, este não consentiu ser produzido através de tal processo. Por estas razões, o clone poderá sentir que tem uma vida miserável, onde se depara com constantes problemas de identidade e de individualidade, para além da pressão que os pais, ou melhor, os seus artífices exerceriam sobre si. Existe aqui um certo despotismo, na medida em que um indivíduo pretende construir o outro à imagem de alguém, condicionando o seu futuro.
Terminadas as duas linhas centrais da argumentação de Kass contra a clonagem, este mencionará ainda algumas teses daqueles que defendem esta prática, afirmando, entre outras coisas, que o argumento de que o nosso direito à liberdade reprodutiva garante o direito à clonagem incorre numa falácia vulgarmente conhecida como “bola neve”, acreditando, ainda, que a pesquisa de embriões jovens clonados deve ser proibida.
Tal como Kass, também Jeremy Rifkin se opõe à clonagem humana, exprimindo a sua preocupação com o “aumento da bio-industrialização da vida pela comunidade científica e das companhias de investigação científica e […] com a possibilidade dos embriões de clones humanos poderem ser patenteados e declarados ‘invenções’ humanas” (Jeremy Rifkin, 2005: p.1). Rifkin receia que a vida se transforme num mero produto industrial.
Parafraseando Kass, também Rifkin entende a sexualidade como um acto de criação e não como um acto de produção que é possível devido à tecnologia. Do ponto de vista ético e político, a clonagem é errada porque se patenteia não só a tecnologia, mas também o resultado, que é o embrião. Diz Rifkin que “a criança já não é uma criação única – insubstituível – mas o resultado de um acto de engenharia” (Jeremy Rifkin, 2005: p. 3). Este facto leva a que se receie a criação de um “exército” formado com recurso à eugenia, onde se poderiam escolher as características de cada “produto”.
Para além de se deduzir a obtenção de lucros como um dos objectivos primordiais das empresas que patenteiam uma dada produção, constata-se também um retrocesso civilizacional decorrente deste processo. Ao reclamar como seu o clone por si produzido, a empresa assume essa nova vida individual potencial como sua propriedade, o que representa, de certo modo, uma outra forma de escravatura. Não é só este retrocesso que constitui uma ameaça, mas também a possibilidade de entregar a criação humana (que nesta fase já é apelidada de produção) ao poder da tecnologia e da indústria.
A par com Michael Tooley, John Harris possui o ónus da prova desta controversa temática que é a clonagem, uma vez que é aos defensores desta prática que cabe demonstrar que as suas teses são verdadeiras.
Harris inicia a sua argumentação com a evocação das principais objecções à clonagem humana, sendo que quanto à que se relaciona com a segurança, o autor esclarece de imediato que se trata de uma contestação que se aplicaria não só a esta temática, mas também a muitas outras, sendo necessário avaliar os ganhos que resultariam de uma dada prática, cuja segurança é posta em causa.
Também as expectativas parentais se verificam em famílias cuja descendência se deve à reprodução sexual, uma vez que todos os pais têm expectativas desconformes relativamente aos filhos. A confusão e ambiguidade nas relações familiares poderão também existir quando crianças assistem ao divórcio dos pais, são adoptadas, ingressam numa família de acolhimento ou são geradas com recurso à reprodução assistida (Cfr. John Harris, 2005: p.4). O problema da não-identidade também é ultrapassado, dado que, por mais miserável e prejudicado que um filho se sinta, isso só revela que ele existe, o que parece ser melhor do que não existir.
Apesar do que se objecta quanto à nocividade da cópia do genoma humano, afigura-se óbvio que esta é uma situação já conhecida pelo Homem, dada a existência de gémeos idênticos. O autor afirma mesmo que “Os gémeos idênticos são clones naturais” (John Harris, 2005: p. 6), conservando a sua individualidade, uma vez que o genótipo não determina os traços caracterizadores de um indivíduo. Também a dignidade é preservada desde que o clone, ao dar o seu consentimento, não seja usado exclusivamente como meio, mas também como fim. O genoma humano é resguardado, apesar da sua repetição, que não implica a sua variabilidade. O direito dos pais também se encontra assegurado pois, em última análise, visto que o dador de núcleo resulta de dois indivíduos com características genéticas diferentes, também o clone contém em si duas informações genéticas distintas, embora seja criado apenas com uma figura parental ou de referência, o que não condiciona a sua felicidade.
Como defensor que é da clonagem, Harris apresenta vários benefícios desta prática, nomeadamente a possibilidade de se ter filhos com laços genéticos com progenitores que, de outra forma (mais “convencional”, digamos), não poderiam dar origem a uma nova vida ou teriam receio de contagiar a criança com uma doença; é também possível, através da clonagem terapêutica, criar células estaminais que, mais tarde, poderiam vir a ser usadas em terapias regenerativas ou para aumentar a vida humana. Eliminando a linha que divide células germinais e somáticas, será possível clonar repetidamente uma célula geneticamente modificada e assim passar o genoma modificado para o clone, curando deficiências.
A argumentação de Harris só se completa depois de este recorrer aos argumentos de Rifkin contra a clonagem que, claro está, se opõem claramente aos seus e à sua posição. A divisão que este último faz entre os dois usos da biotecnologia (aquela que contribuirá para a cura e uma outra para a prevenção de doenças) é alvo de crítica de Harris que defende não se poder fazer uma escolha entre ambas, pois quer se enverede por uma opção ou por outra, haverá sempre más consequências logo não há razão para descartar pesquisas biotecnológicas e rejeitar a prática da clonagem.
A visão do indivíduo como propriedade intelectual, pertencente e controlado por uma empresa é também criticada por Harris, uma vez que o facto de se registar uma patente não envolve qualquer tipo de escravatura nem de pertença física, não havendo também qualquer interferência na natureza humana do clone, a quem se darão explicações relacionadas com a sua criação que não incluem nenhuma alusão a Deus, mas sim esclarecimentos mais precisos.
Já Michael Tooley, ao longo da sua argumentação, reconhecerá que “o uso actual da clonagem para produzir pessoas seria moralmente problemático” (Michael Tooley, 2002: p. 12), mas não intrinsecamente errado. Procura, então, responder à objecção de que cada pessoa tem direito a uma natureza genética única, defendendo que a unicidade genética não é relevante, uma vez que são as acções motivadas por diversos factores (tempo, espaço, educação,…) que apresentam maior importância no percurso de vida de um dado sujeito. Veja-se o caso dos gémeos idênticos, cujas vidas não são menos valiosas apenas porque apresentam códigos genéticos iguais. Não tendo este facto qualquer impacto na vida dos gémeos nem dos clones, poderia ainda apresentar vantagens, no sentido em que se fôssemos todos geneticamente semelhantes, encontrar-nos-íamos em igualdade de circunstâncias, e os problemas de identificação também estariam resolvidos com a variação de apenas um dado gene ou um conjunto de genes. Respondendo a uma outra objecção, o autor defende que o clone não está sujeito ao determinismo genético e pode construir livremente o seu próprio futuro.
Quanto às vantagens resultantes da clonagem, poder-se-á apontar que esta contribuirá para um melhor conhecimento no ramo da psicologia, para uma melhor sociedade, se clonássemos alguém que singrou na vida e deu importantes contributos à Humanidade, dado que com “o ambiente apropriado, o resultado seria o de que o indivíduo pudesse vir a alcançar grandes feitos que beneficiariam a sociedade de formas significativas” (Michael Tooley, 2002: p. 6).
A clonagem permitiria a existência de pessoas que gozariam de uma maior felicidade e saúde, mas também a escolha dos traços mais desejáveis para os filhos, que teriam igualmente uma melhor educação da parte dos pais, que, com grande semelhança psicológica, os compreenderiam melhor. Casais inférteis e homossexuais teriam também a possibilidade de originar e criar filhos. Esta polémica prática seria ainda útil para clonar uma pessoa doente, que pudesse colaborar na sua cura.
Tooley retoma as objecções à posição de que ele é partidário, propugnando, entre outras teses, a criação de um banco de órgãos útil para salvar vidas. Num nível mais popular, a “objecção do tipo Maravilhoso Mundo Novo” é infundada, pois a clonagem não terá como fim servir a escravatura ou a formação de um exército ditatorial, tal como as perturbações psicológicas não se verificarão no clone, se este perceber que os seus sentimentos de falta de individualidade são irracionais.
Tal como Harris, Tooley também vê o clone como fim em si mesmo, ainda que tenha sido produzido com o objectivo de salvar alguém. Mais, defende o autor que o clone não está privado da sua autonomia pessoal pois os pais, tal como os progenitores de crianças geradas “naturalmente”, apenas procuram incutir nos filhos a melhor educação e cultivar neles vários interesses benéficos, de forma a que eles concretizem as suas expectativas.
Considerados todos os argumentos, responderei à questão inicialmente colocada (“Será a clonagem de seres humanos moralmente permissível? Porquê?”), defendendo que, na minha opinião, a clonagem humana reprodutiva é uma prática reprovável do ponto de vista ético, pois a individualidade e a identidade são características inerentes ao ser humano, que acredito serem postas em causa pela clonagem, por muito que se alegue que esse problema estará resolvido. Cada um de nós tem direito a uma vida única e a Humanidade tem direito à diversidade natural que proporcionará o seu progresso.
Após análise dos textos de Kass, Rifkin, Harris e Tooley, exposição das ideias centrais dos mesmos e respectivas tentativas de explicação, julgo ter conseguido elaborar uma resposta consistente à questão central do ensaio, provando, julgo eu, de forma inequívoca o meu ponto de vista.
Acrescente-se a estas razões, o facto de o meu conhecimento sobre a clonagem ter aumentado significativamente, o que me leva a fazer um balanço positivo deste trabalho.
Dada a minha escassa experiência na redacção de ensaios filosóficos, alguns aspectos poderiam ser aperfeiçoados, mas esse progresso ficará para uma próxima oportunidade em que eu possa desenvolver um trabalho igualmente enriquecedor.

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Bibliografia

Dicionário da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2004. ISBN 972-0-01125-4
Jeremy Rifkin, “Why I Oppose Human Cloning” in Cohen, Andrew I. & Wellman, Christopher H. (eds) (2005). Contemporary debates in applied ethics. Malden: Blackwell Publishing, pp. 141-4 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
John Harris, “The Poverty of Objections to Human Reproductive Cloning in Cohen, Andrew I. & Well man, Christopher H. (eds) (2005). Contemporary debates in applied ethics. Malden: Blackwell Publishing, pp. 145-55 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Leon R. Kass, “The Wisdom of Repugnance”, in Olen, Jeffrey & Barry, Vincent (2002). Applying Ethics. A text with readings. Belmont: Wadsworth, pp. 275-87 (traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
Michael Tooley, “Moral Status and Cloning Humans” in Olen, Jeffrey & Barry, Vincent (2002). Applying Ethics. A text with readings. Belmont: Wadsworth, pp. 287-98 (traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)
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Ana Grifo - 11º C

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