segunda-feira, 31 de março de 2008

Philippa Foot, "Eutanásia" (Parte X)

«Nada mais nos resta acrescentar sobre a relação da caridade com a eutanásia involuntária passiva, que não é regulada pelo direito à vida, tal como o é a eutanásia involuntária activa. O que pode, no entanto, esclarecer a caridade sobre a eutanásia voluntária passiva e activa? Quando analisámos a questão da justiça, sugerimos que alguém, se na posse plena das suas faculdades mentais, poderia exprimir de forma serena o seu desejo no sentido de outras pessoas lhe permitirem tirar a própria vida ou o ajudassem morrer, sendo que caso contrário essa ideia estaria fora de questão. Foi, no entanto, referido que este facto não determinaria a questão da aceitabilidade moral, o que devemos agora analisar. Será que a caridade não pode defender princípios divergentes da justiça? De facto, pode. O facto de alguém desejar morrer parece sugerir que a sua vida é miserável, e apesar da sua recusa em viver o poder privar das coisas que poderia ter usufruído, o seu desejo de morrer pode, nestas circunstâncias, ser oposto ao seu próprio bem, tal como o seria se se tratasse de suicídio. Talvez possamos ter esperança que o seu estado de espírito melhore. Talvez esteja errado ao pensar que a sua doença é incurável. Talvez queira morrer pelo bem de alguém para quem julga ser um fardo, e nós não estamos preparados para aceitar o seu sacrifício, seja por nós próprios ou por outros. Em casos como este, e provavelmente há muitos, não seria em prol do seu próprio bem que desejamos ou permitimos que morra, e, consequentemente, a eutanásia, tal como aqui é definida, não seria uma opção. Com isto não pretendemos negar que existam casos de eutanásia voluntária activa e passiva, contra as quais nem a caridade ou a justiça poderiam opor-se.
Acabamos de considerar a legitimidade moral da eutanásia voluntária, involuntária, activa e passiva. E chegámos à conclusão que a eutanásia involuntária activa (em termos gerais, matar alguém contra o seu desejo ou sem o seu consentimento) nunca é justificada; isto é, a morte de uma pessoa para o seu próprio bem nunca justifica o acto a não ser que o seu consentimento tenha sido expresso. Os direitos de uma pessoa serão violados com tal acto, e, por isso, é contrário à ideia de justiça. Todavia, todas as outras possibilidades, eutanásia involuntária passiva, eutanásia voluntária activa e eutanásia voluntária activa, são por vezes compatíveis com a ideia de justiça e caridade. Porém, não nos podemos esquecer das condições de peso que acompanharam a definição de eutanásia proposta neste ensaio; entendemos um acto de eutanásia como aquele que é empreendido para o bem daquele que vai morrer.
Vejamos como a nossa tese se aplica às práticas correntes. São estas boas ou más? E que mudanças devem ser operadas, pensando agora não só na questão da moralidade de determinados actos de eutanásia, mas também nas consequências indirectas em se adoptarem práticas diversas, nos abusos que daí podem decorrer e nas mudanças que podem resultar caso a eutanásia seja reconhecida como parte das práticas sociais.
A primeira ideia que nos surge é que é errado interrogarmo-nos se deveríamos introduzir a prática da eutanásia, como se fosse algo que não existe de facto. Por exemplo, sempre que o diagnóstico médico é mau, especialmente em casos onde o processo de degeneração desenrola uma série de emergências médicas, é comum que os médicos recomendem o não prolongamento da vida. Se estes médicos não estão seguramente a agir dentro dos seus direitos legais, isto é algo que pode surgir como uma surpresa não só para eles como para o público em geral. Também é óbvio que a eutanásia é sobretudo aplicada quando se trata de pessoas de idade. Se alguém atingiu uma idade avançada e tem pouco tempo de vida ao mesmo tempo que é atacado por uma doença que torna a sua vida miserável, os médicos nem sempre avançam com a profilaxia de prolongamento da vida. Talvez os pacientes com poucas posses ainda sejam alvo de menor consideração do que os mais abastados, sendo, frequentemente, deixados a morrer em paz; mas este não é, em todo o caso, uma prática médica bem conhecida, que se traduz numa forma de eutanásia.
Sem dúvida que o caso de crianças com problemas mentais ou físicos será apresentado como outro exemplo de prática de eutanásia tal como já acontece, uma vez que permitimos que tais crianças morram. É certo que permitimos de forma deliberada que morram; crianças com malformações graves ao nível da espinha bífida, nem sempre são operadas, mesmo sabendo que sem essa operação morrerão; e mesmo no caso de crianças afectadas pelo Síndrome de Down que sofrem de obstrução intestinal, a simples operação que tornaria possível alimentá-las não é feita
[1]. Quer isto se trate de eutanásia tal como a entendemos ou apenas como os Nazis a entendiam é outra questão. Devemos colocar a questão essencial, “É para o bem da própria criança que os médicos e os pais optam pela sua morte?” Em alguns casos, a resposta pode muito bem ser que sim, e, o que é mais importante, pode ser também verdade que o tipo de vida que constitui um bem, não seja possível ou provável para aquela criança, e que para ela não esteja reservado pouco mais além de sofrimento e frustração[2]. Porém, tem que haver o pressuposto de que o diagnóstico médico é terrível, como deve ser para algumas crianças que sofrem de espinha bífida. No que respeita a crianças com o Síndrome de Down, as coisas são bem diferentes. A maioria destas consegue ter uma vida razoavelmente agradável durante bastante tempo, permanecendo crianças toda a sua vida, mas capazes de estabelecer relações afectivas, envolverem-se em actividades lúdicas e levar a cabo tarefas simples. O que acontece, de facto, é que os médicos que fazem recomendações contrárias à preservação da vida no caso de crianças deficientes, não estão a pensar nelas, mas nos pais e na família ou no “fardo social” que elas constituem caso sobrevivam. Então não é para o seu próprio bem, mas para evitar o incómodo de terceiros que é permitido que morram. Quando exposto desta maneira, parece inaceitável: pelo menos não aceitamos facilmente o princípio que os adultos que precisam de cuidados especiais sejam considerados um fardo quando decidimos mantê-los vivos. Devemos insistir, porém, no facto de que se é permitido que as crianças que sofrem do Síndrome de Down morram, isto não constitui um caso de eutanásia a não ser à luz do que era entendido por Hitler. E para as nossas crianças, uma vez que temos escrúpulos em as gasear, nem mesmo o modo como as deixamos morrer é “doce e fácil”; quando a obstipação intestinal de uma destas crianças não é tratada, ela simplesmente morre à fome. Talvez alguns tomem estes casos como argumento para tornarem a eutanásia activa, estando neste caso na companhia de um oficial das S.S. estacionado em Warhgenau, que enviou um memorando a Eichmann dizendo que “no Inverno seguinte não havia hipótese de alimentar os Judeus” e deixando ao seu critério a proposta de se “não seria uma solução mais humana matar os Judeus incapazes de trabalhar através de um método rápido.”[3] Se dizemos ser incapazes de cuidar das nossas crianças com deficiência, não estamos muito longe da verdade do oficial das S.S. que dizia que os Judeus não podiam ser alimentados.
Apesar de tudo, se é legítimo permitir que crianças deformadas morram, uma vez que terão uma vida miserável, e não tomarmos medidas para prolongarmos um pouco a vida de um recém-nascido, a qual não pode ir além de alguns meses de cuidados intensivos, há um problema sério no que respeita à eutanásia activa por oposição à passiva. Existem casos bem conhecidos em que uma equipa médica infelizmente viu morrer uma criança à fome e de desidratação por não se sentir capaz de lhe aplicar uma injecção letal. De acordo com os princípios analisados anteriormente, não teriam o direito de o fazer, uma vez que a criança não pode exprimir o pedido nesse sentido. A única solução possível – assumindo que a eutanásia voluntária activa fosse legalizada – seria a de nomear tutores que actuariam nos interesses da criança. Sob outro ponto de vista, esta situação não seria tão perigosa, mas actualmente, quando as pessoas assumem tão facilmente que a vida de uma criança deficiente não tem valor, repugnar-nos-ia aceitá-lo.
Finalmente, ainda nos cabe uma palavra sobre as crianças com deficiência mental profunda. Para estas também seria melhor dizermos que a morte seria melhor. Mas nem mesmo a deficiência mental coloca automaticamente uma criança no caminho de um possível acto de eutanásia. Se o nível de consciência for baixo, não podemos dizer que têm uma boa vida, o mesmo se aplica nos casos daqueles que sofrem de senilidade extrema. Ainda assim, se não estão em processo de sofrimento, o facto de alguém desejar a sua morte não constitui um acto de eutanásia. Talvez a caridade não exija que medidas efectivas sejam tomadas para manter estas pessoas vivas, mas a questão da eutanásia não entra aqui, nem em casos em que alguém como Karen Ann Quinlan esteja num estado de coma permanente. Muito poderia ser dito sobre este último caso. Poderíamos mesmo sugerir que no caso de não-consciência esta “vida” não é aquela a que se refere o “direito à vida”. Mas não é nossa função analisá-lo aqui.
O que devemos considerar, ainda que de forma breve, é a possibilidade da eutanásia genuína, e não aquela contrária aos princípios da justiça e caridade, dever ser legalizada sobre uma vasta área de casos. Pois sujeitamo-nos ao problema sério dos abusos. Muitas pessoas desejam ardentemente ver-se livres dos seus familiares idosos e mesmo dos seus companheiros enfermos. Haverá alguma maneira de garantir que não assumam como eutanásia aquilo que é de facto para o seu próprio benefício? E seria possível prevenir a ocorrência de actos, que seriam genuinamente actos de eutanásia, mas considerados moralmente inaceitáveis porque violam os direitos do paciente que desejava viver?
Talvez o mais longe que nos fosse permitido ir seria o de encorajar os pacientes a fazer acordos com os seus médicos, fazendo-lhe saber se desejam prolongar a própria vida no caso de doenças terminais dolorosas ou de incapacidade. Um documento como o “Living Will” (Testamento da Vida) parece ser bastante razoável, e, ao dar a conhecer o desejo expresso do paciente, deveria dar também garantia de imunidade legal ao médico, atendendo às possíveis acções judiciais dos familiares
[4]. A legalização da eutanásia é de todo um assunto completamente diferente deste. Além da particular repugnância que os médicos sentem em aplicar a injecção letal, é de importância primordial manter uma barreira psicológica contra a ideia de matar um outro ser humano. Por outro lado são os casos de eutanásia activa que são mais propensos ao abuso. Hitler não teria morto 255.000 pessoas no seu programa de “eutanásia”, se tivesse que ter esperado que necessitassem de um tratamento que lhes salvasse a vida. Existem, no entanto, outras objecções à eutanásia activa, mesmo à eutanásia activa voluntária. Em primeiro lugar, seria difícil definir procedimentos que protegessem as pessoas contra os abusos de persuasão em relação a darem o seu consentimento. E em segundo lugar, a possibilidade de eutanásia voluntária activa poderia introduzir alterações terríveis nas relações sociais. Como as coisas estão neste momento, as pessoas, em geral, esperam ser cuidadas quando adoecem ou ficam velhas. Esta é uma das coisas boas que possuímos, mas que podemos perder, sendo que a nossa vida pioraria sem este bem. Podemos esperar que alguém que possa vir a necessitar de muitos cuidados chame um médico e exija a sua própria morte. Algo de semelhante poderia constituir um bem no caso de uma comunidade gravemente afectada pela pobreza, onde as crianças sofressem bastante com a falta de alimento; mas nas sociedades ricas como a nossa, seria certamente um desastre espiritual. Tais possibilidades deveriam fazer-nos pensar e ser cautelosos quando defendemos a eutanásia, mesmo em circunstâncias em que um princípio moral aplicado a um caso isolado não o torne uma regra.»


Notas
Gostaria de agradecer a Derek Parfit e aos editores de Philosophy & Public Affairs os seus comentários construtivos.

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[1] Sei isto por um Pediatra de um Centro Médico bastante conhecido nos E.U.A.. Foi confirmado por A. Shaw e I. Shaw, “Dilemma of Informed Consent in Children”, The New England Journal of Medicine 289, nº 17 (25 de Outubro, 1975): 885-90. Reimpresso em Gorovitz.
[2] Deve ser relembrado, no entanto, que muita da miséria social de crianças com espinha bífida podia ser evitada. O Professor R. B. Zachary tem razão quanto a este ponto. Ver, por exemplo, “Ethical and Social Aspects of Spina Bifida”, The Lancet, 3 de Agosto, 1968. Reimpresso em Gorovitz.
[3] Citado por H. Arendt, Eichmann in Jerusalém (Londres, 1963), p. 90.
[4] Detalhes deste documento podem ser encontrados in J. A. Behnke and Sissela Bok, eds., The Dilemmas od Euthanasia New York, 1975), in A. B. Downing, ed., Euthanasia and Rights to Life: The caso for Voluntary Euthanasia (Lonres, 1969).


Foot, Philippa, “Euthanasia” in Olen, J.; Barry, V. (eds)(2001). Applying Ethics: a text with readings. U.S.A Wadsworth, pp. 240-55 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

Jürgen Habermas, "Três Modelos Normativos de Democracia (Parte III)

«b) Conceito de direito
A polémica que tem por objecto o conceito clássico de personalidade jurídica como portadora de direitos subjectivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre o próprio conceito de direito. Enquanto que para a concepção liberal o sentido de uma ordem jurídica está no facto de que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos indivíduos, esses direitos subjectivos, de acordo com a concepção republicana, devem-se a uma ordem jurídica objectiva que, ao mesmo tempo, possibilite e garanta a integridade de uma convivência equitativa, autónoma e fundada no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica constrói-se a partir dos direitos subjectivos; no segundo, concede-se o primado ao conteúdo objectivo desses mesmos direitos. É verdade que esses conceitos dicotómicos não dão conta do conteúdo intersubjectivo dos direitos que exigem o respeito recíproco de direitos e deveres mediante relações de reconhecimento de carácter simétrico. Na verdade, é o projecto republicano que vai ao encontro de um conceito de direito que outorga à integridade do indivíduo e às suas liberdades subjectivas o mesmo peso que é atribuído à integridade da comunidade cujos indivíduos podem reconhecer-se uns aos outros como seus membros e enquanto indivíduos. Pois a concepção republicana vincula a legitimidade da lei ao procedimento democrático da sua génese, estabelecendo assim uma conexão interna entre a prática da autodeterminação do povo e o império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos não passam, em última análise, de determinações da vontade política prevalecente, enquanto que, para os liberais, certos direitos estão sempre fundados numa 'lei superior’ da razão ou revelação transpolítica. (…) De um ponto de vista republicano, o objectivo de uma comunidade, o bem comum, consiste substancialmente no sucesso do seu empenho político para definir, estabelecer, efectivar e sustentar o conjunto de direitos (ou menos tendenciosamente, leis) melhor ajustados às condições e costumes dessa comunidade, ao passo que, de um ponto de vista contrastantemente liberal, os direitos baseados na lei superior fornecem as estruturas transcendentais e os limites ao poder necessários para que a busca pluralista de interesses diferentes e conflituantes possa decorrer da forma tão satisfatória quanto seja possível".
Na tradição republicana, o direito de voto interpretado como liberdade positiva, converte-se em paradigma dos direitos em geral, não apenas pelo facto desse direito ser condição indispensável da autodeterminação política, mas também porque nele se torna explícito em que medida a inclusão numa comunidade de portadores de direitos iguais está associada à capacidade dos indivíduos de realizar contribuições autónomas e de assumir posições próprias. Essa estrutura que se pode identificar com base na interpretação dos direitos à comunicação e à participação política distribui-se entre todos os direitos ao longo do processo legislativo que os constitui. Também a atribuição de poder no âmbito do direito privado, para que se persigam fins privados e livremente escolhidos, obriga concomitantemente que se respeitem os limites da acção estratégica acordados segundo o interesse de todos.
(c) Processo político
As diferentes concepções do papel do cidadão e do direito exprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do processo político. Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que asseguram a capacidade de dispor de poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião políticas na esfera pública e no parlamento é determinado pela concorrência entre actores colectivos, que agem estrategicamente com o objectivo de conservar ou adquirir posições de poder. O êxito alcançado nesse processo será medido pelo consentimento dos cidadãos em relação a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições. Ao votar, os eleitores expressam as suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes do mercado. Esses votos tornam possível a procura de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adoptando uma atitude semelhante de orientação para o êxito. O input de votos e o output de poder correspondem ao mesmo modelo de acção estratégica: “Ao contrário da deliberação, a interacção estratégica tem por fim a coordenação e não tanto a cooperação. Em última análise, o que se exige das pessoas é que levem em conta apenas o seu interesse próprio. O seu meio é a negociação, não a argumentação. Os seus instrumentos de persuasão não são reivindicações ou razões, mas ofertas condicionadas de serviços e abstenção. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente materializado de um modo informal nas condutas sociais, um resultado estratégico não representa um juízo colectivo da razão, mas uma soma vectorial num campo de forças”.
Segundo a concepção republicana, a formação da opinião e vontade políticas no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado, mas tem as suas estruturas específicas. São elas as estruturas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. O paradigma da política no sentido da prática de uma autodeterminação por parte de cidadãos do Estado, não é o do mercado, mas o do diálogo. Segundo essa visão, há uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que advém da comunicação política na forma de opiniões maioritárias estabelecidas por via discursiva, e o poder administrativo próprio do aparelho do estado. Também os partidos que lutam pelo acesso a posições de poder no Estado têm de se adequar ao estilo específico dos discursos políticos: A deliberação… refere-se a uma certa atitude relativamente à cooperação social, especificamente a que está aberta à persuasão por meio de razões relativas às pretensões dos outros e às nossas. A via deliberativa corresponde a uma troca de perspectivas de boa fé – incluindo os relatos dos participantes relativamente às suas concepções particulares dos respectivos interesses vitais – em que um voto, qualquer voto, representa um conjunto de juízos”. Precisamente por isso, o confronto sustentado de opiniões no terreno da política tem uma força legitimadora, não apenas no sentido de uma autorização para ocupar posições de poder, mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso político possui uma força vinculatória sobre o modo de exercício do poder político. O poder administrativo só pode ser aplicado com base em políticas e no limite das leis que nascem do processo democrático.»

Amartya Sen, "Igualdade de quê?" (Parte II)

«A análise da última secção apontou para o carácter partidário das interpretações habituais da pergunta “porquê a igualdade?”. Essa questão, como sustentei, tem simplesmente de ser enfrentada do mesmo modo, mesmo por aqueles que são vistos - por si mesmos e pelos outros - como "anti-igualitários", já que eles também são igualitários em algum aspecto relevante das suas teorias. Mas claramente não se defendeu que a pergunta "porquê a igualdade?" era, em qualquer sentido, vã. Podemos ser persuadidos de que as disputas básicas provavelmente serão sobre a "igualdade de quê?", mas ainda poderia ser perguntado se é necessário haver uma exigência de igualdade em algum aspecto relevante. Mesmo se resultar que toda teoria substantiva dos ordenamentos sociais em voga seja, de facto, igualitária nalgum aspecto - visto como central em tal teoria - ainda há necessidade de explicar e defender aquela característica geral em cada caso. A prática compartilhada - mesmo que fosse universalmente compartilhada - ainda necessitaria de alguma defesa.
O problema a ser enfrentado não é tanto se deve haver, por razões estritamente formais (tais como a disciplina da "linguagem da moral"), igual consideração por todos, em algum nível, em todas as teorias éticas do ordenamento social
[1]. Esta é uma questão interessante e difícil, mas não é necessário enfrentá-la no actual contexto; a resposta para ela não é, na minha perspectiva, de forma alguma clara. Estou mais interessado na questão de saber se as teorias éticas devem ter este traço básico de igualdade para serem substantivamente plausíveis no mundo em que vivemos.
Pode ser útil perguntar por que tantas teorias substantivas completamente diferentes da ética dos ordenamentos sociais têm o traço comum de exigir a igualdade de alguma coisa - algo importante. Creio ser possível defender que, para possuir algum tipo de plausibilidade, o raciocínio ético sobre problemas sociais deve envolver a igual consideração elementar por todos em algum nível visto como crítico. A ausência de tal igualdade faria com que uma teoria fosse arbitrariamente discriminatória e difícil de ser defendida. Uma teoria pode aceitar - na verdade, exigir - a desigualdade em termos de inúmeras variáveis, mas ao defender essas desigualdades seria difícil escapar da necessidade de as relacionar, em última instância, com a igual consideração por todos de algum modo adequadamente substantivo.
Talvez esta característica se relacione com a exigência de que o raciocínio ético, especialmente sobre ordenamentos sociais, tenha de ser, nalgum sentido, plausível para os outros - potencialmente todos os outros. A pergunta "porquê este sistema?" tem de ser respondida como se fosse para todos os participantes desse sistema. Existem alguns elementos kantianos nesta linha de raciocínio, ainda que a igualdade exigida não necessite de uma estrutura estritamente kantiana
[2].
Recentemente, Thomas Scanlon (1982) analisou a relevância e a força da exigência de que devemos "ser capazes de justificar as nossas acções aos outros com razões que eles não pudessem razoavelmente rejeitar"
[3]. O requisito da "equidade" sobre o qual Rawls (1971) constrói sua teoria da justiça pode ser visto como propondo uma estrutura específica para determinar o que se pode ou não razoavelmente rejeitar[4]. De igual modo, as exigências de "imparcialidade" – e "algumas formas substantivamente rigorosas de "universalizabilidade" - invocadas como requisitos gerais têm, nalguma forma mais relevante, esse traço de igual consideração[5]. O raciocínio deste tipo geral certamente terá muito a ver com os fundamentos da ética, e surgiu de modos diferentes nas bases metodológicas de propostas éticas substantivas[6].
A necessidade de defender as nossas teorias, juízos e pretensões diante dos outros que podem - directa ou indirectamente - estar envolvidos, faz da igualdade de consideração nalgum nível um requisito difícil de evitar. Há questões metodológicas interessantes relacionadas com o estatuto desta condição; em particular: se é um requisito lógico ou uma exigência substantiva
[7], e se está relacionado com a necessidade de "objectividade" em ética[8]. Não prolongarei agora estas questões, já que os principais objectivos deste ensaio não dependem das respostas que lhes dermos[9]. O que tem interesse directo é a plausibilidade da pretensão de que a igual consideração nalgum nível - um nível visto como relevante - é uma exigência da qual não se pode facilmente escapar ao apresentar uma teoria ética ou política dos ordenamentos sociais. Também é de considerável interesse pragmático notar que a imparcialidade e a igual consideração, numa forma ou noutra, fornece um pano de fundo comum para todas as propostas éticas e políticas neste campo que continuam a receber apoio e defesa consistentes[10]. Uma consequência de tudo isso é a aceitação - frequentemente implícita - da necessidade de justificar as vantagens disparatadas de diferentes indivíduos em coisas que importam. Esta justificação consiste com frequência em mostrar a conexão integral dessa desigualdade com a igualdade em algum outro espaço importante - alegadamente mais importante[11].
De facto, é a igualdade nesse espaço mais importante que pode então ser vista como contribuindo para as exigências contingentes da desigualdade nos outros espaços. Faz-se repousar a justificação de algumas características da desigualdade em alguma outra característica da igualdade, considerada como mais básica nesse sistema ético. A igualdade no que é visto como o "núcleo" é invocada para uma defesa racional das desigualdades resultantes nas "periferias" distantes.»
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[1] Para uma exposição e defesa clássicas desta pretensão analiticamente ambiciosa, ver Hare (1952, 1963).
[2] Para razões para levar em conta as diferenças (por exemplo, de compromissos ou obrigações pessoais) que tendem a ser ignoradas pelo menos em algumas versões do formato uniformizador kantiano, ver Williams (1981), Hampshire (1982), Taylor (1982). Sobre algumas questões afins, ver Williams (1973a), onde também é discutido por que "os vários elementos da ideia de igualdade" nos impulsionam em "diferentes direcções" (p. 248). Mas a aceitação da importância das diferentes obrigações e compromissos obviamente não descarta a necessidade geral de que nossa ética seja plausível para os demais.
[3] Ver também Scanlon (1988a). Sobre problemas afins, ver Rawls (1971, 1988c) , B. Williams (1972, 1985), Mackie (1978a), Ackerman (1980,1988), Partlt (1984), O'Neill (1989).
[4] Ver também a análise posterior - mais explícita - de Rawls desta conexão, em Rawls (1985, 1988a, 1990).
[5] Ver Mackie (1978a). O raciocínio baseado na imparcialidade é usado por Harsanyi (1955) e Hare (1963) para defender a escolha da ética utilitarista. A ideia de igual consideração, na forma da exigência de imparcialidade, é invocada mesmo na moldagem de teorias que assumem explicitamente uma forma "anti-igualitária". Por exemplo, ao apresentar seu argumento a favor de uma "moral por acordo", Gauthier (1986) afirma - correctamente, considerada a sua definição particular de igualdade - que a "igualdade não é uma preocupação fundamental na nossa teoria", mas continua imediatamente a explicar que "nós apelamos para a racionalidade igual dos contratantes para mostrar que o seu acordo satisfaz o padrão moral de imparcialidade" (p. 270, a ênfase é nossa).
[6] Sobre isso ver Sen (1970a: cap. 9).
[7] Esta questão pode ser comparada com o exame de John Mackie (1978a) sobre se a necessidade de universalização é "uma tese lógica" ou "uma tese prática substantiva" (p. 96).
[8] Sobre a abrangência da objectividade, ver Nagel (1980, 1986), McDowel1 (1981, 1985), Wiggins (1985, 1987), H. Putnam (1987, 1993) e Hurley (1989). Sobre o outro ponto de vista, ver também Harman (1977), Mackie (1978a, 1978b) e B. Williams (1981, 1985).
[9] Alguns aspectos particulares desta questão são discutidos em Sen (1983b, 1985a).
[10] Esta observação aplica-se especificamente aos ordenamentos sociais - e portanto a teorias de filosofia política e não de ética pessoal. Na ética do comportamento pessoal, têm sido apresentados argumentos convincentes a favor da permissão ou da exigência de assimetrias explícitas no tratamento de pessoas diferentes. Tais argumentos podem relacionar-se, por exemplo, com a permissividade - talvez até a necessidade - de cada um prestar atenção especial aos seus próprios interesses, objevtivos e princípios vis-à-vis os dos outros. Ou podem relacionar-se com o requisito de assumir uma maior responsabilidade para com os membros da sua própria família e outros a que se esteja "ligado". São discutidos tipos diferentes de assimetrias envolvidas na ética pessoal em B. Williams (1973a, 1973b, 1981), Mackie (1978a), Nagel (1980,1986), Scheffler (1982), Sen (1982b, 1983b), Regan (1983) e Par6.t (1984). Ainda que essas exigências possam também ser vistas em termos de exigências de igualdade de tipos bem especiais, elas tendem a ir contra as concepções políticas habituais de igualdade "anónima" (sobre isso ver Sen 1970a).
[11] Não é necessário encarar a maior relevância como intrínseca ao espaço em si mesmo. Por exemplo, a igualdade de bens primários na análise de Rawls (1971, 1982, 1985, 1988a), ou de recursos na teoria de Ronald Dworkin (1981, 1987), não é justificada pela importância intrínseca dos bens primários ou dos recursos. A igualdade nesses espaços é considerada importante porque eles são instrumentais quanto a proporcionar às pessoas oportunidades equitativas, nalgum sentido para procurar as respectivas metas e objectivos. Esta distância introduz claramente - diria eu – uma certa tensão interna nessas teorias, uma vez que a importância derivativa dos bens primários e dos recursos depende das respectivas oportunidades para converter os bens primários e os recursos em satisfação das respectivas metas, ou em liberdades para as procurar. As possibilidades de conversão podem ser, na verdade, bastante diversas para pessoas diferentes, e isso pode de facto – defendo eu - enfraquecer a razão básica da importância derivativa da igualdade de quotas de bens primários ou recursos. Sobre isso, ver caps. 3 e 5 (ver também Sen, 1980a, 1990b).

domingo, 30 de março de 2008

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte II)

«Alguns filósofos com uma visão optimista da natureza humana e uma crença na possibilidade de harmonizar os interesses humanos - filósofos como Locke, Adam Smith ou, em alguns estados de espírito, Mill, acreditavam que a harmonia e o progresso sociais eram compatíveis com a possibilidade de reservar uma grande área para a vida privada, que nem ao Estado nem a qualquer outra autoridade seria permitido invadir. Hobbes e aqueles que concordavam com suas ideias, especialmente pensadores conservadores ou reaccionários, argumentavam que, se os homens deviam ser impedidos de se destruir uns aos outros e de tornar a vida social uma selva ou um deserto, então precisavam ser instituídas maiores salvaguardas para os manter nos seus devidos lugares; consequentemente, ele queria aumentar a área de controlo centralizado e diminuir a do indivíduo. Mas ambos os lados concordavam que alguma parte da existência humana deveria permanecer independente da esfera de controlo social. Invadir essa área reservada, embora pequena, seria despotismo. O mais eloquente de todos os defensores da liberdade e privacidade, Benjamin Constant, que não se esquecera da ditadura jacobina, declarou que, no mínimo, a liberdade de religião, opinião, expressão e propriedade tinha de ser garantida contra uma invasão arbitrária. Jefferson, Burke, Paine, Mill compilaram diferentes classificações de liberdades individuais, mas o argumento para manter a autoridade em cheque é sempre substancialmente o mesmo. Devemos preservar um mínimo de liberdade pessoal, se não quisermos "degradar ou negar a nossa natureza". Não podemos permanecer totalmente livres e devemos abrir mão de alguma liberdade própria para preservar o resto. Mas a rendição total do eu é a derrota do eu. Qual deve ser então esse mínimo? Aquele de que um homem não pode abrir mão sem ofender a essência da sua natureza humana. Qual é essa essência? Quais são os padrões nela implicados? Isso tem sido e será talvez sempre uma questão para infinitos debates. Mas, qualquer que seja o princípio que norteie a área de não-interferência a ser traçada - seja o da lei natural, o dos direitos naturais, da utilidade, das manifestações de um imperativo categórico, da santidade do contrato social ou o de qualquer outro conceito com que os homens têm procurado esclarecer e justificar as suas convicções -, a liberdade nesse sentido significa livrar-se de; ausência de interferência além da fronteira mutável, mas sempre reconhecível. “A única liberdade que merece esse nome é a de procurar o nosso bem à nossa maneira", disse o mais célebre dos seus defensores[1]. Pode a coação justificar-se nesse caso? Mill não tinha dúvidas que sim. Como a justiça exige que todos os indivíduos tenham direito a um mínimo de liberdade, todos os outros indivíduos devem ser necessariamente impedidos, através da força se for preciso, de privar alguém da liberdade. Na verdade, toda a função da lei era a prevenção exactamente desses choques: o Estado era reduzido ao que Lassalle descreveu desdenhosamente como as funções de um vigia ou de um guarda de trânsito.
O que tornava a protecção da liberdade individual tão sagrada para Mill? No seu famoso ensaio, ele declara que, a menos que o indivíduo tenha permissão para viver como deseja na "parte [da sua conduta] que interessa unicamente a si mesmo"
[2], a civilização não pode progredir; por falta de um livre mercado de ideias, a verdade não virá à luz; não haverá oportunidades para a espontaneidade, "a originalidade, o génio, a energia mental, a coragem moral. A sociedade será esmagada pelo peso da "mediocridade colectiva"[3]. "Tudo o que é rico e diversificado será esmagado pelo peso do costume, pela constante tendência humana à conformidade, que gera apenas faculdades "mirradas", seres humanos "mesquinhos e tacanhos", "acanhados e tolhidos". A "auto-afirmação pagã" é tão digna quanto a "negação cristã de si mesmo"[4]. "Todos os erros que [um homem] é propenso a cometer apesar de todos os conselhos e avisos são superados pelo mal de permitir que outros o sujeitem ao que consideram ser o seu bem."[5] A defesa da liberdade consiste na meta "negativa" de evitar a interferência. Ameaçar um homem de perseguição caso ele não se submeta a uma vida em que não escolhe os seus objectivos; fechar todas as portas à sua frente excepto uma, não importando a nobreza da perspectiva para a qual abre ou a benevolência dos motivos dos que arranjaram tal coisa, e pecar contra a verdade de que ele é um homem, um ser com uma vida própria a ser vivida. Essa é a liberdade como foi concebida pelos liberais no mundo moderno desde os dias de Erasmo (alguns diriam de Occam) aos nossos. Toda a reivindicação de liberdades civis e direitos individuais, todo protesto contra a exploração e a humilhação, contra o abuso da autoridade pública, ou a hipnose de massa do costume ou da propaganda organizada, nasce dessa concepção individualista e muito controversa acerca do homem.
É possível notar três factos sobre esta posição. Em primeiro lugar, Mill confunde duas noções distintas. Uma é que toda coerção, na medida em que frustra desejos humanos, é má em si mesma, embora possa ter de ser aplicada para prevenir outros males maiores; ao passo que a não-interferência, que é o oposto da coerção, é boa em si mesma, embora não seja o único bem. Essa é a concepção "negativa" da liberdade na sua forma clássica. A outra noção é que os homens devem procurar descobrir a verdade ou desenvolver certo tipo de carácter aprovado por Mill - crítico, original, imaginativo, independente, não conformista ao ponto da excentricidade, e assim por diante - e que a verdade pode ser encontrada, e esse carácter pode ser cultivado, apenas em condições de liberdade. Essas duas noções são visões liberais, mas não são idênticas, e a conexão entre elas é, quando muito, empírica. Ninguém afirmaria que a verdade ou a liberdade de expressão podem florescer quando o dogma esmaga todo e qualquer pensamento. Mas as evidências históricas tendem a mostrar (como, na verdade, foi afirmado por James Stephen no seu formidável ataque a Mill no seu livro Liberty, equality, fraternity) que a integridade, o amor à verdade e o individualismo inflamado crescem pelo menos tão frequentemente em comunidades de disciplina severa - como, por exemplo, entre os calvinistas puritanos da Escócia ou da Nova Inglaterra - ou sob a disciplina militar, quanto em sociedades tolerantes ou indiferentes; e, sendo assim, cai por terra o argumento de Mill sobre a liberdade como uma condição necessária para o crescimento do génio humano. Se as suas duas metas se revelassem incompatíveis, Mill seria confrontado com um dilema cruel, sem falar nas outras dificuldades criadas pela incoerência das suas doutrinas com o utilitarismo estrito, até na sua própria versão humanitária dessa doutrina
[6]


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[1] S. Mill, On liberty, capítulo 1; p. 226 in Collected works of John Stuart Mill,(ed.). M. Robson, Toronto/Londres, 1981, vol. 18.
[2] Ibid., p. 224.
[3] Ibid., capítulo 3, p. 268.
[4] Ibid., pp. 265-6.
[5] Ibid., capítulo 4, p. 277.
[6] Isso é apenas uma outra ilustração da tendência natural presente em todos os pensadores à excepção de uns poucos - de acreditar que todas as coisas que eles consideram boas devem estar intimamente conectadas, ou pelo menos ser compatíveis, umas com as outras. A história do pensamento, como a história das nações, está cheia de exemplos de elementos inconsistentes, ou pelo menos disparatados, unidos à força num sistema despótico, ou mantidos unidos pelo perigo de um inimigo comum. No seu devido tempo, o perigo passa, e surgem os conflitos entre os aliados, o que frequentemente rompe o sistema, às vezes para grande beneficio da humanidade.

John Rawls, "Uma Teoria da Justiça"

«O papel da justiça
A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas se forem injustas. Cada pessoa beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo poderá ser eliminada. Por esta razão, a justiça impede que a perda da liberdade para alguns seja justificada pelo facto de outros passarem a partilhar um bem maior. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos sejam compensados pelo aumento das vantagens usufruídas por um maior número. Assim, numa sociedade justa, a igualdade de liberdades e direitos entre os cidadãos é considerada definitiva; os direitos garantidos pela justiça não estão dependentes da negociação política ou do cálculo dos interesses sociais. A única justificação para mantermos uma teoria errada está na ausência de uma alternativa melhor; de modo análogo, uma injustiça só é tolerável quando necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo as virtudes primeiras da actividade humana, a verdade e a justiça não podem ser objecto de qualquer compromisso.
Estas proposições parecem expressar a nossa convicção intuitiva sobre o primado da justiça. [...]
[…] Admitamos, para assentar ideias, que uma sociedade é uma associação de pessoas, mais ou menos auto-suficiente, as quais, nas suas relações, reconhecem certas regras de conduta como sendo vinculativas e, na sua maioria, agem de acordo com elas. Suponhamos ainda que estas regras especificam um sistema de cooperação concebido para fomentar o bem dos que nela participam. Assim, embora uma sociedade seja uma tentativa de cooperação que visa obter vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada, simultaneamente, tanto por um conflito como por uma identidade de interesses. Há identidade de interesses uma vez que a cooperação torna possível uma vida que, para todos, é melhor do que aquela que cada um teria se tivesse de viver apenas pelos seus próprios esforços. Há conflito de interesses uma vez que os sujeitos não são indiferentes à forma como são distribuídos os benefícios acrescidos que resultam da sua colaboração, já que, para prosseguirem os seus objectivos, todos preferem receber uma parte maior dos mesmos. É necessário um conjunto de princípios que permitam optar por entre as diversas formas de ordenação social que determinam esta divisão dos benefícios, bem como obter um acordo sobre a repartição adequada dos mesmos. Estes princípios são os da justiça social: são eles que fornecem um critério para a atribuição de direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação social.
Assim, dir-se-á que a sociedade é bem ordenada quando não só é concebida para aumentar o bem dos respectivos membros mas quando é também efectivamente regida por uma concepção pública de justiça. Ou seja, trata-se de uma sociedade em que, por um lado, cada um aceita, sabendo que os outros também aceitam, os mesmo princípios da justiça e, por outro lado, em que, no geral, as respectivas instituições básicas satisfazem esses princípios, sendo reconhecidas como tal. Nesta situação, ainda que os sujeitos possam formular, uns contra os outros, exigências que sejam excessivas, eles reconhecem, apesar disso, um ponto de vista comum a partir do qual serão decididas as respectivas pretensões. Se as inclinações humanas se orientam para a prossecução do interesse próprio, tornado necessária a vigilância mútua, o seu sentido público da justiça torna a associação de todos possível e segura. Entre sujeitos com objectivos e fins díspares, a partilha de uma concepção comum da justiça estabelece os laços de amizade cívica; o anseio geral de justiça limita a prossecução de outros fins. Pode considerar-se que uma concepção pública da justiça constitui a regra fundamental de qualquer associação humana bem ordenada.
É certo que as sociedades existentes raramente estão bem ordenadas nos termos agora expostos, dado que a determinação do que é justo ou injusto é normalmente objecto de disputa. Os princípios que devem definir os termos básicos de qualquer associação são, eles próprios, objecto de discórdia. E no entanto pode ainda afirmar-se que, apesar do desacordo, cada um dos seus membros tem uma concepção da justiça. Ou seja, todos reconhecem a necessidade de um conjunto específico de princípios para atribuição de direitos e deveres básicos e para a determinação do que se entende ser a distribuição adequada dos encargos e benefícios da cooperação em sociedade, e estão dispostos a afirmá-lo. Assim, é natural que se considere que o conceito de justiça é distinto das várias concepções de justiça (…). Assim, os defensores das diferentes concepções da justiça podem, apesar disso, estar de acordo quanto ao facto de que as instituições são justas quando não há discriminações arbitrárias na atribuição dos direitos e deveres básicos e quando as regras existentes estabelecem o equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na atribuição dos benefícios da vida em sociedade.
»

«O objecto da justiça
O objecto primário dos princípios da justiça social é a estrutura básica da sociedade, ou seja, a articulação das principais instituições sociais num sistema único de cooperação. Vimos que estes princípios devem presidir à tributação de direitos e deveres nestas instituições e determinar a distribuição apropriada dos encargos e benefícios da vida social. Mas não se devem, porém, confundir os princípios da justiça relativos às instituições com os princípios aplicáveis aos indivíduos e à sua acção em circunstâncias determinadas. Estes dois tipos de princípios aplicam-se a objectos diferentes e devem ser analisados separadamente.
Defino instituição como sendo um sistema público de regras que determina funções e posições, fixando, por exemplo, os respectivos direitos e deveres, bem como poderes e imunidades. De acordo com estas regras, certas formas de acção são permitidas e outras proibidas; e, em caso de infracção, elas prevêem apenas e medidas de protecção contra as violações.
»

«Bens primários
“[…] [S]upunhamos que a estrutura básica da sociedade distribui certos bens primários, isto é, coisas que o homem racional presumivelmente deseja.. Estes bens têm normalmente um uso, independentemente do plano de vida racional da pessoa em causa. Para simplificar, admitamos que os principais bens primários à disposição da sociedade são direitos, liberdades e oportunidades, rendimento e riqueza (mais adiante, na terceira parte, o bem primário respeito por si próprio tem um lugar central). Estes são os bens primários sociais. Outros bens primários há, como a saúde e o vigor, a inteligência e a imaginação, que são naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, não estão sobre o seu controlo directo. Imagine-se então um sistema inicial hipotético no qual todos os bens primários sociais estejam igualmente distribuídos: todos têm direitos e deveres semelhantes e o rendimento e a riqueza são correctamente partilhados. Esta situação fornece-nos um ponto de referência para avaliar a evolução posterior.
»

«A posição original
A ideia condutora é antes a de que os princípios da justiça aplicáveis à estrutura básica formam o objecto do acordo original. Esses princípios são os que seriam aceites por pessoas livres e racionais, colocadas numa situação inicial de igualdade e interessadas em prosseguir os seus próprios objectivos, para definir os termos fundamentais da sua associação. São estes princípios que regulamentam os acordos subsequentes; especificam as formas da cooperação social que podem ser introduzidas, bem como as formas de governo que podem ser estabelecidas. É a esta forma de encarar os princípios da justiça que designo por teoria da justiça como equidade.
Assim, partimos da ideia de que os sujeitos que estabelecem uma forma de cooperação em sociedade escolhem em conjunto, num acto comum, os princípios que devem orientar a atribuição de direitos e deveres básicos e a divisão dos benefícios da vida em sociedade. Decidem antecipadamente do modo como vão resolver as exigências que formulam mutuamente e qual vai ser a carta fundamental da sociedade. Da mesma forma que cada pessoa deve decidir, através de uma análise racional, o que é que constitui o seu bem, isto é, o sistema de objectivos que lhe é racional prosseguir, também um conjunto de pessoas deve decidir, de uma vez por todas, o que é para elas considerado justo ou injusto. É a escolha que será feita por sujeitos racionais nesta situação hipotética em que todos beneficiam de igual liberdade - aceitando por agora que o problema colocado por escolha tem solução - que determina os princípios da justiça.
Na teoria da justiça como equidade, a posição da igualdade original corresponde ao estado natural na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é, evidentemente, concebida como uma situação histórica concreta, muito menos como um estado cultural primitivo. Deve ser vista como uma situação puramente hipotética, caracterizada de forma a conduzir a uma certa concepção da justiça.
»
«A posição original é definida como o status quo no qual quaisquer acordos alcançados são justos. É uma situação em que as partes estão representadas igualmente como pessoas morais e o resultado não é condicionado por contingências arbitrárias ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais. […]
[…] [É] evidente que a posição original é uma situação puramente hipotética. Nada de semelhante tem de ocorrer de facto, embora possamos, seguindo deliberadamente as limitações nela expressa, estimular a reflexão das partes intervenientes. A concepção original não visa explicar a conduta humana, excepto na medida em que tenta apreciar os nossos juízos e ajuda a explicar o facto de termos um sentido da justiça. A teoria da justiça como equidade é uma teoria dos nossos sentimentos morais, na forma como se manifestam através dos nossos juízos reflectidos e ponderados, obtidos através de um equilíbrio reflectido. Estes sentimentos afectam presumivelmente, em alguma medida, os nossos pensamentos e a nossa acção. Assim, embora a concepção da posição original seja parte da teoria da conduta moral, daí não decorre de modo algum que haja situações concretas que se lhe assemelhem. O que é necessário é que os princípios que são objecto de acordo desempenham o papel exigido no nosso raciocínio e na nossa conduta moral.
»

«O véu de ignorância
Para tal, parto do princípio de que as partes estão situadas ao abrigo de um véu de ignorância. Não sabem como é que as várias alternativas vão afectar a sua situação concreta e são obrigadas a avaliar os princípios apenas com base em considerações gerais.
Parte-se do princípio de que as partes desconhecem certos factos concretos. Antes de mais, ninguém conhece o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou estatuto social; também não é conhecida a fortuna ou a distribuição de talentos naturais ou capacidades, a inteligência, a força, etc. Ninguém conhece a sua concepção do bem, os pormenores do seu projectos de vida ou sequer as suas características psicológicas especiais, como a aversão ao risco ou a tendência para o optimismo ou pessimismo. Mais ainda, parto do princípio de que as partes não conhecem as circunstâncias particulares da sua própria sociedade, isto é, desconhecem a sua situação política e económica e o nível de civilização e cultura que conseguiu atingir. Os sujeitos na posição original não sabem a que geração pertencem. Estas amplas restrições à informação são, em certa medida, necessárias porque as questões de justiça social tanto surgem entre gerações como dentro da mesma geração, de que é exemplo o problema da taxa adequada da poupança ou a conservação dos recursos naturais e do ambiente natural. […] Devem escolher princípios cujas consequências estejam dispostos a viver, seja qual for a geração a que pertencem.
Tanto quanto possível, portanto, o único facto concreto de que as partes têm conhecimento é o de que a sua sociedade está submetida ao contexto da justiça e às respectivas consequências. É dado como adquirido, no entanto, que conhecem os factos gerais da sociedade humana. Compreendem os assuntos políticos e os princípios da teoria económica; conhecem as bases da organização social e das leis da psicologia humana. Na verdade, presume-se que as partes conhecem os factos gerais que afectam a escolha dos princípios da justiça.
»
»Os princípios da justiça são escolhidos a coberto de um véu de ignorância. Assim se garante que ninguém é beneficiado ou prejudicado na escolha daqueles princípios pelos resultados do acaso natural ou pela contingência das circunstâncias sociais. Uma vez que todos os participantes estão em situação semelhante e que ninguém está em posição de designar princípios que beneficiem a sua situação particular, os princípios da justiça são o resultado de um acordo ou negociação equitativa (fair). […] Isto explica a propriedade da designação «justiça como equidade»: ela transmite a ideia de que o acordo sobre os princípios da justiça é alcançado numa situação inicial que é equitativa. […]»
«Consideremos o ponto de vista de alguém na posição original. Não há qualquer meio que lhe permita obter vantagens especiais para si próprio. Por outro lado, também não há justificação para que consinta em sofrer desvantagens particulares. Dado que não lhe é razoável esperar obter mais do que uma parte igual à dos outros na divisão dos bens sociais primários, e na medida em que não é racional aceitar receber uma parte menor, a melhor solução será a de reconhecer como primeiro passo um princípio da justiça que exija uma distribuição igual. Na verdade este princípio é, dada a simetria das partes, tão óbvio que a todos deve ocorrer imediatamente. Assim, os intervenientes partem de um princípio que exige iguais liberdades básicas para todos, bem como uma igualdade equitativa de oportunidades e a divisão igual dos rendimentos e da riqueza.
Mas, mesmo defendendo firmemente a prioridade das liberdades básicas e da igualdade equitativa de oportunidades, não há razão para que este reconhecimento inicial seja definitivo. A sociedade deve ter em conta a eficiência económica e as exigências da organização e da tecnologia. Se houver desigualdades de rendimento e de riqueza, bem como diferenças de autoridade e de graus de responsabilidade, que permitam que todos estejam em melhor situação, por comparação com o padrão da igualdade, porquê permiti-las? (…) Portanto, a estrutura básica deve admitir estas desigualdades desde que elas melhorem a situação de todos, incluindo as dos menos beneficiados, contanto que sejam compatíveis com a igual liberdade e com a igualdade equitativa de oportunidades. Como as partes têm como ponto de partida uma divisão igual de todos os bens sociais primários, os que beneficiam menos têm, por assim dizer, um poder de veto. Chegamos assim ao princípio da diferença. Tomando a situação de igualdade como base de comparação, os sujeitos que ganharem mais devem fazê-lo em termos que sejam justificáveis para os que ganharem menos.
»

«Os dois princípios da justiça
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema total de liberdades básicas
[1] iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas de forma a que, simultaneamente:
a) redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados (...) , e
b) sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades.
»

«Ordenação dos princípios da justiça
Estes princípios devem ser dispostos numa ordenação serial, tendo o primeiro princípio prioridade sobre o segundo. Esta ordenação significa que as violações das liberdades básicas protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justificadas, ou compensadas, por maiores vantagens económicas e sociais. Tais liberdades têm um âmbito central de aplicação dentro do qual só podem ser limitadas, ou ser objecto de compromisso, quando entrem em conflito com outras liberdades básicas. Uma vez que podem sofrer limitações quando tal suceda, nenhuma destas liberdades é absoluta; mas, qualquer que seja o ajustamento que sofram na formação de uma sistema, este sistema será o mesmo para todos. […]
O conteúdo dos dois princípios é assaz específico e a sua aceitação repousa em certas hipóteses que terei de explicar e justificar. Por agora, deve observar-se que estes dois princípios constituem um caso especial de uma concepção mais geral de justiça que pode ser expressa da seguinte forma:
Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, rendimento e riqueza, e as bases sociais do respeito próprio – devem ser distribuídos igualmente, salvo se uma distribuição desigual de algum desses valores, ou de todos eles, redunde em benefício de todos.
Assim, a injustiça é simplesmente a desigualdade que não resulta em benefícios de todos.
»

«A regra maximin
Uma vez que os dois princípios garantem uma ordem social que mantém estas condições, serão eles e não princípio da utilidade que serão objecto de estudo. […]
[…] [O]s dois princípios são, pelo menos, uma condição plausível da justiça. O problema, no entanto, está em saber como formular argumentos de natureza mais sistemática em seu favor. […] Para tal, é útil, (…) pensar nos dois princípios como a solução maximin para o problema da justiça social. Há uma relação entre os dois princípios e a regra maximin para a escolha em condições de incerteza. Tal decorre claramente do facto de os dois princípios serem aqueles que qualquer sujeito escolheria para a concepção de uma sociedade na qual o seu lugar lhe fosse atribuído por um seu inimigo. A regra maximin diz-nos para ordenar as alternativas em função das piores de entre as respectivas possíveis: devemos adoptar a perspectiva cuja pior consequência seja superior a cada uma das piores consequências das outras. É evidente que as pessoas na posição original não partem do princípio que o seu lugar na sociedade é decidido por um inimigo malévolo. […] [E]sta analogia sugere que, se a posição original foi descrita em termos tais que para as partes é racional adoptarem a atitude conservadora expressa por tal regra, uma argumentação conclusiva em favor destes princípios pode efectivamente ser construída.
»

[1] “Entre elas contam-se, como particularmente importantes, a liberdade política (direitos de votar e de ocupar uma função pública) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proibição da opressão psicológica e da agressão física (direito à integridade pessoal); o direito à propriedade privada e à protecção face à detenção e à prisão arbitrárias, de acordo com o princípio do domínio da lei (rule of law).” [Rawls, John (1993). Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editorial Presença, p. 68 (adaptado por Vítor João Oliveira)].
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Rawls, John (1993). Uma Teoria da Justiça. Lisboa: Editorial Presença, pp. 27-9; 63; 69; 33; 109-10; 121;33-4; 132-3; 239; 68-9; 131-3 (adaptado por Vítor João Oliveira).

sábado, 29 de março de 2008

Nigel Dower, "Cidadania Global: Sim ou Não?" (Parte I)

«A ideia de um cidadania global ou de uma cidadania mundial – tomo estas noções como sinónimas – é altamente controversa. Muitos defendem que estamos ainda nos primórdios de uma cidadania mundial, enquanto outros consideram a ideia absurda. Uma forma de compreender porque existem posições tão diversas sobre se de facto somos cidadãos globais é através de análise de um conjunto de afirmações concretas e contraditórias que apresentarei a seguir e do exame das razões que se pode avançar para cada uma delas. No mínimo isto revelará a complexidade desta área. Para cada caso apresentarei um comentário crítico o qual será por vezes um resumo das posições opostas, e noutras a defesa de uma posição que reconhece aspectos relevantes assumidos pelo lado contrário.

1. Ética ou institucional?
(a) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente ética sobre o que as pessoas estão moralmente obrigadas a fazer.
(b) A cidadania mundial é uma concepção essencialmente institucional sobre a pertença a instituições de um tipo especificamente global.

A favor de (a): A ideia essencial de uma cidadania mundial vem dos Estóicos e tinha que ver com a relação não-artificial que mantínhamos com o universo (e que poderíamos reconhecer se fossemos suficientemente sábios); o que se rejeitava era a relevância das identidades artificiais e contingentes dos seres vivos em comunidades políticas concretas (por exemplo, Heater, 1996). As comunidades políticas são artificiais no sentido em que são criadas e modificadas pela vontade dos seres humanos e são contingentes porque é um acidente eu ter nascido num dada comunidade política, sendo a minha pertença contingente bastante diversa da minha natureza essencial como ser humano. No mundo moderno, a cidadania mundial pode expressar-se através de vários tipos de instituições (e pode um dia expressar-se através de instituições artificiais de governança mundial). Mas permanece como núcleo duro da cidadania mundial a afirmação de um compromisso moral individual básico, baseado na lei natural, nos direitos humanos, no respeito kantiano pelas pessoas ou numa qualquer teoria ética similar que não funde a ética numa convenção ou num acordo. É a partir desta vantagem que qualquer pessoa pode distanciar-se de qualquer instituição actual, global ou de outro tipo (como inúmeros Estóicos fizeram relativamente ao que na altura era, de facto, um império mundial, nomeadamente o Império Romano). Por exemplo, um futuro estado mundial pode inquestionavelmente transformar qualquer pessoa num cidadão mundial num sentido legal, mas esta pode estar profundamente descontente com esse facto por causa das políticas desse estado e, como verdadeiro cidadão mundial, responder apenas perante uma lei moral mais elevada.

A favor de (b): A cidadania mundial não faz sentido a não ser que seja entendida em termos institucionais, uma vez que a cidadania é ela própria um conceito institucional. Podemos ser seres humanos por natureza (com certos deveres e direitos enquanto tal) mas o estatuto de cidadania é essencialmente artificial, dependendo de uma construção de tipos de instituições concretas em virtude das quais somos cidadãos.
Esta posição pode ser adoptada em primeiro lugar por alguém que queira rejeitar a ideia de uma cidadania mundial com base no facto de não existirem instituições relevantes. Por exemplo, a defesa que David Miller faz da cidadania baseada no estado-nação assume esta forma (Miller, 1999). Então a ideia não é considerada a não ser como concepção moral de interesse e relevância duvidosos (e enganadores para um mundo moderno que possui ideias claramente estabelecidas sobre a cidadania independentemente do que possa ter acontecido no mundo antigo).
Por outro lado, a posição pode ser adoptada pelos que aplaudem a ideia de uma cidadania global. Quer dizer, enquanto que a ideia de cidadania mundial pode ser estendida para além do politicamente convencional, essa extensão depende de forma crucial de um factor institucional, nomeadamente do facto de efectivamente existirem ou desejar que existam certos tipos de instituições através das quais uma cidadania mundial possa expressar-se. Segundo esta perspectiva, seremos cidadãos mundiais? Alguns poderão dizer que não, mas que devemos empenhar-nos na criação de instituições relevantes; outros dirão que já somos cidadãos globais dadas as instituições já existentes (ver 3 mais à frente). Muito depende da força das nossas convicções relativamente à existência dessas instituições no que pode ser designado de “sociedade civil global” e ao quão importante é o que agora existe comparado com o esforço para a sua criação.

Comentário crítico: Embora existam contextos em que é perfeitamente apropriado alguém apresentar uma tese moral (na linha dos Estóicos), e possam haver circunstâncias futuras em que as instituições (por exemplo, um governo mundial ou formas de governança global aproximadas) possam apresentar uma defesa institucional incontroversa de carácter empírico, no mundo moderno as defesas de uma cidadania mundial resultam da combinação de componentes morais e institucionais. A tese moral diz que em princípio possuímos obrigações de um tipo global que exigem, para que se possam expressar de forma adequada, o desenvolvimento de instituições apropriadas, e a tese institucional implica que essas instituições já existam embora numa forma radicalmente incompleta.
A perspectiva ética e a perspectiva institucional devem ser objectivamente aceites (independentemente de serem ou não aceites pelos indivíduos). As pessoas podem subjectivamente afirmar-se como “cidadãos mundiais” desde que reconheçam tais obrigações e instituições. É claro que a robustez dessas instituições depende efectivamente da força do reconhecimento dessa condição. Sem dúvida que precisamos daquilo que H. G. Wells chamou de “mentalidade cosmopolita” (através da qual “consideramos uma comunidade mundial” antes de, nas palavras de John Macmurray, a intenção estar completamente actualizada (Macmurray, 1957)) e isto tem que preceder a sua concretização nas instituições (cfr. Heater, 1996). Isso é análogo à concepção moral de possuir um corpo defendida por F. H. Bradley (instituições, regras e práticas públicas partilhadas) e uma alma (vontades morais individuais) (Bradley, 1876). Há uma relação dialéctica entre as duas. Na realidade, há aqui três elementos a considerar: (i) a tese da moral objectiva feita pelo pensador, como a afirmação arrebatadora de Piet Hein de que somos “cidadãos globais com almas tribais” (Cfr. Barnaby, 1988), em que o pensador é capaz de, mesmo que só temporariamente, transcender a sua percepção limitada e ver as coisas pelo que elas são; (ii) a necessidade de uma mentalidade (as nossas almas “globais”); e (iii) a necessidade de uma representação concreta (nas relações públicas e na cultura partilhada).»

Nigel Dower, "Global Citizenship: Yes or No?", in Dower, Nigel & Williams, John (eds). Global Citizenship. A Critical Reader. Edinburgh: Edinburgh University Press, pp. 30-2 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

Isaiah Berlin, "Dois Conceitos de Liberdade" (Parte I)

«[…] Coagir um homem é privá-lo da liberdade - liberdade de quê? Quase todo o moralista na história humana tem elogiado a liberdade. Tal como a felicidade e a bondade, como a natureza e a realidade, a liberdade é um termo cujo significado é tão poroso que não parece capaz de resistir a muitas das interpretações. Não proponho discutir a história dessa palavra protéica ou os seus mais de duzentos sentidos registados pelos historiadores das ideias. Proponho examinar não mais que duas das suas acepções - mas elas são centrais, com muita história humana atrás de si e, ouso dizer, ainda por acontecer. O primeiro desses sentidos políticos de liberdade (freedom ou liberty - vou usar essas duas palavras para significar a mesma coisa), que (conforme muitos precedentes) vou chamar de sentido "negativo", está implicado na resposta à pergunta: "Qual é a área em que o sujeito - uma pessoa ou grupo de pessoas - é ou deve ter permissão de fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?". O segundo, que vou chamar de sentido "positivo", está implicado na resposta à pergunta: "O que ou quem é a fonte de controlo ou interferência capaz de determinar que alguém faça ou seja uma coisa em vez de outra?". As duas perguntas são claramente diferentes, mesmo que as respostas possam coincidir parcialmente. […]”

A noção de liberdade negativa
Normalmente sou considerado livre na medida em que nenhum homem ou grupo de homens interfere com a minha actividade. A liberdade política nesse sentido é simplesmente a área na qual um homem pode agir sem ser impedido por outros. Se outros me impedem de fazer o que de contrário eu poderia fazer, não sou nessa medida livre; e, se essa área é restringida por outros homens para além de um certo valor mínimo, posso ser descrito como coagido ou, talvez, escravizado. A coerção não é, entretanto, um termo que abranja qualquer forma de incapacidade. Se digo que sou incapaz de saltar para cima mais de três metros ou que não posso ler porque sou cego, ou que não consigo entender as páginas mais enigmáticas de Hegel, seria absurdo afirmar que sou nessa medida escravizado ou coagido. A coerção implica a interferência deliberada de outros seres humanos na minha área de actuação. Só não temos liberdade política quando os outros indivíduos nos impedem de alcançar uma meta. A mera incapacidade de alcançar uma meta não é falta de liberdade política. Isso é expresso pelo uso de expressões modernas como "liberdade económica" e a sua contrapartida, "escravidão económica". Afirma-se, muito plausivelmente, que, se um homem é demasiado pobre para obter algo isento de proibição legal - um pão, uma viagem em redor do mundo, um recurso aos tribunais -, ele é tão pouco livre para conseguir esse intento quanto o seria se a lei proibisse a sua acção. Se a minha pobreza fosse um tipo de doença que me impedisse de comprar pão ou de pagar a viagem em redor do mundo ou de conseguir que o meu caso fosse julgado, assim como o facto de ser coxo me impede de correr, essa incapacidade não seria naturalmente descrita como uma falta de liberdade, muito menos falta de liberdade política. É apenas porque acredito que a minha incapacidade de obter determinado objectivo se deve ao facto de outros seres humanos terem feito arranjos pelos quais sou impedido, enquanto outros não o são, de ter bastante dinheiro para pagar o que desejo possuir, que me considero uma vítima de coerção ou escravidão. Por outras palavras, esse uso do termo depende de uma teoria social e económica particular sobre as causas da minha pobreza ou fragilidade. Se a minha falta de meios materiais se deve a alguma falta minha de capacidade mental ou física, só posso pensar em falar que sou privado de liberdade (e não simplesmente sobre pobreza) se aceito a teoria
[1]. Se, além disso, acredito que minha carência está a ser mantida por um arranjo específico que considero injusto ou iníquo, falo de escravidão ou opressão económica. A natureza das coisas não nos enlouquece, só nos enlouquece a má vontade, disse Rousseau. O critério da opressão é o papel que acredito estar a ser desempenhado por outros seres humanos, directa ou indirectamente, com ou sem intenção, para frustrar os meus desejos. Ser livre, nesse sentido, para mim significa não sofrer a interferência de outros. Quanto maior a área de não-interferência, mais ampla é a minha liberdade.
Isso é o que os filósofos políticos ingleses clássicos queriam dizer quando usavam essa palavra
[2]. Discordavam sobre o grau de amplitude que tal área poderia ou deveria ter. Supunham que, diante das circunstâncias, ela não poderia ser ilimitada, porque, se o fosse, geraria uma situação em que todos os homens poderiam interferir ilimitadamente na vida de todos os outros homens, e esse tipo de liberdade "natural" levaria ao caos social em que as necessidades mínimas das pessoas não seriam satisfeitas; ou então as liberdades dos fracos seriam suprimidas pelos fortes. Percebendo que os propósitos e as actividades humanos não se harmonizam automaticamente e atribuindo (quaisquer que fossem as suas doutrinas oficiais) alto valor a outras metas, como justiça, felicidade, cultura, segurança ou graus variáveis de igualdade, eles estavam prontos a restringir a liberdade em proveito de outros valores e até da própria liberdade. Pois, sem isso, era impossível criar o tipo de associação que achavam desejável. Consequentemente, esses pensadores propõem que o campo de acção livre do homem deve ser limitada pela lei. Mas da mesma forma supõem, especialmente libertários como Locke e Mill na Inglaterra, e Constant e Tocqueville na França, que exista um certo campo mínimo de liberdade pessoal que não deve ser violado de modo algum, pois, do contrário, o indivíduo ver-se-á num campo demasiado estreito até para aquele desenvolvimento mínimo das suas faculdades naturais que é o único a possibilitar a busca, e até a concepção, dos vários fins que os homens consideram bons, correctos ou sagrados. Segue-se que é preciso traçar-se uma fronteira entre a área da vida privada e a da autoridade pública. Em que ponto ela deve ser traçada é uma questão a ser discutida - na verdade, a ser regateada. Os homens são em grande parte interdependentes, e nenhum homem é capaz de agir de forma tão completamente privada a ponto de nunca interferir, de alguma forma, na vida de outros. "Liberdade para o peixe graúdo significa morte para o peixe miúdo"[3]; a liberdade de alguns deve depender da repressão de outros. A liberdade para um professor de Oxford (sabe-se que outros acrescentaram) é algo muito diferente da liberdade para um camponês egípcio.
Essa proposição retira a sua força de algo que é tanto verdadeiro como importante, mas a própria expressão continua uma patetice política. De facto, oferecer direitos políticos ou salvaguardas contra a intervenção do Estado a homens semi-nus, analfabetos, subnutridos e doentes é troçar da sua condição: eles precisam de ajuda médica ou educação antes de poderem compreender ou aproveitar um aumento da sua liberdade. O que é a liberdade para aqueles que não a podem empregar? Sem as condições adequadas para o uso da liberdade, qual é o valor dela? As coisas mais essenciais vêm em primeiro lugar: há situações em que - para usar um ditado que Dostoiévski satiricamente atribuiu aos niilistas - as botas são superiores a Puchkin; a liberdade individual não é a necessidade primária de todos. Pois a liberdade não é a mera ausência de frustração - isso inflacionaria o sentido da palavra até ela significar de mais ou de menos. O camponês egípcio precisa de roupas e remédios antes da liberdade pessoal e mais das roupas e dos remédios do que de liberdade pessoal, mas a liberdade mínima de que ele necessita hoje, e o maior grau de liberdade de que pode vir a necessitar amanhã, não é uma espécie de liberdade que lhe é peculiar, mas é idêntica à dos professores, artistas e milionários.
O que perturba a consciência dos liberais ocidentais não é, na minha opinião, a convicção de que a liberdade procurada pelos homens difere segundo as suas condições sociais ou económicas, mas a de que a minoria que a possui conquistou-a explorando ou, pelo menos, evitando contemplar a imensa maioria que não a tem. Eles acreditam, com boas razões, que, se a liberdade individual é um fim máximo para os seres humanos, nenhum homem deveria ser privado, por outros, da liberdade, muito menos que alguns a deveriam gozar às custas dos outros. Igualdade de liberdade: não tratar os outros como eu não gostaria que me tratassem; o pagamento da minha dívida para com aqueles que me proporcionaram liberdade, prosperidade ou esclarecimento; justiça, na sua forma mais simples e mais universal - esses são os fundamentos da moralidade liberal. A liberdade não é o único objectivo dos homens. Posso dizer, como o crítico russo Belinsky, que, se os outros devem ser privados da liberdade - se os meus irmãos devem permanecer na pobreza, miséria e prisão , então não a desejo para mim mesmo, rejeito-a com ambas as mãos e prefiro infinitamente compartilhar o destino deles. Mas nada se ganha com uma confusão de termos. Para evitar a desigualdade gritante ou a desgraça generalizada, estou pronto a sacrificar parte da minha liberdade ou toda ela: posso agir desse modo voluntária e livremente; mas é à liberdade que estou a renunciar em prol da justiça, igualdade ou amor pelos homens que são meus companheiros. Eu seria atormentado pela culpa, e com razão, se não estivesse disposto, em algumas circunstâncias, a fazer esse sacrifício. Mas o sacrifício não é um aumento do que está a ser sacrificado, a saber, a liberdade, por maior que seja a necessidade moral ou a compensação pelo sacrifício. Tudo é o que é: liberdade é liberdade, não é igualdade, equidade, justiça ou cultura, felicidade humana ou uma consciência tranquila. Se a minha liberdade ou a da minha classe ou nação depende da desgraça de outros seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto e imoral. Mas se restrinjo ou perco a minha liberdade para diminuir a vergonha dessa desigualdade, e com isso não aumento materialmente a liberdade individual dos outros, ocorre uma perda absoluta de liberdade. Isso pode ser compensado por um ganho em justiça, felicidade ou paz, mas a perda permanece, e é uma confusão de valores dizer que, embora a minha liberdade "liberal", individual, seja jogada fora, algum outro tipo de liberdade - "social" ou "económica" - é aumentada. Ainda assim continua a ser verdade que a liberdade de alguns deve ser às vezes restringida para assegurar a liberdade de outros. Com base em que princípio isso deveria ser feito? Se a liberdade é um valor sagrado, intocável, não pode haver tal princípio. Um ou outro de tais princípios ou regras conflituantes deve ceder, pelo menos na prática: nem sempre por razões que podem ser claramente expressas, quanto mais generalizadas em regras ou máximas universais. Ainda assim, um compromisso prático tem de ser encontrado.»
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[1] A concepção marxista das leis sociais é, claro, a versão mais conhecida dessa teoria, mas ela constitui um grande elemento em algumas doutrinas cristãs e utilitárias e em todas as doutrinas socialistas.
[2] "Um homem livre", disse Hobbes, "é aquele que [...] não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer." Leviathan, capítulo 21, p. 146 na edição de Richard Tuck, Cambridge, 1991. A lei é sempre um grilhão, mesmo que proteja o ser humano de se ver acorrentado em cadeias muito mais pesadas que as da lei - digamos, uma norma ou costume mais repressivo, o despotismo arbitrário ou o caos. Bentham diz mais ou menos a mesma coisa.
[3] R. H. Tawney, Equality (1931), 3º ed., Londres, 1938, capítulo 5, secção 2, "Equality and Liberty", p. 208 (não existente em edições anteriores).

sexta-feira, 28 de março de 2008

Problema da Sociedade Justa

Para entenderes o que é o problema da sociedade justa vou recorrer a uma analogia habitual. Supõe que vais participar numa corrida de carros. O que será legítimo esperar? Naturalmente que a corrida seja justa. Mas o que será para ti, para mim ou para qualquer outra pessoa, uma corrida justa? O que estará qualquer pessoa disposta a aceitar para considerar justa uma corrida? Percebes intuitivamente que se partires um metro atrás dos outros concorrentes, a corrida não será justa. Percebes intuitivamente que se alguém durante a corrida for ajudado, permitindo-lhe terminar em primeiro lugar, a corrida também não será justa. Portanto, não parece difícil compreender que uma corrida será sempre justa se for garantido que os corredores corram num plano de liberdade e igualdade. Portanto, parece não haver dúvidas quanto ao facto do que seja uma corrida justa. Se estiver garantida uma absoluta igualdade na partida e uma absoluta liberdade durante a corrida, para que um qualquer corredor possa terminar no melhor lugar possível, então a corrida terá sido justa. Portanto, a justiça de uma corrida dependerá da capacidade que os seus organizadores tiverem de equilibrar a igualdade e a liberdade.
Mas não nos precipitemos nas conclusões, porque garantir que uma corrida seja justa é uma tarefa bem mais complexa do que parece à partida, já que garantir o equilíbrio entre igualdade e liberdade é uma tarefa que, bem vistas as coisas, parece impossível. Repara. Para que uma corrida de carros seja justa deve ser garantida ao corredor mais rápido a possibilidade de se adiantar e deixar para trás o corredor mais lento. Mas como podes ter a certeza que uma corrida assim será justa, quer dizer, como podes ter a certeza que o corredor que ficou para trás não está limitado por carregar “pesos adicionais”? Por exemplo, há que saber que tipo de carro tem ou então se esse corredor teve algum tipo de preparação. Imagina que o corredor mais rápido corre com um Ferrari de Março de 2008, porque nasceu numa família rica que lho pode comprar, e que o corredor mais lento corre com um Renault 5 de 1975, que já foi do seu avô, que depois passou para o seu pai e que agora herdou. Se assim for, achas que a corrida será justa? Achas justa uma corrida em que um dos corredores é rico e pode comprar o carro mais rápido que há no mercado, enquanto que o outro é pobre e corre com o carro mais velho e lento que se pode imaginar? Será justo que um dos corredores tenha garantido à partida uma vantagem inicial que não resultou do seu esforço nem da sua escolha? Será justo que um dos corredores parta com uma desvantagem inicial que não resultou do seu esforço ou da sua escolha? As nossas intuições morais levam-nos a responder que não, pois parece que uma corrida justa terá que garantir que os corredores corram em condições de igualdade.
Ora, aqueles que defendem a igualdade absoluta (e que se chamam igualitaristas) certamente que quererão proteger de uma corrida injusta aqueles que estão em desvantagem. E isso pode ser conseguido impedindo que o corredor que tem um Ferrari possa correr com ele. Os organizadores podem decidir que esse corredor não pode correr com o Ferrari e que todos devem correr em carros iguais. Mas será justo que os organizadores da corrida limitem dessa forma a liberdade dos corredores? Será que o corredor do Ferrari tem alguma responsabilidade por ter um Ferrari? As nossas intuições morais levam-nos uma vez mais a responder que não, pois limitar dessa forma o seu desempenho constitui uma violação grave da sua liberdade e aqueles que defendem em absoluto a liberdade (e que se chamam libertários) quererão proteger a liberdade dos corredores mais rápidos para que possam ganhar todos os troféus que puderem.
Se numa corrida, os concorrentes são recompensados pela sua habilidade para correr, na vida reconhecemos uma grande variedade de talentos e atributos – força, beleza, criatividade, compaixão e inteligência entre outros – que queremos igualmente recompensar. Mas será que não queremos proteger as fronteiras dos diferentes campos de competição? Por exemplo, estamos dispostos a aceitar que alguém com talento para ganhar dinheiro possa acumular riqueza. Mas estaremos dispostos a aceitar que essa mesma pessoa possa concorrer a um cargo público com a expectativa de que este possa ser comprado? Seguramente que a tua resposta imediata será negativa.
Ora, na analogia que estamos a considerar pressupõe-se que em toda a competição há sempre quem compete. A competição leva a que tenhamos que desenvolver um certo tipo de talentos, que noutras circunstâncias não faríamos. Mas será que não queremos desenvolver igualmente a capacidade para cooperar com os outros corredores? Será que não queremos garantir apenas as diferenças naturais que nos dividem, mas também as semelhanças naturais que nos unem como seres humanos? Muitos de nós serão fracos concorrentes em algum tipo de competição, mas mesmo assim, todos partilhamos a mesma dignidade enquanto seres humanos e merecemos, por isso, igual respeito. Mas como é possível assegurar a cada pessoa e ao mesmo tempo a liberdade de se adiantar na vida e a igualdade e respeito que lhe são devidos enquanto ser humano? E como é possível assegurar que as desigualdades inevitáveis numa sociedade livre não privem aqueles que estão em desvantagem de oportunidades iguais para serem bem sucedidos? Ou, de uma forma mais sintética: como é possível uma sociedade justa de pessoas livres e iguais? Estas são as questões que dominam a filosofia política actual e são as questões a que John Rawls tentou responder em Uma Teoria da Justiça. Para isso, perguntou especificamente: Como deve a estrutura básica de uma sociedade democrática caracterizada pela escassez de bens primários sociais e pelo egoísmo, distribuir as vantagens e os encargos resultantes da cooperação social, de um modo que seja justo? Respondeu propondo uma concepção de justiça distributiva, que chamou de justiça como equidade, defendendo que devemos pensar os termos de uma sociedade justa a partir de dois princípios que permitam reconciliar a liberdade com a igualdade ao estabelecer o adequado equilíbrio quanto às reivindicações respeitantes às vantagens (benefícios) e encargos (ónus, custos) da cooperação social, quer em termos de direitos e liberdades básicas, quer ainda em matéria económica e social.